capítulo 17: níveis de dor
— Você precisa levantar agora, America.
Resmungo e me remexo debaixo das cobertas.
Lissa passeou pelo quarto e sutilmente afastou as cobertas do meu corpo. Abri os olhos, e me sentei, dando de cara com os olhos baixos e inexpressivos da minha companheira. No ato fiquei preocupada. Desde o dia que Anna me apresentou Lissa como acompanhante pessoal, nunca a vi triste, sem um sorriso no rosto ou um olhar caído. Alguma coisa estava errada.
— O que aconteceu? — perguntei.
— Ames, apenas tenha paciência — ela respondeu e me guiou até o banheiro.
Respirei fundo e tomei um banho rápido. Possivelmente o mais rápido da minha vida. A necessidade de querer saber do que estava acontecendo quase me cortou por dentro. E se alguém da minha família se feriu? E, na pior das hipóteses, se alguém morreu? Meus pais, Greta, Colin. A ideia de que até mesmo alguém da competição tenha se machucado veio a mente, mas concluí que se fosse isso, o drama e sigilo não seriam tão intensos.
— Lissa!
A mais velha ignorou-me.
Bufei, não de raiva; de nervoso.
Após me vestir, e prestes a sair do quarto, Lissa me impediu. Seus olhos brilhavam.
— Seja forte. És determinada, então aprenda a lidar com isso — aconselhou.
Apenas assenti.
O medo estava a flor da pele.
Atravessei o corredor rapidamente, sem nem piscar os olhos, e me dirigi ao Salão das Selecionadas.
— Ames!
Kellan.
Quando me aproximei, vi que estavam todos lá.
Ou quase.
— Onde será que a Barbie está? — Melinda perguntou, olhando para os lados.
— Não sei.
— Deve ter se atrasado — palpitou Yasmin.
Bisbilhotei o grupo de Chelsea que parecia satisfeito.
— É impressão minha ou elas estão calmas demais ou somos nós que estamos nervosas demais? — perguntei, apontando na direção do grupo.
Kellan concordou, opinando:
— Tem razão. Quando cheguei, Chelsea estava rindo.
— Alguém pode ter dito alguma coisa engraçada — Emilly desconversou.
O bombardeio de opiniões começou.
Agora não se chega a critério nenhum.
— Melinda.
Pois é, ela é a solução.
— Por que eu? — quis saber, indignada.
— Você é cobra criada. Elas também. E cobra entende cobra — Kellan respondeu.
Revirei os olhos e ri.
— Isto foi uma ofensa, mas vou encarar como elogio — compartilhou, não tão insatisfeita. — Querem a verdade? Elas sabem o que tá acontecendo, e não é algo que as afeta, então, pra quê se sensibilizar?
Yas concluiu:
— É diretamente ligado a gente.
— Só pode. O que deixaria Chelsea tão contente, senão desestabilizar a gente?
Todos concordaram.
De repente, Anna apareceu. O silêncio se instalou.
— Bom dia, queridos — a mais velha saudou. Um coro baixo de retorno soou. — Gostaria que a minha vinda aqui fosse por um bom motivo, mas infelizmente não é e nem trago boas notícias. — Olhei para Kellan e cruzei meus dedos nos dele. — Todos aqui presentes sabem que o descumprimento de qualquer umas das regras do protocolo ocasiona automaticamente na expulsão do indivíduo. Pelo descumprimento da regra, por praticar sabotagens contra Chelsea Stuwart, a selecionada Bárbara Evans, residente local, foi expulsa da competição.
Um som de surpresa pairou no ambiente.
— Sinto pelos mais próximos de Bárbara Evans — admitiu Anna, olhando especificamente para meu grupo.
Kellan, menos abalo, questionou:
— Mas o que aconteceu?
— Os pormenores dos acontecimentos serão revelados em breve, Kellan.
Por fim, Anna foi embora.
E assim, a existência de Barbie como selecionada foi esquecida da competição.
Era como se nunca tivesse feito parte.
— Como pôde?
Chelsea se virou, fingindo não entender.
— Tá falando comigo? — ela rebateu, cínica.
— Não, com a tua avó! É claro que ela tá falando contigo — Melinda ironizou.
— Você armou pra Barbie!
Chelsea e seu grupinho riram.
— Essa é uma acusação gravíssima, sabia? Mas, afinal, tem provas? Porque eu não me lembro de ter feito nada — mentiu, sorrindo cinicamente.
— Vai ter troco, Chelsea! — ameacei.
— Cuidado, princesa — ela zombou, divertindo-se — porque a última que me ameaçou, acabou sendo eliminada. Ah, ou melhor: expulsa.
Melinda quase voou em cima de Chelsea.
— Mel, não vale a pena — Kellan lembrou.
Assim como entraram, o grupo maldoso saiu do Salão das Selecionadas.
Em segundos, as lágrimas brotaram.
Os braços de Louisa me rodearam, e quando me dei conta, todos compartilhavam um único abraço. O pior, além da eliminação superinjusta, é não ter tido a chance de me despedir. Barbie sempre foi tão companheira e otimista — se não a mais otimista do grupo — e sempre se mostrou disposta a qualquer coisa pela nossa união, então, no meu modo de ver, o mínimo que devíamos ter feito, era dizer "tchau" e dar um abraço.
Não tínhamos como saber o que ia acontecer, no fim.
Cheguei no quarto destruída.
E nem tive ânimo e nem consideração para me despedir de Emilia Ward quando ela foi eliminada pela tarde. Quando Lissa me avisou da eliminação, ignorei. Kellan, Louisa, Yasmin, Emilly e Melinda apareceram no meu quarto avisando que não desceriam, e eu disse que também faria o mesmo. O sincronismo estava cada vez mais espontâneo e natural.
Emilia não merecia consideração. Poderia passar mil anos se fosse possível, eu nunca esqueceria do olhar de satisfação e o som da risada de Emilia quando confronfei Chelsea. Ela estava em comum acordo com as atitudes de Chelsea, então não merece o meu abraço nem o meu adeus. Nem uma delas merecia, principalmente Chelsea.
A noite chegou e eu não havia comido nada.
— Você precisa comer, princesa — Kellan lembrou, do meu lado na cama.
— Estou bem.
Ele estalou a língua, preocupado.
Aconcheguei-me nos braços do meu melhor amigo — o único durante a minha vida inteira — e não me importei com o público vendo-nos tão próximos, como se fôssemos namorados. Não me importei nem com a reação de Colin ao assistir essa cena, afinal, não estava acontecendo nada demais. Eu só queria conforto e carinho de alguém especial, e, dadas as circunstâncias, Kellan é o único capaz de ser meu abrigo, meu aconchego.
— Lembra na noite da nossa primeira aparição no The Late Late? Eu expliquei que era normal um cara estar numa competição pra conhecer uma banda apenas por achá-los normais e talentosos — ele falou, relembrando os detalhes.
— Eu me lembro — e sorri, mesmo que Kellan não visse. — Aposto que lá fora, você passou por cima de um tabu.
Senti sua cabeça se movendo em concordância.
Demorou um pouco até que Kellan falasse novamente.
— Eu menti.
— Sobre o quê? — perguntei, estática.
— Eu disse que era normal um cara estar numa competição pra conhecer uma banda apenas por achá-los normais e talentosos. — A voz de Kellan mudou, e o meu amigo parecia mais sensível e emocional. — Eu nunca achei. Eu era o tabu. Sempre fiz parte do grupo de caras que acham engraçado um bando de rapazes numa boyband. A minha vida toda julguei esses caras, os chamei por nomes que nem sou capaz de repetir.
Afastei-me do corpo de Kellan e acariciei seu rosto.
— Kellan, tá tudo bem.
— Não, Ames, não tá tudo bem — ele discordou, e uma lágrima escorreu. — Há seis meses eu não gostava da One Direction, não os suportava.
— E o que te fez mudar de ideia?
Os olhos de Kellan se fecharam instintivamente. Um meio sorriso apareceu.
Memórias.
Kellan estava recordando boas memórias.
— A minha irmãzinha.
Franzi o cenho, tentando lembrar do nome.
— Lili?
— Eu a amava tanto — ele confessou.
A forma verbal do passado não passou despercebida por mim. Quando me dei conta, procurei um possível erro devido a emoção. Só que Kellan disse amava, e não amo. Pedi a Deus para que não fosse o que de súbito surgiu como explicação para a conjugação no passado. Se eu estivesse mesmo certa — e peço a Deus para não estar — o uso amava podia significar que Lili, a irmã mais nova de Kellan, estava morta há seis meses.
Uma dor me atingiu. Bem no coração.
A vontade de chorar apareceu.
— Kellan...
— Quando a perdi, o meu mundo acabou, Ames — e a sua continuação serviu como afirmação. Lili estava mesmo morta. — Eu me odiei profundamente, porque ela gostava tanto desses caras. Era apaixonada.
— Não foi culpa sua — murmurei.
— Eu sei que não, mas Lili presenciou o meu ódio por eles tantas vezes.
Fiquei em silêncio.
Infelizmente, era muita informação.
— Como aconteceu?
— Não aconteceu, Ames. Ela simplismente morreu, e nós nem sabíamos.
Um nó na garganta.
— O quê?
— O câncer só se manifestou no estágio mais forte — ele explicou, delicadamente. — Não adiantava quimioterapia pra aplicar os remédios mais pesados, nem repouso ou qualquer meio para parar o câncer. Já estava feito. Com tão pouco tempo, só tínhamos tempo pras despedidas. — Kellan respirou fundo, e prosseguiu: — Lili sobreviveu duas semanas no leito do hospital e pediu pra eu deixar a raiva pra trás.
— Raiva por quem?
— Pela banda que ela tanto amava — respondeu.
— É por isso que estás aqui? Queres a oportunidade de se desculpar e de contá-los a história da Lili — deduzi.
Kellan assentiu e completou:
— Quero redenção, Ames.
— Você já conseguiu só por estar comigo aqui.
— Não é o suficiente. — Kellan engoliu em seco. — Lili tinha doze anos e me ensinou a perdoar. Eu não pude ensiná-la nada por causa do meu ego.
— Eu sinto tanto, Kellan.
Sentei em seu colo e o abracei fortemente.
A minha dor pela partida de Bárbara não era nada se comparada a de Kellan. Barbie está na casa dela, olhando para nós agora; Lili morreu, não está nos assistindo agora e nem esperando pelo irmão em casa. Apesar das situações atingirem o nosso emocional, há estágios de dor, e a de Kellan, mesmo depois de seis meses, ainda está ali, como se Lili tivesse morrido hoje.
Do nada, lembrei do minha conversa com Lissa:
— Eu entendi tudo o que me disse, America, e realmente vejo um diferencial em você — ela disse, inicialmente. — Entretanto —, continuou e deu uma pausa, olhando pra mim no intervalo — eu ainda não sei uma coisa: — e fez pausa novamente — por quê você está aqui?
Abri a boca de imediato para respondê-la, mas a resposta que estava na ponta da língua não era suficiente.
— Eu estou aqui porque sou Directioner.
Lissa mexeu os ombros.
— Isso basta?
— Pra você, não? — rebati, desanimada.
Não, não basta. Céus, nunca bastou estar aqui só por ser uma Directioner. Eu não tenho um motivo para estar nessa competição, não estou em busca de nada. Apesar de amá-los muito, isso não é suficiente para conhecê-los. Kellan tem uma missão, e é contar para os meninos que Lili existiu, que era fã deles e que lutou o máximo que pôde. E se desculpar. Kellan quer redenção, e acha que só conseguirá quando proferir as palavras frente a frente aos meninos.
Esse motivo o faz merecer o fim de semana.
O meu, não.
— Estou contigo, Kellan.
— Você é massa, garota — ele comentou, beijando minha testa sutilmente.
Olhei pra Kellan, com uma expressão de desentendimento.
— Massa?
— É uma gíria de algum estado brasileiro. Letícia usa bastante pra definir pessoas legais e de boa índole — ele explicou, orgulhoso de si mesmo.
— Massa — repeti, procurando familiaridade na palavra. — Tá aí uma palavra que não combina com Chelsea.
— Ela não tem boa índole.
— E nem é uma pessoa legal — acrescentei.
E mais silêncio.
Mas era um silêncio aconchegante, confortável.
— Me desculpa por esconder sobre a minha irmã de ti.
Balancei a cabeça.
Na hora, pensei em Colin, e a vontade de contar do meu namorado para Kellan surgiu. Ele merecia saber.
— Eu tenho namorado.
— Estava esperando a hora que você me contaria sobre Colin — ele disse.
— Você já sabia?
Ele assentiu, sorrindo.
— Vi uma foto sua com ele na sua maleta de maquiagem. Não foi intencional.
— Ah, foi sim — acusei.
— Tá! Só um pouco, talvez — Kellan confessou.
Cai na gargalhada.
— Não tem problema. Tá chateado comigo?
— Jamais, Ames.
Agora não existe segredo algum entre nós.
Só um, na verdade...
Harry.
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