um resquício de quem ela foi
ERA A ESTAÇÃO FAVORITA DE REBECCA. Apesar de ser o primeiro dia de outono, ela podia sentir o vento mais fresco entrando pela janela da sala de estar. A brisa ia até a cozinha onde ela fazia o jantar com Jake. Ele havia colocado música no celular para ouvirem juntos, o som de Fleetwood Mack ecoava pela cozinha em uma adorável harmonia com o cheiro do pão de alho assado e da carne grelhada.
Ela serviu vinho nas duas taças sobre o balcão, pegou uma para si e apreciou a bebida enquanto observava o marido. O cabelo dele estava começando a ficar comprido, os fios loiros estavam quase passando da orelha. Ele experimentou um pouco do molho e então percebeu Rebecca o observando e deu uma piscadinha para ela.
Era a primeira vez que tinham passado o dia inteiro juntos depois de terem se casado há dois anos atrás. Rebecca havia sido convocada pelo exército em seu primeiro ano de serviço, e Jake havia entrado para a polícia civil. Ambos tinham acabado de se formar, passariam dois anos distantes e decidiram que era o melhor momento para se casarem. Estiveram juntos a vida inteira, o casamento era apenas uma formalização de algo da qual sempre tiveram certeza: seriam parceiros para a vida.
— Não vai mesmo me ajudar a fazer o serviço de hoje? — Jake fingiu um tom de indignação e bebeu um pouco de vinho, desligou o fogo e deixou sobre o balcão o pano de prato que estava segurando até então.
— Eu que cuidei da limpeza da casa. E já havíamos combinado que seria você o responsável pela comida, já que eu sou um "pesadelo na cozinha". — Ela fez o sinal de aspas com os dedos, parafraseando algo que Jake havia dito quando estavam no Ensino Médio.
Aquilo o fez soltar a sua risada contagiante e Rebecca se aproximou dele e o beijou. Jake passou as mãos pela cintura e quadril da esposa e sorriu depois de lhe dar um beijo suave.
— Vamos jantar. Estou curioso para ver qual filme vai escolher hoje. — Ele se afastou para pegar os pratos e os copos.
Uma coisa que tinham em comum era o gosto pelos filmes de ação. Tudo o que queriam naquela noite era uma noite comum e tranquila bem caseira e familiar, tudo o que não puderam ter em anos. Haviam precisado cancelar a lua de mel, porque Jake precisava assumir o posto na delegacia com urgência.
Depois dos acontecimentos em 11 de setembro de 2001, o exército estava recrutando praticamente todos os alistados, o que facilitou para Rebecca iniciar sua carreira militar. O pai e o avô haviam servido a vida toda, ela já tinha o desejo de seguir esse caminho e após o atentado, seus sentimentos cresceram ainda mais. Era de certa forma patriota sim, havia crescido em um pequeno bairro no interior de Boston, e acreditava que seu trabalho era promover a segurança do país.
Escalou rápido como sniper, sua mira era precisa e puxava o gatilho no instante certo. Em seu tempo servindo no Iraque tinha tido a sorte de ficar mais distantes dos conflitos principais, seu trabalho era à distância cuidando do perímetro. Ela achou que isso e o fato de estar em casa completamente longe da guerra estava a ajudando se desconectar do peso que havia suportado nos últimos anos.
Eles jantaram no sofá enquanto assistiam Missão Impossível. A mão de Jake estava sobre a coxa de Rebecca e lá fora a chuva caía trazendo, pela primeira vez em um muito tempo, a sensação de conforto.
Foi quando o celular de Jake tocou, o aparelho estava sobre a mesinha no centro da sala e se inclinou no sofá para pegar o telefone e atender a ligação.
— O que está acontecendo? — Ele perguntou para a pessoa do outro lado da linha, Rebecca pode ouvir alguém responder, mas ela não conseguiu entender o quê.
Jake pegou o controle da televisão e colocou no canal das notícias, havia um alerta de emergência.
" Permaneçam em suas casas até novas orientações. "
No mesmo instante o celular de Rebeca tocou. Ela atendeu o telefone já se colocando de pé, aquele alerta e o chamado de Jake ao trabalho só poderia significar que algo grave estava acontecendo. Várias informações surgiram em sua mente em um segundo enquanto ela ia até o quarto com o telefone no ouvido.
Estavam em guerra, estavam atacando, era tudo o que ela conseguia pensar.
— Segunda Tenente Kline? — Perguntou a voz de um homem. — Aqui é o Capitão Jameson, estamos convocando todos os agentes para o centro militar em Boston.
— Sim, senhor. Estou a caminho. — Ela respondeu com firmeza enquanto já tirava o uniforme do guarda-roupa.
Jake surgiu na entrada do quarto e a olhou preocupado.
— Segunda Tenente Kline, não pare no caminho, isso é uma ordem.
E desligou.
— Fui chamada para o centro militar da cidade. — Ela falou apressada enquanto começou a se trocar.
— Tem alguma coisa acontecendo, Becca. — Jake abriu o lado dele do armário retirando o coldre com a arma e o colocando na cintura. — Me ligaram da delegacia pedindo reforço e um segundo depois começaram a gritar para eu não ir e correr…
Rebecca calçou os coturnos e em seguida fechou a jaqueta.
— Você vem comigo, Jake. Algo aconteceu na delegacia, não é seguro até sabermos o que realmente está acontecendo . — Ela pegou a arma que guardava na escrivaninha ao lado da cama.
Jake a olhou surpreso, mas não questionou no momento. Os dois desceram até a garagem e entraram no carro. Jake foi no volante por hábito, manobrou para seguir a rua e foi quando Rebecca viu Charlie, o filho dos vizinhos.
A família Williams morava na casa ao lado, Holly e Peter eram pais de Charlie que tinha seis anos e adorava jogar bola no quintal com Jake em suas folgas. Fizeram um churrasco de despedida para Rebecca antes dela ir para o Iraque e no dia anterior haviam a recebido com uma torta de boas-vindas.
Em um primeiro momento, Rebecca estranhou ver Charlie brincando no gramado do lado de fora tão tarde. Então percebeu que Holly estava no gramado com ele. Enquanto o carro passava pela casa devagar, a cada segundo o cérebro de Rebecca ia processando o que estava vendo.
Charlie sobre o corpo ensanguentado de Holly devorando o seu rosto.
— Acho que estou tendo um episódio de TEPT. — Rebecca murmurou, sua voz soou distante para ela mesma.
— O quê? Agora? — Jake a olhou por um instante, seus olhos claros em alerta e analíticos. — O que está sentindo?
— Eu vi… eu nunca tive um episódio assim, era mais crises de pânico. — Rebecca podia sentir o gosto da bile subindo, o coração palpitando e todos os sinais das suas crises voltando.
Começou a chover, a chuva calma e fria de outono que ela adorava. Tentou se concentrar nisso, a chuva era real. Charlie devorando o rosto de Holly não era real. Um baque alto fez Jake freira de forma brusca e um corpo estava sobre o carro. A pessoa acertou o vidro com força fazendo Rebecca reagir automaticamente.
Ela pegou a arma e abriu a porta do carro, apontou a arma para a pessoa e enquanto a chuva aumentava caindo gelada sobre eles, ela identificou o cara sobre o carro como Carl, o dono do mercadinho na esquina.
Ele continuou com o rosto colado no vidro, sua mão fechada em punho bateu no vidro novamente.
Do outro lado, Jake saiu do carro armado também.
— Carl, você está bem? — Rebecca perguntou. Saía do carro, por favor.
Ele levantou a cabeça meio devagar, meio desengonçado, como se de repente tivesse esquecido de como movimentar o pescoço. Era algo estranho, algum lugar na mente de Becca identificou que algo naquele comportamento estava fora do normal.
— Puta merda! — Exclamou Jake.
Carl abriu seus olhos leitosos, havia algo estranho saindo de sua boca, como vários tentáculos que lembravam Rebecca de uma planta. O lado esquerdo da mandíbula estava completamente aberto, era possível ver os dentes dele.
— Carl, vamos levá-lo ao hospital. — Jake declarou sem deixar de manter ele na mira.
Rebecca sentia a chuva cair pesarosa sobre eles, podia sentir o dedo preparado no gatilho pronto para responder mesmo se o seu cérebro não entendesse ainda o que estava acontecendo. Seu coração deixou de bater rápido, se tornou lento e um zumbido no seu ouvido bloqueou todo o resto.
De repente, Carl era o seu inimigo.
Em um instante de terror, Carl soltou um som gutural e se lançou contra Jake. Rebecca atirou enquanto o corpo de seu vizinho caía sobre seu marido no meio da rua. O sangue se misturou com a água da chuva que escorria pelo meio fio.
A CHUVA CAÍA EM FORMA DE GOTAS PESADAS QUE ENLAMEAVAM O CHÃO DO PORTÕES. A mulher que estava em seu turno de guarda permaneceu em seu posto ignorando com facilidade as roupas molhadas. Há muito tempo atrás havia aprendido a suprimir certas sensações para manter o foco.
Para Rebecca Kline, havia muito mais a suprimir além das sensações.
Haviam pesadelos, arrependimentos e dores. Tudo isso condensado em um amálgama de pensamentos que ela negava com sucesso durante o dia, mas que tomavam a sua mente no silêncio da noite - e por muitas vezes na chuva.
A noite chuvosa resgatava em sua mente um espaço que ela não conseguiu ignorar durante aquele turno. A arma em suas mãos deixou de ter textura, a água que caía em seu corpo deixou de ter temperatura, e apesar de seus olhos estarem bem atentos pelo perímetro, outra cena se desdobrava por trás de seus olhos.
Uma outra vida às vezes retornava com um lampejo de quem um dia ela fora. Uma jovem apaixonada que se casou com o namorado que teve no colegial, começaram uma família e uma carreira cedo. Aos dezoito ela havia iniciado seu treinamento tático, sempre teve a disciplina necessária para seguir a carreira militar - era algo que vinha de família. Sempre soubera como a vida seria, sabia que teria seu marido e filho, uma carreira boa que a permitia cuidar da família e a mantê-los em segurança.
Ela acreditava que poderia mantê-los em segurança. Mas descobriu que mesmo tendo a certeza de quem ela era e o que queria desde cedo, sua vida planejada não seguiria o curso esperado diante do fim do mundo.
A arma pesava em suas mãos, mas não mais que a agonia em seu peito. Ainda assim era uma agonia conhecida, familiar, depois de tantos anos repassando as imagens em sua mente. Olhou para a placa na entrada do perímetro e recordou quando acreditou que o governo militar poderia fazer alguma coisa.
" FEDRA ".
Mas destituindo todos os braços do governo e controlando precariamente a população, não havia alimentação adequada e menos ainda saúde. Eram apenas zonas de controle para manter a humanidade definhando. E por isso, Rebecca fazia o fazia, porque tinha apenas um objetivo muito claro: encontrar uma cura, custe o que custar.
De todas as sensações que ela suprimia em seu corpo, uma ela não deixava passar desaparecida nunca. O metal gelado do pingente dos Vagalumes se escondia em seu peito por baixo da blusa, um lembrete constante de qual era a sua missão.
notas: aqui está o nosso primeiro vislumbre da Rebecca. estou tão ansiosa para contar mais sobre ela. já comecei o primeiro capítulo!!! espero que tenha ficado bom para um início. vejo vocês no primeiro capítulo! muito obrigada por começarem essa jornada comigo.
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