37. Como manter a suspensão de incredulidade?
#pratodosverem | Descrição da imagem: diante de uma prateleira com livros, o autor aparece com os olhos vendados com um lenço vermelho e a mão no queixo em pose pensativa.
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Na coletânea "Dicionário do viajante insólito", o escritor brasileiro Moacyr Scliar cita o poeta e ensaísta inglês S. T. Coleridge ao explicar como "that willing suspension of disbelief" ("aquela momentânea suspensão de incredulidade", em tradução livre) é uma premissa essencial para que tanto o escritor quanto os leitores abandonem a realidade. Em outros termos, é o meio pelo qual um texto consegue captar a atenção do público de tal modo que as pessoas se esqueçam de onde estão e deem crédito àquele universo.
Em especial em livros de ficção fantástica, a suspensão de incredulidade é a chave entre uma narrativa que soe verossímil e um completo desastre. Imagine, por exemplo, o impacto que seria se séries como "Harry Potter", "Crepúsculo", "Percy Jackson", "Senhor dos Anéis", ou os livros de terror do Stephen King ou as obras de mistério de Agatha Christie, não convencessem os leitores de que aqueles personagens, suas ações e locais onde pisam, podem ser verdadeiros? Seria um abalo no sucesso.
Cada um dos personagens dessas obras conseguiu encantar os leitores de tal modo que eles ganharam vida própria; tornaram-se palpáveis, plausíveis, verdadeiros. Você sabe que é algo fantasioso, contudo, a sensação de imersão é tamanha que aquelas personas fictícias existem para nós. Você as encontra no olhar de alguém, no jeito de andar de uma pessoa, em uma situação que você vivenciou, em uma notícia no jornal.
No entanto, não pense que narrativas que se passam em cenários, digamos, mais realistas não demandem esse cuidado.
Mesmo um livro baseado em fatos reais, em cidades conhecidas e com personagens verdadeiros, um livro biográfico, por exemplo, precisa cuidar dos níveis de credulidade do texto. Por mais que haja a vantagem de os leitores "comprovarem" a veracidade daquelas informações e de que o mergulho na obra seja mais imediato, o modo como a narrativa é construída pesará no crédito ou no descrédito depositado naquela obra.
Por exemplo, autobiografia de Fernanda Montenegro, "Prólogo, Ato, Epílogo". O livro de memórias da atriz traz informações factíveis. Isso é inegável. No entanto, mesmo diante disso, a organização de uma linha temporal de eventos, a quantidade de detalhes naquilo que a artista narra, o fato de ela trazer nomes de pessoas que vivenciaram aqueles momentos com ela e fazer um paralelo com o contexto histórico da época, o sentimento como ela conta essas memórias, tudo contribui para que nós "compremos" esse relato.
Assim, é preciso ficar atento a alguns focos nessa busca pela suspensão de incredulidade:
1) Cuide para que o teu livro não tenha falhas de continuidade. Quer fazer um leitor duvidar da tua trama? Fale sobre um personagem e esqueça dele nos próximos capítulos. Ou pior: erre o nome da protagonista. Uma regra básica da escrita criativa é: você deve ter cuidado com tudo o que você coloca no texto. Se, por exemplo, o teu protagonista está em um quarto, olha ao redor e você tirou um tempo para descrever com minúcias um baú velho, algo no leitor despertará para esse objeto. É a técnica de iluminação, algo que explicarei em breve. Portanto, tenha cuidado para não "jogar luz" em personagens, objetos, ações, cenas que não levarão a lugar algum. Uma coisa é você enriquecer o teu universo, outra é você iluminar cada mínimo detalhe ao ponto de o público não saber, afinal, o que é relevante ou não;
2) Revisão. Sim, ela mesma! Principalmente no Wattpad, o fato de o texto conter muitos erros ortográficos e gramaticais faz com que o público comece a emergir do texto a todo o momento para corrigir erros. Aí, não tem qualidade de trama que supere o descaso com a língua portuguesa. Quer coisa mais irritante do que você estar imerso em um livro e de repente se deparar com um parágrafo cheio de erros gramaticais? Por mais tranquilo que você seja, por mais que não se importe com esses detalhes, o excesso de erros cansa a leitura. É um fator psicológico. Quando lemos, não o fazemos apenas conscientemente, mas também subconscientemente. Dessa forma, teus olhos captam algo, você não se importa, mas o teu cérebro absorverá aquilo. Dali a algum tempo, o cansaço chegará;
3) Balanceie a descrição. Pouquíssima descrição dificulta a imersão, excesso descritivo cansa e faz o público pular linhas e parágrafos. Simples assim. Para conseguir um balanceamento, leia o texto em voz alta, use leitores de texto ou peça ajuda de leitores betas para te indicarem em quais partes eles sentiram a atenção se esvair;
4) Use os ganchos. Sabe aquele final de capítulo que nos deixa com o coração na mão e agoniados para ler mais e mais e mais? Pois então: os ganhos de uma trama são fundamentais para manter a suspensão de incredulidade. Você prende o leitor e o impulsiona para os próximos capítulos. É diante disse que um roteiro prévio é essencial para qualquer texto: você só constrói bons ganchos se tiver o "mapa" da tua história em mãos. Algo que acontece muito aqui no Wattpad é a pessoa ter um bloqueio, moldar conflitos mirabolantes no meio da trama para chacoalhar os leitores e depois não saber para onde ir com a narrativa. Resultado: tramas que não encantam, livros incompletos, mais bloqueio criativo e frustração;
5) Deixe perguntas. Uma narrativa é feita de perguntas. "Para onde o protagonista vai?" "O que vai acontecer agora?" "Por que fulano fez isso?" "Qual o objetivo dela?" "E se essa magia falhar?" O segredo é responder cada uma dessas questões aos longo dos capítulos e manter aquele clima de suspense para fazer com que os leitores anseiem pelas respostas. Evite deixar perguntas sem respostas, a não ser que você tenha isso planejado;
6) TickingClock. A técnica do "ticking clock" nada mais é do que colocar na trama algo que dê a sensação de que o tempo está acabando. O exemplo mais clássico é a série "24 horas", onde o agente Jack Bauer corre contra o relógio para salvar o dia. Não é à toa que fez tanto sucesso. Um "ticking clock" bem elaborado fará o teu público correr junto com a protagonista, chorar junto como personagem para resolver aquele fardo. E não precisa ser necessariamente um relógio, um objeto. O "ticking clock" pode ser, por exemplo, algo mais genérico ou metafórico. No filme "A Vila" (2004), o efeito vem quando a protagonista tem de solucionar mistérios para salvar o amado que está à beira da morte. Na série de filmes "Vingadores", o efeito vem pela busca dos heróis para conter vilão Thanos. No livro supracitado da Fernanda Montenegro, o "tickingclock" está diluído no fato de querermos absorver as informações que ela nos passa para sabermos como a atriz chegou aos 90 anos de idade com tanto conhecimento. Dê ao teu personagem um objetivo claro e faça-o correr em busca desse objetivo. Os leitores correrão junto.
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