35. Quais as histórias da tua cidade?
#pratodosverem | Descrição da imagem: ao fundo, vê um mural feito com fitas azuis e brancas que formam o contorno dos casarões do Centro Histórico de São Luís. Em letras garrafais, lê-se a frase "Nosso centro". No canto esquerdo da fotografia, vemos um lampião do século dezenove. Em primeiro plano, sentado em um banco de madeira, vê-se o autor. Ele usa bermuda jeans azul, camisa cinza, chapéu amarronzado e uma mochila vermelha. Está de óculos escuros e sorri para a câmera.
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Eu falo muito que em todas as cidades, por mais "sem sal" que pareçam (ou que nossa mente assim julgue), em todas as cidades há histórias esperando para serem contadas. Somos muito condicionados a ver apenas o extraordinário como o foco narrativo e nos esquecemos da vida cotidiana; do olhar voltado para a simplicidade de nossa vizinhança. Olhamos para a grandiosidade de "O Senhor dos Anéis", por exemplo, e ignoramos a grandiosidade plausível de um "Vidas Secas" ou de um "Capitães da Areia". Passamos anos sob uma saraivada sem fim de conteúdo estrangeiro que nos condicionou para o que seria "o belo" - e tal beleza, por anos, passou longe do Brasil. Enaltecemos muito o que não é nosso.
E o Wattpad evoca muito desse sentimento.
Há uma tendência na plataforma para narrativas passadas em outros países, em especial nos Estados Unidos. É um fato. Abra a busca, confira os rankings e verás como as terras norte-americanas são enaltecidas. Isso sem contar os milhares de livros com cenários de montanhas nevadas ou aqueles cujas histórias se passam em um Brasil americanizado, a começar pelos nomes e pela aparências dos personagens. Agora, com a ascensão dos grupos sul-coreanos (o k-pop), a Coréia do Sul também começou a aparecer com mais constância nessas narrativas. Japão, Reino Unido, França, Canadá, China também são comuns.
Façamos um parêntese rápido: do continente africano, ninguém fala, né? A África não é pop, não é? Mas talvez agora seja por causa da Beyoncé... Não é assim que funciona: alguém lá fora faz algo e nós aqui copiamos. Os povos indígenas daqui, então, foda-se! Quem se importa?! Talvez, quando alguma celebridade super hiper mega famosa fizer algo sério envolvendo o tema, comecem a escrever sobre eles...
Enfim, voltemos ao cerne deste capítulo. Fica a pergunta: onde está a tua cidade? Onde estão a tua vizinhança, os pormenores do teu estado, as tradições culturais de onde tu moras? Ao invés de um "Joseph" genérico, um "José" reconhecível não seria mais atraente? Uma paisagem aí, da tua região, já apreciada pelos teus olhos, não seria melhor descrita do que uma distante vista apenas por imagens de internet?
Imagine a força de uma narrativa cujos sentimentos e sensações são reais, pois tu experimentaste cada uma delas! Garanto que boa parte dos problemas com descrição seriam solucionados, afinal, qualquer dúvida poderia ser sanada com uma simples ida ao local. Poderias ir aos Alpes suíços de vez em quando só para descrever um par de montanhas?
E mesmo a fantasia pode se passar no Brasil, sabia? Eu escrevi "O Bailarino de Arcéh" baseado em características do Maranhão, aqui mesmo de São Luís, e o resultado foi tão bom (ou melhor) do que se eu tivesse pendido para paisagens estrangeiras. Até a neve e a primavera que há no livro, mas não há no Maranhão, vieram da experiência que eu tive quando viajei para o Rio Grande do Sul.
Ano passado, um menino me revelou que não conseguia escrever sobre o Brasil porque "aqui só tem problema" e ele queria "dar ao público uma fuga". Que horror é viver em um país que é o único no planeta que tem problemas, né? Somos um oásis de merda no meio do paraíso. Não temos nada de bom? É sério? Nada mesmo?
Pois saiba de uma coisa: a culpa do país estar assim é NOSSA. E quanto mais nos afastamos, quanto mais caímos em fake news, quanto mais nos deixamos enganar por essa sensação de que os países dos outros, as histórias dos outros, são melhores do que a nossa, piores as coisas ficarão.
NÓS somos culpados pelo o que está acontecendo. Eu, você, todos nós. Algo que sempre repito é: os políticos de um país só representam aquilo que o povo é. E aqui, no nosso caso, como escritores e escritoras, no momento em que você valoriza as histórias dos países dos outros, você joga mais pedras para desvalorizar a nossa cultura. E é uma hipocrisia sem tamanho reclamar de Deus e o mundo e chegar no Wattpad para escrever sobre a Coréia do Sul, a Inglaterra ou seja lá que país for.
Um norte-americano escreverá melhor sobre Nova York do que você que nunca pisou lá. Mas tu escreverás melhor sobre o Brasil, sobre a tua cidade, do que ele que nunca pisou aqui.
É possível sim escrever com foco no Brasil.
Nós já vivemos num constante incêndio cultural. Depois de museus destruídos, livros proibidos, filmes ignorados, secretárias de cultura incompetentes, desmonte de instituições e peças de teatro censuradas (e falo de 2020, não de 1970!), a nossa parte nessa luta está em valorizar o Brasil. E nosso ofício como escritores, nossa arte de escrita, também é um ato político.
Precisamos exumar a nossa própria história antes que ela vire cinzas.
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