Capítulo LXXIII
O sol ainda não tinha se posto, o crepúsculo se aproximava trazendo consigo as novas regras do dia, as regras que imperavam no noturno, mas ele ainda não tinha chegado. O coelho deixou para trás a estonteante figura, que ainda não tinha entrado no descampado, e correu apressadamente para junto de Frieda, parando ao lado dela. Trocaram os olhares. A garota marchou cautelosamente para o centro da campina, seu amigo a acompanhou.
– Aquela é a Besta Cardeal do Sudeste? – Perguntou em voz baixa. – Parece apenas uma bola de fogo flutuante, ainda que eu consiga sentir a pressão de seu poder.
– Seja paciente. – Exortou telepaticamente. – Tente não ser desrespeitosa. – Aconselhou.
O objeto incandescente surgiu dentre as árvores e flutuou rapidamente até o centro do local em que Frieda estava, a esfera flamejante parecia feita de fogo-fátuo de fato, mas alternativa entre o dourado e chamas mais azuladas.
A estranha coisa parou no ar, intensificou seu brilho e então o dissipou, de repente já não era mais uma esfera de fogo e sim uma entidade semelhante a uma mulher. Ela tinha a beleza de uma fada, mas possuía entre três e quatro metros de altura. Sua pele era preta como a noite, seus cabelos longos esvoaçavam com o vento e eram radiantes como se cada fio fosse forjado a partir dos raios de luz do sol. Padrões do mais fino ouro estavam desenhados em seus braços, pernas e pescoço, também se faziam presentes em suas pálpebras como um delineado e abaixo dos olhos, um símbolo dourado ficava em sua testa. Seus olhos brilhavam tal qual o seu cabelo, uma coroa dourada jazia em sua fronte e argolas de ouro adornavam suas orelhas. A criatura feminina de beleza até então inconcebível, trajava um elegante vestido de seda na cor branca e se manteve pairando a centímetros do chão com os pés descalços.
Ela olhou para Frieda de cima, clara era a sua altivez e superioridade.
– Não só tem a audácia de vir à terra da qual foste exilada, como ainda tem a ousadia de desafiar-me, uma das oito Bestas Cardeais? – Aquele era um questionamento retórico, com contida curiosidade. – Diga-me, antes que te reduza a inexistência, é arrogância ou desespero aquilo que te move?
– Um pouco dos dois. – Frieda respondeu com cordialidade, mas ao olhar de soslaio para seu amigo recebeu uma expressão que lhe questionava se não teria enlouquecido.
– Coragem não te falta. – Comentou a besta. – Contudo, se for verdade que deseja me desafiar, é inteligência o que te falta. – Desdenhou. – Realmente veio aqui para me desafiar?
– Precisamente.
– Não vejo prazer em golpear os mais fracos, imagino que seja o mesmo para meus demais irmãos. – Externou. – O que acredita que vai conseguir se, em seus mais irrealizáveis sonhos, for capaz de me derrotar?
– Um caminho para ficar mais forte. – Respondeu a jovem. – Estou disposta a recuar em meu desafio se concordar em me ensinar, mas se recusar, não terei outra maneira de conseguir o conhecimento a não ser pela prática.
– "pela prática"? O que poderia aprender enquanto agoniza em dor? – Frieda não respondeu. – A essa altura deve saber sobre o passado compartilhado por nossas espécies. Eu poderia mentir e lhe dizer que não me ressinto, mas reservo as mentiras aos humanos e aos Haidu, é provável que até mesmo os deuses façam uso de tal artifício. Contudo, nós, as Bestas Cardeais, não mentimos.
– Ótimo, eu gosto quando não mentem para mim. – Disse Frieda. – Quanto a nossa questão, nos vejo em um impasse. Eu busco aprender e me fortalecer ainda que para isso tenha que lhe desafiar, você por outro lado não quer lutar contra mim por me ver como alguém mais fraco, ademais se ressente o suficiente para não compartilhar espontaneamente algum conhecimento que vá tornar-me mais forte. – Externou. – O que faremos?
– Não nego que vim até aqui movida pela curiosidade, mas não é nada além disso. "O que faremos?", você pergunta, entretanto eu posso simplesmente ignorar a sua existência e retornar para a paz do meu lugar. – Proferiu.
– E eu posso simplesmente dar o melhor de mim para acabar com essa sua paz. – Provocou Frieda.
– Se assim o fizer, então terei justificativa para erradicá-la desse lugar.
– Não fará isso. – Afirmou a mulher.
– De onde vem toda essa confiança?
– Seu ressentimento pende mais para a tristeza do que para a raiva. – Falou a jovem. – Se odiasse os humanos de fato, sequer teria me dado a chance de falar qualquer coisa. Você não vai me "erradicar".
A besta se calou por um momento.
– Muito bem humana, você conseguiu. – Falou. – Para não dizer que fui injusta, lhe darei vantagens nesse embate. Veremos até onde vai sua ousadia. – Externou contidamente. – Senhor... coelho. – Pensou um pouco antes de dizer o nome. – Você será o juiz, confio em sua honestidade. – Ela voltou-se para Frieda. – Declaro que não usarei a minha forma intangível (a bola incandescente), que não usarei ataques fortes o bastante para alterar significativamente a geografia do local, que não irei esquivar de seus golpes e que, se porventura, me fizer descumprir uma dessas condições, admitirei a derrota.
A medida que ia ditando as condições, a Besta Cardeal foi reduzindo gradativamente de tamanho, até alcançar cerca de um metro e oitenta de altura. Sua forma mais compacta deixava a possibilidade de se interpretar que seu poder também fora parcialmente selado.
– Lhe concedo mais uma vantagem, fique a vontade para se preparar apropriadamente e receba também o benefício do primeiro golpe. – Disse a criatura.
Sem questionar ou perder tempo, a jovem segurou firme a Guan Dao e concentrou-se. Ela não pouparia nada em uma luta de um contra um com um ser tão poderoso. Iria contudo desde o começo, já que também sabia que não era nada inteligente se colocar em uma disputa de heilig com uma criatura que era essencialmente heilig.
– Ni seleon alzo xo ibi ko, iso erã funeva pavire sund ire kovuna un mave dur ibi deper freu ni ocasinu. – Entoou ela. – Reva guil ada av nano jiu un birene. Tengo, nagi, viratis, funko, rito xu ceun heilig, irgiu zea alzo fogita dur ibi hoban iube. Hamatsuren. Rito xu funko: – A criatura assistiu pacientemente, olhando para o círculo sagrado que tomava forma. – Teran uni Wanderfalke.
Como acordado, assim que concluiu a oração, Frieda tomou a iniciativa, e após dar o primeiro passo simplesmente sumiu de vista e reapareceu perto do oponente golpeando-o com um ataque de estocada, a Besta de Cardeal evitou o ferimento em seu abdômen como se dançasse ao ritmo da labaredas do fogo, desviando a lâmina com as mãos. Surpreendeu-se com a velocidade da humana diante de si, mas não recebeu tempo para pensar nem discorrer acerca disso, Frieda já girava sobre os calcanhares, mudando rapidamente de estocar para um corte diagonal com sua Guan dao. Outra vez a criatura o evitou com maestria.
A princípio, a besta dourada assumiu uma postura defensiva, assimilando cada movimento da jovem, assistindo como ela de fato estava evoluindo a cada golpe, percebendo que Frieda não usava um estilo único e linear de luta, e sim um maneira que misturava vários estilos de artes marciais, usando métodos que não denunciavam padrões, adaptando-se ao oponente, devorando o seu oponente. Como o fogo.
A Besta Cardeal abandonou a troca desenfreada de golpes e se afastou, fazendo com que a luta cessasse por um momento.
– Não é ruim. – Falou ela com claro interesse. – É difícil ler por não haver um padrão, mas é desajeitado e cheio de vícios. – Proferiu tranquilamente.
Sim, frente aquelas palavras Frieda apenas confirmou o que já sentia enquanto lutava: A entidade sequer a estava enxergando como uma potencial ameaça. É provável que aos olhos da antiga criatura, aquele combate não fosse diferente de uma luta entre um adulto e uma criancinha franzina. Apesar de já saber que haveria tal disparidade, e da criatura não ter lhe falado algo realmente ofensivo, a jovem mulher ficou levemente irritada perante sua constatação.
– Apesar de usar movimentos bem fluidos, eu vejo a agressividade característica de quem está habituado a lutar usando o fogo. – Disse a Besta Cardeal. – Imagino que reconheça o abismo de diferença entre nós e por isso esteja se resguardando em me mostrar suas chamas, mas ainda assim... – Divagou, desviando um pouco o olhar. – Eu quero ver o seu fogo. É frustrante assistir quem é chamas não se deixar incendiar.
– Que sentido há em fazer uso de algo que julgo ineficiente apenas para satisfazer seus anseios? – Frieda flexionou os joelhos e posicionou sua arma, preparava-se para atacar outra vez.
– Sentido? O fogo não se importa, ele apenas queima. – Respondeu como se passasse uma informação óbvia.
A mulher ignorou a fala e simplesmente reduziu a distância, infringindo outro golpe.
– Sacré un Sturm! – Simplificou a oração.
A criatura não só desviou a lâmina acertando o cabo da arma com o pés, como aproveitou a oportunidade para chegar ainda mais perto e desferiu um golpe com a palma da mão que acertou o abdômen de Frieda e a jogou a bons metros.
– Raio não, eu quero ver fogo. – Proferiu descontente.
A jovem sentiu arder e queimar como se estivesse sendo acertada com uma pedra recém tirada do fogo, ela girou no ar e caiu de pé sentindo a dor e o desconforto da queimadura, mas uma vez que olhou para o local atingido, foi surpreendida com a constatação de que nem mesmo as suas roupas estavam queimadas. Aquele único golpe foi capaz de lhe causar muito dano interno, seus órgãos, músculos e costelas reclamam.
– Nada mal. – Falou a Besta. Estava evidentemente surpresa. – Seus instintos são apurados como os de um animal habituado a ser alvo de caça. Sequer precisou raciocinar para expandir o heiling com atributo de fogo e reduzir o dano. Ainda assim é inesperado que tenha sido efetivo o bastante para que ainda consiga se mover após receber aquele golpe.
Frieda atacou de novo e de novo, usou raio e vento a maior parte do tempo, então, quando já estava ficando sem opções, apelou para o fogo. Ao ver a cor de suas chamas, a Besta Cardeal não escondeu seu interesse, descaradamente instigou a jovem a usar mais e mais daquelas chamas.
A mulher se permitiu admirar a maneira como a criatura manipulava as chamas, tentava aprender com tal oportunidade. Era como se o heilig fosse parte dela, sem círculos sagrados ou orações, a energia fluía, não parecia que estava sendo controlada, dominada ou conjurada, apenas redirecionada, tal qual o amontoado de energia que dão origem às chamas naturais. Seus movimentos fluidos e graciosos, leves de fato, mostravam o caminho que aquele heilig manifestado em chamas deveria percorrer.
A cada troca de golpes a mudança no humor da criatura ia ficando cada vez mais evidente, ela claramente estava lutando motivada por curiosidade e se divertia a cada vez que Frieda lhe mostrava um novo golpe, uma nova oração, uma nova estratégia.
– Você parece mais animada a cada momento. – Externou Frieda. Colocou-se de pé após receber mais um golpe. Tentava se recompor.
A mulher estava desgastada e sentia muita dor, em alguns momentos perdeu e rapidamente recobrou a consciência. Teve motivos para crer que a seiva da árvore a estava salvando em diversos momentos, que seu corpo estava mais resistente, que se curava ainda que lentamente do que ela gostaria que curasse e que aquele lugar parecia rejeitar a morte sempre que ela recebia um golpe que poderia ser fatal.
– Pareço? – A criatura olhou para suas mãos por um breve tempo e então voltou a encarar Frieda. – Fazia um tempo que não lutava com ninguém, desde que os deuses e os... desde que vocês se foram, nós, as Bestas Cardeais, também nos afastamos uns dos outros. Quase não conversamos e, é claro, não lutamos. – Falou com sutil tristeza. – Sabe? A inquietude faz parte da natureza do fogo, natureza essa que o raio também herdou, não ter ninguém para brincar é tão... eu nem sei mais que nome dar a esse sentimento. – Confessou.
"Brincar", não é? Sim, apesar da atitude que a besta havia demonstrado no primeiro contato mais cedo, desde que aquele combate começou Frieda sentia que mal estava sendo levada a sério. Por alguma razão, ela compreendia a Besta dourada e já não estava mais irritada.
– Muito bem, se não se importar, vou continuar brincando com você. – Falou a mulher. Uma atitude bem ousada vindo de alguém que mal se aguentava em pé.
Ao olhar para o tipo de expressão que a criatura fazia, Frieda viu algo que definitivamente não esperava ver quando recebeu a missão de enfrentar as Bestas Cardeais. A criatura dourada já não escondia nem tinha dúvidas quanto a sua felicidade, era como alguém reencontrando um amigo que a muito não via, matando uma saudade que sequer recordava possuir. Sim, a Besta Cardeal do Sudeste, evidentemente amava a humanidade.
O combate foi reiniciado, agora era como se irmãos lutassem, não haviam faíscas de quaisquer sentimentos adversos. Até mesmo qualquer acordo ou condição anterior foi momentaneamente esquecido.
O coelho assistia protegido em uma das margens da campina, diante dos seus olhos o azul e o dourado colidiram, se ignorasse o som e o impacto, vez por outra, podia jurar que dançavam em pleno ar. Uma visão perigosamente bela.
A noite passou e a manhã marcou sua presença, apenas quando Frieda já não era mais capaz de se manter de pé de fato é que o combate foi dado como encerrado.
– Isso foi muito divertido. – A Besta confessou animada.
– Estávamos em algo tão intenso que esqueci de te perguntar algo importante. – Disse Frieda.
– Que seria? – Incentivou.
– É estranho seguir te chamando de Besta Cardeal do Sudeste. Você tem um nome? – Perguntou.
Por um instante a criatura olhou diretamente para o passado, aquilo a levou a fechar os olhos com nostalgia.
– Sim, os humanos sempre tiveram o hábito de nomear a tudo, é claro que me dariam um nome. Um belo nome. – Falou docemente. – Me chamam de Goldene ou Mutter von Gold*.
– Muito bem, vou chamar de Goldene. – Falou ela. – Me apresentando apropriadamente, meu nome é Frieda.
Goldene a olhou por um momento, ponderava se a questionava ou não. Contudo, como os demais que conviveram com os humanos a muito tempo atrás, ela também queria saber.
– Frieda, sei que me conheceu a pouco tempo, mas posso te perguntar algo que me consome a muito tempo?
– Fique à vontade.
– A liberdade é tão importante assim?
Frieda pensou um pouco antes de responder, mesmo para ela o conceito de liberdade ainda não estava bem desenvolvido, mas havia algo em seu coração, algo que a fez lembrar do que sentiu quando seu pai lhe levou para Gesteck e lhe deu uma vida, aquilo que ela sentiu quando se viu rodeada de irmãos e pessoas preciosas, bem como se sentiu quando as coisas lhe foram tomadas. Ainda que ela não tenha saboreado a absoluta liberdade, pelo menos não sem moderação e por tempo ilimitado, Frieda deixou que a resposta naturalmente deixasse seus lábios.
– Sim, ela é.
A entidade olhou para o céu, então encarou as próprias mãos e olhou para a mulher.
– O fogo não se importa com futilidades, ele apenas queima. – Disse ela. – Mas se você diz que aquilo que os humanos foram buscar lá fora não é fútil, então lhe ajudarei a descobrir a força do fogo.
Nos dias subsequentes, Frieda recebeu treinamento da Besta Cardeal Sudeste. Às vezes a criatura acabava tendo que ser relembrada dos limites do corpo humano, isso para que não acabasse por quebrar a jovem mulher. Os treinos eram pesados, extremos e dolorosos, mas ainda assim Frieda fazia o melhor que podia, transpunha seus próprios limites vez após vez e se preparava para seu próximo confronto. Desta vez contra a Besta Cardeal Sul.
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*Fiquei em dúvida entre usar "von" e "des", quem souber melhor pode me ajudar.
E aí? Conseguiu descobrir qual a inspiração para a Besta Cardeal do Sudeste?
A Besta cardeal do Sudeste é baseada na lenda da Mãe de Ouro. "A Mãe de Ouro é associada diretamente a dois fenômenos naturais, a entrada de meteoros na atmosfera e o chamado fogo-fátuo." (Fonte: Brasil Escola).
Para quem não lembra a tradução da oração "Teran uni Wanderfalke" é a seguinte:
No caos tudo é um só, eu sou raio luminoso indo ao encontro de outros em um único ponto na escuridão. Não há nada para mim além de unidade. Terra, água, fogo, raio, ar e o puro heilig, aqui são todos embriões em um mesmo ventre. Convergência. Ar e raio: Mergulho do Falcão peregrino.
E é isso meu povo. Espero que tenham gostado, em breve volto com mais. bjs <3
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