Capítulo LXIII
Voltar para casa é uma ação que traz sentimentos diversos, muitos buscam nesse ato a satisfação de finalmente poder descansar após uma longa e exaustiva viagem, é natural que o pensamento de "finalmente repousarei meus pés e cabeça" surja na mente de alguns. Contudo, também existem aqueles que veem no ato de voltar para casa um fardo ainda mais pesado que aquele de viajar sem descanso, principalmente quando partiu em grupo e se vê sozinho ao retornar, para pessoas como essas não há a sensação de "finalmente de volta ao lar" e sim a agonia de andar sobre cacos de vidro e pregos no caminho de volta.
O momento em que Frieda compreendeu para onde estava indo foi regado com sentimentos mistos e confusos, aquele era um caminho que a muito ela tinha planejado percorrer com satisfação e não com todo aquele amargor nos lábios e solidão. Talvez Heiko se sentisse mal por guiá-la até aquela situação, mas ele não conseguia deixar de pensar que era necessário para que ela pudesse colocar um ponto naquilo tudo, ainda que a pontuação fosse de reticências.
O cavalo trotava lento e conforme a dupla adentrava Gesteck, os moradores surgiam de suas casas e comércios para prestar suas condolências, aqueles que transitavam nas ruas abriam passagem, todos com o punho direito fechado pressionado contra o centro do tórax, quem usava chapéu teve a decência de retirá-lo da cabeça. Haviam aqueles que choravam e aqueles que tentavam segurar as lágrimas, ninguém ousava dizer uma única palavra, não havia festa, nem música, muito menos uma recepção calorosa, era como se estivessem em um cortejo fúnebre. Frieda seguiu montada, postura ereta e queixo elevado, trazia para a casa toda a honra e dignidade que depositaram sobre ela. Pelo canto do olho ela reconheceu Emilia e Wilbur, ambos choravam, mas o que lhe chamou a atenção foi a criança nos braços de Wilbur, aquela vista acalentou o coração de Frieda mesmo que de maneira ínfima.
O destino da mulher era um só, ela não retornaria para casa, uma vez que não concluiu aquilo que prometeu fazer ao deixar aquele lugar, então só lhe restava mostrar sua face aos seus familiares.
O cemitério estava como sempre, a estátua de Tod seguia zelando pelos falecidos naquele lugar. A mulher desceu do seu cavalo na entrada, o amarrou em um poste e caminhou sem pressa para o interior do local até chegar ao espaço onde tivera sepultado seu pai anos atrás. Frieda ficou estática diante dos túmulos limpos e organizados, sua Guan Dao em mãos. Benno teve o cuidado de sepultá-los da melhor forma possível, mas era evidente que os moradores se revezavam para mantê-los dignos, se é que existe alguma dignidade na morte. O túmulo de Heinrich também estava em boas condições.
A briza balançava as mechas soltas do seu rabo de cavalo, seus olhos sem brilho e vazios fitavam o túmulo à sua frente. O nome de Erna fazia seu peito queimar e o mesmo se repetia conforme ela ia passando de túmulo em túmulo até que parou diante daquele que pertencia ao seu irmão mais novo. Sua expressão apática, trazia a luz a face de alguém que morreu e desejava ter permanecido assim. Não havia lágrimas em seus olhos, mas elas escorriam como sangue sobre a sua alma. O clima estava frio, porém, Frieda podia sentir algo começar a fumegar dentro de si.
Em silêncio, a mulher fechou os olhos e tentou forçosamente voltar para aquele mundo nevado, ela queria revê-los, a saudade em seu coração era tanta que lhe afogava em um infinito de angústia, sem bordas nas quais pudesse se agarrar. Diante dos seus familiares mortos a garota sentiu o pleno vazio, mas aos poucos ele ia sendo preenchido com dor, tristeza e então ódio. Ela não podia se perdoar por arrastá-los para aquela situação com a sua imprudência e má sorte, sim, de fato ela estava convencida de que era realmente amaldiçoada.
– Eu tinha jurado para mim mesma que não perderia mais ninguém, que treinaria e me tornaria invencível para protegê-los. – Falou ao vento.
Ela sabia que meras desculpas não resolveria nada, que ajoelhar e implorar por perdão diante dos túmulos não ia adiantar. Cada palavra dançava com a dor em seu coração antes de deixar seus lábios.
– Eu deveria saber que bem pior que viver sufocada pelo desejo de me vingar era perder vocês enquanto tentava saciar esse desejo. – Expôs ela. – Eu voltaria no tempo três mil vezes se necessário, eu passaria por tudo de novo e de novo, ainda que isso fosse me destruir completamente, se em sequer uma dessas vezes eu pudesse voltar a lutar, viver, comer, ou até mesmo dormir ao lado de vocês... Se em uma dessas vezes eu pudesse lhes salvar. – Deixou escapar. – E agora? Alguém pode me dizer como eu faço para voltar no tempo? – Indagou em ávida angústia. – Eu juro que se eu pudesse trocar... que se eu pudesse mudar tudo, eu ficaria no lugar de vocês. Eu tenho que aceitar que não os terei de volta e prosseguir ainda que sinta essa revolta, esse amargor?
Ela retornou ao silêncio, e enquanto vivia aquele momento de luto, os fragmentos do desespero se unificaram dentro do seu ser, alimentando ainda mais a sua agonia e raiva, nesse instante, um vislumbre dos últimos momentos em vida de seus irmãos naquele campo de batalha lhe vieram à mente, tudo em uma velocidade acelerada, até que a cena parou lhe revelando uma imagem que ela já tinha se obrigado a esquecer, mas que tinha muito significado. Na frente de seus olhos estava Felix, ele sorria e tinha medo, saudades e preocupação naquela expressão sorridente. Aquele sorriso lembrava a Frieda que ele não lhe culpava por nada, ainda que ela se culpasse, Felix dizia sem palavras que Frieda deveria viver não importa o quão dolorido fosse, o seu sorriso deixava para trás o seu último desejo, pedindo que ela ao menos tentasse se encontrar em algum lugar e viesse a se tornar completa outra vez. Havia muito amor por trás daquele sorriso dado sob iminência da morte.
– Mas tenho que seguir em frente mesmo que não estejam aqui, não é? – Divagou. Frieda se deixou perder um pouco no tempo e então retornou a si. – Se é assim, então prometo que jamais irei perder de novo. Cabe a mim seguir brandindo minha Guan dao por mim e por vocês também. Então quando nos vermos outra vez, vocês terão do que se orgulhar e quem sabe até me perdoar. – Palavras de alguém em constante arrependimento. – Agora que não há ninguém além de mim e esse ódio, não morrerei em paz antes de terminar o que comecei. Enquanto houver fôlego em mim eu juro que exterminarei cada maldito Haidu e traidor da humanidade, mesmo sabendo que nada vai mudar eu ainda assim não consigo simplesmente esquecer, eles me feriram da pior forma e eu vou revidar. Esperem um pouco mais, logo os verei de novo. – A mulher reafirmou sua convicção, deixando um pouco de lado as oscilações em sua mente e coração.
Ao abrir os olhos, a imagem de Felix se foi, Frieda se viu olhando para o seu nome escrito na lápide. Inexplicavelmente, sua cabeça pareceu mais leve agora e os seus ombros se encontravam menos tensos, ela ainda se culpava por tudo, mas a culpa que sente é minimamente menor. Sim, ela se perdoou, ainda que só um pouco, uma vez que a culpa recaiu sobre um novo alvo e a garota se tornou convicta acerca do seu objetivo. Nesse momento a mulher sentiu algo se aquecer no bolso de seu uniforme.
Frieda colocou então a sua mão no bolso e apanhou de lá o objeto esférico, a pérola que a divindade deixou para ela, e ao analisar o objeto pôde perceber que sua cor, que antes era roxa, agora assumiu um tom bem claro de azul. O requisito estava cumprido.
Heiko se aproximou de sua irmã e notou a mudança no objeto que ela tinha em mãos, uma vez que ela obviamente já tinha mostrado a ele antes.
– Bom... faz sentido. – Disse ele.
Frieda o encara e ele tenta saber o que ela está pensando.
– Tem alguém que eu gostaria de lhes apresentar. – Fala olhando para os túmulos. – Na verdade vocês já o conhecem, mas não da maneira apropriada. – Ela estendeu a mão para Heiko em um pedido silencioso de que ele chegasse mais perto.
Heiko estava atônito, não tinha se preparado para aquela ocasião, talvez até se sentisse nervoso.
– Esse é o Heiko. – Apresentou. – Apenas Heiko. – Esclareceu após pensar brevemente. – Ele é o meu irmão mais novo, eu sei que pode parecer confuso, mas garanto que ele é alguém confiável. Os conhecendo, eu imagino que estivessem preocupados comigo depois de tudo, mas saibam que esse garoto cuidou de mim diligentemente e se manteve ao meu lado a todo momento, zelou pela minha saúde e me ouviu mesmo quando eu não proferi uma única palavra. Por mais que eu me sentisse solitária sem vocês aqui, ele não se afastou de mim, nem mesmo quando eu desejei ser completamente abandonada. – Falou ela.
O garoto parecia confuso, é provável que um misto de sentimentos o tenham atingido, talvez ele nem soubesse que desejava ser reconhecido até aquele nível.
– Foi difícil aceitá-lo porque muito nele me lembrava de vocês, me lembrava de pessoas que não vão mais voltar. – Ela abraçou o silêncio e sentiu a ânsia causada pela dor mais uma vez. – Ele não permitiu que eu me perdesse e me ajudou a reencontrar um propósito, ainda que o meu novo propósito não seja compatível com o que ele deseja e acha correto. – Frieda olhou então para o seu irmão. – Eu não me arrependo nem por um segundo de ter permitido que ele me visse e chegasse tão perto do que sobrou do meu coração. – Confidenciou.
Nesse momento, Heiko mostrou para Frieda uma nova expressão, uma face que ela viu Erna e os demais lhe mostrarem inúmeras vezes, um misto de amor fraternal e felicidade ao receber gentileza vinda de alguém importante.
– Você não me verá chorar. – Ele fez beicinho e desviou o olhar, estava um pouco envergonhado.
– É realmente uma pena, estou muito curiosa para saber que outras faces verdadeiras você pode me mostrar. – Comentou ela de forma levemente descontraída.
– Não se preocupe, se você se empenhar em viver bastante eu lhe mostrarei quantas delas forem precisas. – Respondeu ele. Heiko ficou em silêncio repentinamente, era como se estivesse checando os arredores sem olhar em volta. – Parece que você tem visita, pessoas comuns possuem uma presença tão fraca. O sol vai se pôr em algumas horas, mas podemos encontrar um lugar para dormir em vez de voltar imediatamente para a capital, se assim você preferir. Tome o seu tempo. – Falou antes de se afastar.
Heiko passou pelo homem sem lhe dizer uma palavra, não o conhecia, mas ouviu coisas boas sobre os residentes de Gesteck, ele sabia que sua irmã gostava daquelas pessoas.
– Já faz um tempo. – Disse a mulher ao recém chegado.
– Frieda Falkenberg, filha de Heinrich Falkenberg, ainda que em um mal momento, sei que falo por todos quando lhe dou as boas vindas de volta a Gesteck. – O homem a saudou.
– Eu agradeço em sinceridade, senhor Burkard. – Frieda disse ao alfaiate.
– É bom vê-la com saúde. – Falou o homem. – Lamento muito pelo ocorrido, para nós foi um grande choque quando vários membros da guilda Stachel entraram na cidade, vestindo branco, escoltando uma carruagem com urnas funerárias. Não houve uma alma que não tenha lamentado e chorado naquele dia. Eu presto minhas sinceras condolências.
Frieda se lembrava muito bem da amizade e respeito que existia entre Heinrich e Burkard, seu pai confiava nesse homem a ponto de deixá-lo a cargo de receber cartas e documentos confidenciais a fim de entregar para ele em momento oportuno, o senhor Burkard era a única pessoa em Gesteck que tinha ciência da origem de Heinrich, mesmo o senhor Gerd, o pai biológico de Erna, não sabia sobre o Meister tanto quanto o alfaiate. Burkard certamente lamentou pesarosamente não só a morte de seu bom amigo, mas também a dos filhos de Heinrich.
– Eu, como a última herdeira de um legado de amor e honra, aceito os seus sentimentos. – Respondeu Frieda.
O homem a analisou um pouco, parecia se lembrar da figura outrora infantil da mulher em sua frente.
– Você se tornou uma grande mulher, qualquer um pode ver, tenho certeza de que seu pai se orgulha da filha que criou, não importa onde ele esteja agora. – Falou Burkard. – Certamente Tod proclamará sobre seu espírito, Ismar intercederá por ele e o Cosmo devolverá sua alma a carne outra vez, sim, ele renascerá e tenho a fé inabalável de que vocês se reencontraram.
– Agradeço pelas gentis palavras.
O alfaiate ponderou acerca de suas próximas palavras.
– Devo lhe dizer que eu tinha a sensação de que você me odiava, pois toda vez que eu vinha entregar uma carta Heinrich tinha que partir em uma missão perigosa. – Externou o homem. – Contudo você nunca disse uma única palavra sobre isso.
– Não é como se eu te odiasse, mas foi difícil entender que você só entregava as cartas e não tinha nenhuma culpa sobre as decisões de meu pai. – Considerou Frieda. – Eu nunca te odiei de fato. – Garantiu.
– É bom desfazer esse mal entendido após tanto tempo. – Respondeu Burkard. – De todo modo, estou aqui para fazer o de sempre pela última vez. – O alfaiate retirou um envelope que estava guardado no bolso interno do seu casaco. – Me foi dito para não tentar enviar isso até você e que só deveria lhe entregar somente se você viesse visitar os túmulos. Se me permite expressar minha opinião, a julgar pelo remetente, acredito que haja informações importantes nesse envelope e que ele não tinha intenção de lhe atiçar caso você tivesse decidido deixar isso tudo para lá e seguido em frente, ou caso você jamais conseguisse se recuperar do choque.
– Você continua perspicaz. – Disse Frieda. – Posso concluir que essa era uma das coisas que meu pai mais gostava em você.
O homem pigarreou e enrubesceu com o elogio.
– Muito lisonjeiro da sua parte. – Falou. – Bom, foi bom vê-la, mas devo retornar para a loja, já está na hora de fechar.
– Muito obrigada senhor Burkard, não poderei me despedir de todos antes de partir então te deixo a cargo de entregar minhas saudações. – Pediu ela.
– Será um prazer. – Falou antes de se retirar.
Frieda voltou a olhar para os túmulos, mas sua atenção foi requerida outra vez.
– Jovem Frieda. – Chamou o alfaiate.
Ele estava parado a certa distância da mulher, deve ter sentido que ainda tinha algo a dizer.
– Gesteck sempre será a sua casa. – Falou convicto. – Não hesite em regressar, não importa quanto tempo leve.
A garota assentiu, algo se moveu em seu interior, era estranhamente acolhedor saber que realmente existia uma local para o qual retornar. O senhor Burkard se foi e Frieda voltou a olhar para onde agora reside a sua família, segurava firmemente o envelope em suas mãos. A mulher tomou o seu tempo e quando já não podia mais suportar a vista, ela se dirigiu a saída e lá encontrou Heiko.
– Vamos! – Disse ao rapaz. – Devo ir a Kamelie imediatamente para ouvir o que a divindade tem a dizer.
– Faz sentido, é melhor do que ir à capital e de lá fazer todo o caminho até a Catedral. – Considerou o rapaz. – Mas me responda uma coisa, por acaso já sabe com que divindade fez contato?
– Eu tenho minhas suspeitas. – Respondeu montando em seu cavalo. – Contudo, uma de suas falas me fez questionar, mesmo que só um pouco, se estou certa.
– Que fala? – Inquiriu Heiko subindo em sua montaria.
– A voz disse sobre si: "não há divindade mais bondosa do que eu, entretanto, não surgiu uma que fosse mais cruel". – Relatou. -- Eu acreditei desde o começo que estava falando com Ismar, mas não consigo visualizar uma realidade em que a deusa falaria algo assim sobre si, uma vez que é conhecida por sua benignidade.
– Mas Ismar também é justiça e a justiça pode ser cruel. – Pontuou Heiko.
– Ainda assim, será que a própria Ismar consideraria um ato justo cruel a depender dos meios usados para alcançar a justiça? – A pergunta de Frieda vagou ao vento. A dupla já trotava para fora de Gesteck.
– Deixemos isso de lado, podemos acabar loucos se continuarmos tentando entender o consciente divino. – Falou o jovem Cavaleiro Sagrado. – O que deveria nos preocupar é o significado por trás dessa fala e seu contexto. Diga-me Frieda, que tipo de acordos pretende fazer com alguém que julga a si como sendo o mais cruel dentre as divindades? – Sua voz transbordava preocupação e um pouco de receio. – Por acaso se esqueceu de que só estou te ajudando porque quero que você fique bem viva quando tudo isso acabar?
– Não seja bobo. – Disse a mulher. – Não pretendo desperdiçar tão facilmente a vida que você tem cuidado por todo esse tempo e que Erna se sacrificou para proteger. – Não dava para saber se haviam meias verdades em duas palavras. – Contudo, não posso ir contra aqueles seres demoníacos com flores ou clavas, preciso de um poder esmagador, algo forte o suficiente para tornar realidade o meu único desejo. – Disse ela. – Algo que uma divindade pacífica não poderia me dar, até porque um deus ou deusa de paz jamais concordaria com as coisas que quero fazer. É questão de conflito de interesses. – Explicou.
Heiko se calou e passou boa parte da viagem assim, ele quis acreditar que Frieda realmente valorizava sua vida, mas não era tão ingênuo a esse ponto.
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Demorei? Sim, mas finalmente trouxe capítulo novo. Agradeço pela paciência. Até a próxima < 3
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