Capítulo LI
Na noite do dia posterior a sua chegada de volta a base, Frieda se esgueirou pelas sombras e foi até o pavilhão do dormitório masculino, então ela buscou pela janela do quarto de Ralf e imitou o canto de um Urutau, uma escolha no minimo curiosa para uma chamada noturna. O rapaz abriu os olhos no instante em ouviu o canto, ele já tinha ideia de quem estava chamando, Leon também abriu os olhos, mas ao ver Ralf rastejar para fora da cama sem hesitar compreendeu que o chamado não era para ele e voltou a dormir. Uma vez do lado de fora do dormitório, o lobo procurou por Frieda e encontrou a silhueta escondida em uma das sombras permitidas pela brilhante lua, a garota se moveu para fora dali assim que confirmou que o garoto a tinha visto, aquele era um claro pedido para ser seguida.
Haviam guardas fazendo ronda, isso era bem necessário pois apesar de que aqueles que ali residiam fossem soldados treinados, eles ainda eram despertos e isso poderia atrair algum Haidu muito estupido ou até mesmo um ataque sob sua guarda baixa. Frieda e Ralf evitaram os olhos dos vigias e foram para um local próximo aos estábulos, uma área que por alguma razão era menos vigiada. Nesse lugar havia um velho salgueiro e foi sob ele que Frieda parou e aguardou pela chegada de Ralf, sua mente fervilhava como sempre e as vozes lhe diziam palavras condenatórias, o sopro do vento balançava a copa da árvore e o seu cabelo semipreso, ela olhava para a lua quando ele finalmente chegou e apesar de sua expressão se manter estóica, ele conseguia ter um vislumbre de tristeza e isso foi o suficiente para deduzir algo que imediatamente fez seu coração pesar. Frieda manteve o silêncio por um tempo e Ralf estava muito ocupado com seus próprios pensamentos para rompê-lo, ele a admirava enquanto ela seguia olhando para a lua e se questionava o quão diferente tudo poderia ter sido se ele tivesse revelado como se sentia mais cedo ou se toda aquela tragédia não houvesse ocorrido.
– Ralf, eu não me esqueci do que você me disse aquele dia e eu realmente pensei seriamente. – Frieda desfez o silêncio. – A verdade é que não importa o quanto eu pense sobre isso sempre chego na mesma resposta, a verdade clara de que estar com você me faria bem, a verdade de que você cuidaria de mim melhor que qualquer um e que me amaria incondicionalmente e... sabe? Eu gosto disso, saber disso aquece meu coração.
As palavras alcançaram os ouvidos de Ralf como uma canção.
– Quando eu vi Johann amando e se deixando ser amado, o que você acha que me veio à cabeça? – Sua pergunta pareceu retórica, mas se não o era o rapaz não a respondeu. – Eu não pensei em como tornar aquilo possível, tudo que me veio à mente foram perguntas e essas perguntas me revelaram outra verdade: "Se dá para fazer os dois, se dá para perseguir a minha vingança e me permitir ser amada, então por que eu também não consigo?" – Frieda deixou que seus pensamentos escapassem através de seus lábios. – Nesse momento fervilhavam em minha mente dúvidas e tudo que eu conseguia pensar era "O que há de errado comigo...?" – Disse ela.
Ralf sentiu sua boca amargar e sua cabeça ficou levemente tonta, como se estivesse começando a ficar embriagado, ele entendia o que Frieda estava dizendo e o motivo para estar falando daquele modo, ela que nunca foi boa com as palavras estava se esforçando para não magoá-lo, porque ela o estimava. Ainda assim, mesmo com toda aquela consideração, a dor não iria deixar de vir só porque ele a entendia.
– Eu gosto de você. – Externou a ele. – Já gostava de você antes, mas a idéia de começar algo que apenas terminaria com anos de ótimo relacionamento sendo destruídos, começar algo que ao chegar ao final poderia abalar nosso sentimento de família... isso sempre foi assustador. – Falou. – Mas quando você se declarou tão honestamente, minhas dúvidas e ansiedades se foram, porém eu ainda precisava pensar, não podia entregar algo pela metade para alguém disposto a me entregar tudo por inteiro. – Disse ela. – Eu queria ser capaz de segurar a sua mão e jamais soltá-la agora, não, a verdade é que eu já estava decidida a fazer isso.
– Mas... – Ele instigou.
Frieda ficou em silêncio por um momento.
– Você estava lá quase o tempo todo. – Ela falou. – Sabe que Heinrich não era só um pai para mim, ele era... o meu deus, o meu querido deus. O que eu sentia por ele estava muito além de amor parental, era uma admiração e respeito incondicional, eu o adorava. – Expôs. – Ele me salvou e fez vários sacrifícios por mim ao longo da vida sem nunca exigir nada, então peguei toda minha fé e esperança e depositei nele, sei que foi puro egoísmo, mas ainda assim o fiz. Eu adora Heinrich, no pleno sentido da palavra... – Falou a garota, seu olhar estava distante, mas desta vez de uma forma diferente, ela olhava para o passado. Era quase como se Frieda pudesse ver todos os seus momentos ao lado de Heinrich. – Então um dia alguém veio e assassinou o meu deus. Em um momento ele estava lá e no outro já não estava, alguém matou o meu deus de forma covarde e cruel.
Frieda fez uma pausa, algo crescia em seu âmago mais uma vez, algo que ela inconsciente forçou para o fundo do seu ser, algo capaz de perturbar até mesmo a sua natural falta de expressão.
– Eu não estava lá, não vi os seus momentos finais nem suas últimas palavras, a morte o levou sem prestar satisfações e... eu sei! Eu sei que a morte é assim para todos, sei que ela dificilmente nos dá tempo para despedidas, mas ainda assim... – As palavras fugiram de seus lábios e seus olhos vagaram freneticamente de um lado para o outro na tentativa de reencontrá-las. – Eu queria ao menos estar lá. Isso não é justo. – Sua voz falhou um pouco. – Como ele acabou tendo um final assim? Como ele acabou simplesmente morrendo longe dos olhos de quem o amava? Longe dos meus olhos. Heinrich me deu o maior dos sentimentos que eu havia perdido, ele me deu amor, não, ele era o meu amor e agora que o meu amor morreu eu sinto que já não posso mais amar verdadeiramente. O amor que tenho por vocês, aquele que meu pai me deu e me ensinou, ainda perdura, mas ele já não cresce nem se desenvolve.
Ralf ouvia atentamente cada palavra, seu peito doía, queria até mesmo chorar, mas aquela era a primeira vez que via Frieda falar tão abertamente sobre o que sentia com alguém e por amor ele decidiu ouvi-la religiosamente.
– O deus que nunca me abandonou e nunca pediu para ser adorado, era isso que Heinrich era. – Expôs. – Ralf, eu não posso agarrar a sua mão e tentar ser feliz outra vez, mesmo que eu goste de você, a dor que senti ao perder o meu deus não pode ser curada nem com o amor de mil humanos, você me entende? – Perguntou em retórica e a questão vagou pelo ar. – A vingança provavelmente não me fará sentir melhor, mas do ponto em que estou não consigo ver nada além dela. Não vou te pedir para esperar até o dia em que minha vingança estiver completa porque isso é cruel demais com você, você também não pediria isso se estivesse no mesmo lugar. Não vou te dizer para continuar me escolhendo pois não sei se serei capaz de amar novamente mesmo quando tudo isso acabar. – Falou ela. – Isso é muito estranho, quando Heinrich ainda estava aqui eu senti que podia ir com você, nós moraríamos no vilarejo em uma pequena casa e cuidaríamos dele quando estivesse velho, viveríamos vidas tranquilas e felizes... mas então ele se foi e já não enxergo um futuro, seja ele com ou sem você. – Expôs. – Eu nunca fui boa com as palavras, então não sei te dizer de outra forma. – Ela pensou com cuidado. – Ralf... não podemos ficar juntos.
O Silêncio preencheu o ambiente, Ralf tentava processar o que tinha ouvido, suas batidas estavam irregulares e sua pupila dilatava e contraia, estava atônito. Frieda pode ver seu estado, ela não queria vê-lo assim, queria confortá-lo, mas sentia que se fizesse isso poderia piorar as coisas.
– Está ficando melhor com essa coisa de dizer o que sente. – O homem suspirou exausto.
– Graças a vocês. – Respondeu a garota. – Vocês me tornam tão completa que sou capaz de falar mais e mais do que se revira na minha mente, vocês me curaram quando achei que não haveria mais cura para mim. Sem vocês eu me tornaria vazia. – Disse Frieda. – Sei que é egoísta terceirizar uma responsabilidade tão grande, mas ainda assim o farei, os humanos são feitos de várias coisas e egoísmo é uma delas, então por favor... Vocês precisam ficar vivos para que eu me sinta completa, para que eu me sinta viva. – Externou ela.
Ralf a analisou um pouco, pensava no que diria agora que tinha conseguido aliviar um pouco o clima, ele sabia que Frieda não era obrigada a aceitá-lo, que ela não era obrigada a corresponder, ele não queria que ela se sentisse mal, afinal, desejar algo assim não é coisa de quem sente amor.
– Eu sei que você jamais me pediria para esperar, mas só de saber que você consegue "me ver" meu coração pula algumas batidas, meu amor por você não vai morrer só de eu o ordenar a fazer isso. – Ele se aproximou dela retirando o colar do bolso, colocando-o no pescoço dela a seguir. – Eu vou te amar pela eternidade, Frieda, então tome o seu tempo e vá concluir a sua vingança. – Disse o lobo. - Além disso, não se esqueça que essa vingança não pertence só a você, e se você é egoísta por abandonar tudo e querer se vingar, então somos uma família de egoístas. - Ele sorriu levemente. O rapaz encostou sua testa na dela. - Sobre o vazio... nós somos bem fortes, nunca a deixaremos sozinha, eu prometo. - Ralf beijou delicadamente a testa da garota. – E sobre o futuro, tenho certeza de que um dia você conseguirá curar seu coração e conseguirá encontra o amor equivalente ao que recebia do seu deus, um amor incondicional e terno, tão quente quanto o calor do sol. Espero ser eu aquele capaz de te fornecer tal amor, mas se não o for, ainda assim estarei feliz por saber que você conseguiu amar de novo. – Falou ele e então a acolheu em seus braços.
– Sou eu quem o está rejeitando, então por que eu sou consolada? – Ela perguntou.
– Não é você quem está sendo consolada, sou eu. – Respondeu ele. – Acontece que conheço você bem demais para saber que não ia fazer isso por achar que me faria mais mal do que bem. – Expôs. – Então me permita tomar a ofensiva.
Frieda não disse mais nada, em vez disso, escondeu seu rosto no peito do rapaz e assim ficou por um bom tempo. Ralf se acalmou, ter Frieda em seus braços apenas o incentivou, afinal, enquanto há vida há esperança, aquilo ainda não tinha acabado, a garota não o rejeitou porque amava um outro alguém, ou porque não o via como um possível interece romântico, ela apenas precisava de tempo para se curar e ele daria isso a ela, ele a aguardaria sem esperar ser recompensado por isso. Quando ficar alí sobre o salgueiro se tornou passível de serem pegos fora do dormitório após o toque de recolher, os dois voltaram para seus respectivos quartos.
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O plano de Frieda funcionou muito bem, cerca de dois meses após sua visita a Catedral de Kamelie, sua base recebeu a visita de uma Irmã de nome Verena e mais tarde até mesmo de um dos Juízes, todos com poucos dias de diferença entre eles, cada um interessado na aquisição de um certo grupo para elevar as suas próprias forças militares, contudo Frieda já tinha um alvo pré definido e como esperado ele veio até a base depois dos mencionados anteriormente.
O Inquisidor Klaus foi recebido com toda a atenção do mundo, apesar de seu trabalho ser visto com maus olhos pela sociedade no geral, era inegável o fato de que sua posição era alta dentro da Ordem e que seu nome já estava sendo mencionado para compor o Conselho máximo. Durante todo esse tempo desde que se tornou Inquisidor, nem um outro foi capaz de encontrar e expurgar alguns grupos que faziam parte do culto Finsternis como ele, sempre que os rastreava, o homem os caçava até os confins do inferno e os massacrava impiedosamente até não restar nenhum. Klaus era o terror dos membros do culto e não era incomum que o todo abandonasse o grupo que caia em seu faro, a fim de evitar serem rastreados também, é dito que se Klaus está no encalço de seu grupo, pelo bem maior, você deve se abster de pedir qualquer ajuda por livre e espontânea vontade, pois é assim que um verdadeiro fiel deve agir. Ter a visita de alguém tão ilustre em sua base é motivo para se gabar e é prestigioso, ser alvo do interesse de Klaus, com a finalidade de ser recrutado, era uma honra ainda maior e Frieda sabia bem disso, ela havia pesquisado minuciosamente durante todo esse tempo por um alvo que facilitaria sua busca.
Klaus caminhava junto a um grupo composto pelos administradores da base, dentre eles estava o Cavaleiro de primeiro grau responsável por comandar o lugar, ele prestava alguns relatórios ao Inquisidor, que o ouvia com atenção, afinal era assim que ele operava, o homem investigava e às vezes ia de base em base coletando informações adicionais adquiridas pelos Cavaleiros em suas missões. Enquanto caminhava ele sentiu um olhar sobre si e rapidamente procurou o autor, seus olhos encontraram Frieda, ela estava mais afastada deles, Cavaleiros iam de um lado para o outro, passando por ela como se não a vissem e Klaus percebeu que tudo que vinha dela era o seu olhar penetrante, nada além disso, a garota estava ocultando sua presença. Ele a reconheceu de imediato, como poderia esquecer o rosto de alguém que esmagou brutalmente um Cavaleiro de grau Vertraut, o homem deduziu que ela queria ser vista por ele e se questionou o porquê, mas não precisou pensar muito para saber, afinal, em todos os seus anos como Inquisidor era comum que alguns carentes de sanidade o procurassem na tentativa de servir sob seu comando, no entanto, seu alto padrão e rigor ao selecionar eram o motivo pelo qual seu pelotão era o menor. Frieda sustentou o olhar e Klaus parou de caminhar, quando ele o fez os demais que lhe seguiam o imitaram e então olharam para onde o homem mantinha sua atenção.
– Ela é excelente, tanto ela quanto seus numerosos irmãos tiveram um crescimento rápido desde que chegaram aqui, eles são pontos fora da curva. – Comentou Wilmer, aquele no comando da base. – Como esperado, você tem bons olhos.
– Tenho é? – Divagou Klaus, enquanto via Frieda ir embora sem lhe dizer nada.
– Sim, eles são oito no total, mas a soma de seus feitos e missões concluídas estão em outro nível quando em comparação aos demais. – Elucidou o Homem. – Contudo, há algo perturbador sobre ela.
– E o que seria? – Klaus voltou seu olhar para Wilmer com interesse.
– Não raramente ela é a única a voltar com vida das missões. – Disse Wilmer.
Klaus ponderou, pensou sobre isso.
– Perdas não são incomuns. – Disse ele. – Para que tipo de missões vocês a enviam, uma vez que me disseram que ela tem boas habilidades, posso supor que não a estão enviando para missões simples.
– De fato a enviamos para missões mais difíceis. – Falou Wilmer. – Não temos muitos soldados aptos a cumprir esse tipo de missões.
– Se falta pessoal, então imagino que a enviaram com Cavaleiros com um nível de poder inferior ao dela e sabendo que seus irmãos estão vivos, deduzo que não enviam algum deles com ela, já que quem a acompanha morre. – Argumentou o Inquisidor. – Não estou julgando seus métodos de administração do seu pessoal, Wilmer, apenas esclarecendo que não há mística ou maldição em volta do fato de apenas ela retornar com vida. Se você der a um animal faminto algo maior do que ele pode morder, acabará arrebentando o maxilar. Ela volta porque é forte, os outros morrem porque a força deles não foi suficiente. Simples assim.
– Nós percebemos isso, tanto é que mudamos a dinâmica de formação dos grupos e agora só enviamos algum dos irmãos dela em suas missões. – Respondeu Wilmer. – Infelizmente isso reduz o número de missões realizadas, já que os irmãos dela também são importantes na liderança das demais missões. Contudo, fazer isso é melhor que continuar perdendo soldados.
Frieda tinha dado a volta e entrado em uma sala não muito longe de onde o Inquisidor conversava, ela se encontrava sentada em uma cadeira com uma mesa à sua frente, de costas para uma das janelas.
– ... e foi isso que ele disse. – Feliz estava repassando tudo o que ouvia para seus irmãos, afinal, todos eles estavam na sala. – Agora eles estão indo embora, quer que eu os siga e tente ouvir mais?
– Ótimo trabalho. – Disse Erna.
– Você fez bem. – Elogiou Frieda. – Não precisa segui-los.
– Sua audição é assustadora às vezes. – Comentou Ralf. – Me pergunto se você ouve até quando falo mal de você.
– Você nunca fala mal de mim, Ralf. – Rebateu o garoto.
– Viu? – Ralf fala como se provasse um ponto. – Assustador.
– Bom... Tudo está indo de acordo como você queria. – Hans falava para Frieda.
– Tem certeza de que ele vai nos recrutar? – Inquiriu Johann. – Ele pode acabar levando só você.
– Não! Ele não fará assim. – Respondeu Frieda. – Segundo o relatório que acabou de receber do Wilmer, o Inquisidor deve compreender que se me levar sozinha não terá utilidade para mim, já que não opero com um companheiro qualquer. Já vocês, cumpriram seus papéis ao demonstrar o seu valor e já deram a ele uma resposta ao sempre voltarem ilesos quando iam em missões comigo. – Pontuou ela. – Nosso trabalho em grupo é excelente, ele foi forjado em anos de convivência e batalhas pela sobrevivência, não é algo que se constrói facilmente.
– Frieda... – Leon estava sério, ele tinha uma dúvida em sua mente. – Você os deixou morrer de propósito.
– Leon!? – Leona o repreendeu abismada. – Frieda jamais faria isso e você sabe.
– Não. – Disse ele. – Ela faria sim. – Afirmou. – Ela faria por nós.
O silêncio pesou, Leona olhou para seus demais irmãos e constatou que seu gêmeo não era o único com aquela dúvida, mesmo Erna não contra-argumentou.
– Leon... – Frieda o chamou, seu tom estava tranquilo, como se respondesse a alguém que perguntou se ia chover ou não. – Eu conheço muito bem a minha maldade e lhe garanto que ela está sob total controle. Não matei aquelas pessoas, nem os deixei morrer propositalmente, de fato eu o faria pelo bem de vocês, contudo, não me apetece matar sem necessidade, principalmente quando os alvos são gente que não nos fez nada. – Expôs friamente. – Eles morreram porque eram mais fracos, essa é a lei suprema da natureza, ainda que eu tenha tentado salvá-los, simplesmente não pude fazê-lo sem diminuir as chances de minha própria sobrevivência. Não sou empática como Leona, quando vocês não estão envolvidos, eu sempre irei me priorizar, afinal não poderei vê-los de novo nem os proteger se eu vier a morrer.
Aquela resposta chocou Leona um pouco, às vezes ela esquecia que Frieda não era calorosa com todos os seres humanos, que na verdade ela tinha pouca estima por eles, isso piorou muito depois que ela descobriu que o culto de Finsternis estava envolvido no assassinato de seu pai, a total consideração de Frieda se resumia a seus irmãos, aos seus tios e os moradores do vilarejo no qual viveu com Heinrich, sua única execeção era o seu novo amigo, por motivos que Leona desconhecia. Sempre que Frieda voltava das missões sozinha, seu superior a ordenava a notificar a família daqueles que tinham uma, que seu parente estava morto, quando a família morava distante, a garota lhe enviava uma carta e sempre recebia uma carta resposta com palavras de ódio e maldições, quando a família morava perto ela tinha que ir dar a notícia pessoalmente e ficava grata quando a resposta era apenas ser escorraçada após lhe jogarem um balde de água. A garota sempre mantinha a expressão facial estóica, não perdia o controle, não reclamava, nem esquivava de qualquer ataque que lhe infligisse pouco ou nenhum dano, ela simplesmente não demonstrava se importar e essa era uma das coisas que alimentavam o ódio dos familiares dos falecidos e lhe renderam má fama entre os demais cavaleiros da base, ninguém queria se associar a alguém que não sente nada ao ver um companheiro cair, em sua ausência eles comentavam sobre sua frieza e atribuíam a ela a alcunha de monstruozidade, com o tempo eles a chamavam apenas de Wanderfalke, o falcão peregrino de fato, pois dessa forma poderiam deixar de lado o fato de que ela era humana e passar a vê-la como outra coisa. Enquanto Leona se perdia em pensamentos, algo veio para despertá-la, alguém bateu na porta da sala que eles estavam ocupando, era um dos Cavaleiros responsáveis pela guarda do portão de entrada.
– Entre. – Frieda autorizou.
O rapaz apenas abriu a porta, apesar do convite, a aura dentro da sala era ameaçadora e pesada demais para ele.
– Tem alguém querendo ver vocês. – Informou o homem. – Ele é um Cavaleiro da divisão da capital real e diz que é amigo de Frieda Falkenberg.
– Mas isso é impossível... – Murmurou Leon abafando o riso e recebeu uma cotovelada de sua irmã.
– Se comporta! – Avisou Leona.
Frieda se colocou de pé e antes de se dar conta do que estava fazendo já havia passado pela porta, seu coração se aqueceu, a garota se perguntava se aquela pessoa finalmente tinha cumprido com sua promessa de fazer uma visita. Seus irmãos entraram em confusão com tal reação, mas logo a seguiram para a entrada principal, mas ao chegar lá a encontraram de pé olhando para quem estava ali, levemente desanimada. Deduziram que o visitante não era quem ela esperava, mas Leona se animou em seu lugar e rapidamente tomou a iniciativa de cumprimentar o recém chegado.
O rapaz estava em boa forma, mas olheiras contornavam os seus olhos e seus ombros estavam tensos, haviam vários sinais de cansaço. Leon conversou com um dos guardas, enquanto Leona o levava para dentro da base segurando-o pela mão, o rapaz puxava o cavalo com a mão livre. Eles passaram por Frieda, que o comprimentou com um gesto com a cabeça, Erna observou atentamente e deduziu que Frieda provavelmente esperava a pessoa com quem conversava na Catedral. Eles levaram o jovem para a sala de antes, local que haviam praticamente monopolizado, e Mattis, o rapaz que eles salvaram na floresta na segunda fase do teste de admissão, se sentou em uma das cadeiras ao redor da mesa. A família aguardou até que Felix voltasse do refeitório, ele tinha ido buscar água e alguma fruta para o cansado rapaz comer.
– Prontinho. – Felix disse ao colocar as frutas sobre a mesa e entregar a água para Mattis.
– E então... – Incentivou Erna. – Imagino que não tenha feito todo esse caminho apenas para ver a nossa cara. – Tentou brincar, Leon olhou pra ela como se ela fosse uma esquisita, então ela retomou sua postura séria.
– Nos oferecemos para te ajudar. – Recordou Johann. – Então fique à vontade.
Mattis estava ansioso, segurava firme o recipiente com a água e olhou para seu conteúdo por um tempo.
– Eu descobri que o médico da base só atende os soldados. – Informou ele. – Descobri isso logo depois que entrei, eu tinha me esforçado tanto para chegar a tempo de fazer o teste, fiz o que pude nas fases e consegui sobreviver... apenas para descobrir que o médico não atenderia minha irmã. – Ele tomou fôlego, aparentava estar à beira de um colapso, se agarrava ao pouco de sanidade que lhe restava. – Passei pelo inferno e não adiantou de nada... – Sua voz soou terrivelmente calma. Mattis não estava olhando para nenhum lugar específico, seus olhos vagavam pelo ambiente. – Mas eu não desisti, sabe? Eu continuei cuidando dela e fazendo missões para conseguir dinheiro, fui capaz até mesmo de me elevar ao grau Mittelstufe, tudo no puro esforço e dedicação, uma vez que não sou alguém agraciado com talentos. – Disse ele. – Mesmo ganhando melhor, gastei todo o meu dinheiro com médicos e remédios, porém, a minha irmãzinha não só não melhorou como ficou pior. O último médico levou tudo o que restou do meu dinheiro e desapareceu. – Sua boca amargava.
– Eu sinto muito. – Leona colocou sua mão no ombro do rapaz.
Mattis apenas meneou a cabeça em negativa, tentava manter o controle para não chorar, estava exausto.
– Eu sei que se ofereceram para me ajudar, mas achei que seria muito descarado da minha parte pedir mais a quem já tinha salvado a minha vida. – Mattis colocou o copo sobre a mesa e se levantou, afastou-se um pouco dos oito irmãos e começou a se ajoelhar.
– O que está fazendo? – Hans indagou.
– Quando o meu pai estava vivo, ele como o homem simples e humilde que era, me disse uma vez "quando estiver pedindo um favor a alguém, peça-o do jeito correto." – Respondeu ele. Mattis colocou sua face por terra, apoiando a palma das mãos no chão e encostando a cabeça no dorso delas. – Eu me lembro de como salvaram a minha vida, jamais esqueceria disso, também me lembro como as pessoas comigo na floresta foram curadas, então por favor, eu imploro, salvem a minha irmã também. Ela é tudo o que me restou. – Pediu emocionado.
Leona estava aflita, com o olhar buscou por Erna e a irmã já esperava seu olhar.
– Eu curei várias pessoas naquele dia, salvamos outros além de você, mas tu foi o único que voltou para agradecer. – Disse Erna. – Iremos com você averiguar o caso de sua irmã e farei o que eu puder.
Dito isso, Frieda se dispôs a ir ter com o comandante da base assim que o Inquisidor fosse embora, ela pediu a Wilmer alguns dias de folga para ir resolver assuntos familiares na capital, sem esclarecer que não se tratava da família dela necessariamente. O homem não pôde dizer outra coisa senão um sim, uma vez que descobrira as intensões de Klaus quanto aquele distinto grupo, saber que o nome de sua base e seu próprio nome se elevariam pelo fato de terem produzido talentos de excelência suficiente para serem recrutados pelo Inquisidor o agradava muito, entretanto, ele não podia permitir que todos os oito fossem com ela, então escalou Erna, Leona e Felix para irem com Frieda e disse aos demais que deveriam ficar na base até segunda ordem.
Durante todo o percurso, Mattis seguia aflito e ansioso, ao que tudo indica o estado de sua irmã estava muito ruim, além disso ele se preocupava por ter deixado alguém que conhecia pouco tomando conta daquilo que lhe era mais precioso, uma vez que pagou a uma mulher para prestar esse serviço até que ele voltasse com o socorro, ele já tinha requisitado os serviços dela antes, principalmente quando precisava viajar para cumprir as missões, mas ainda assim não era capaz de confiar plenamente nela, porém, ninguém mais aceitou o trabalho. Para grande satisfação de Mattis, Frieda e os demais mantiveram a velocidade e o ritmo da viagem bem alto, no decorrer dela, ele externou que descobrira, para seu desespero, que era proibido morar fora da base a menos que fosse casado, mas que um Cavaleiro de olhos azul arroxeado e sorriso estranho o tinha ajudado a conseguir uma permissão especial. Quando finalmente chegaram na capital real, o sol já havia passado do meio, o que denunciava o meio da tarde.
Mattis os levou mais para a margem da cidade, um lugar onde viviam pessoas comuns para dizer o mínimo, já que naquela área ficavam os mais pobres. À medida que adentravam o recinto, o povo abria caminho no instante em que reconheciam os trajes que o grupo vestia e suas insígnias penduradas no cinto. O grupo seguiu subúrbio a dentro ainda montados em seus cavalos, mas mantiveram o trote lento, apearam na entrada da estalagem na qual residia o rapaz, prenderam a guia dos animais em um poste e deixaram Mattis ir na frente até a porta de onde morava.
O Cavaleiro bateu na porta em um ritmo muito específico, passos apressados foram ouvidos e a porta se abriu sem demora, uma mulher em seus cinquenta anos buscou o olhar de Mattis em desespero, ela não conseguiu dizer uma palavra antes que o rapaz compreendesse o que se passava e viesse a se embrenhar casa adentro sem hesitação. Frieda o seguiu após respeitosamente cumprimentar a mais velha com uma pequena mensura, educação que seu pai havia lhe dado, os demais a imitaram. A casa era minúscula, não possuía mais que três cômodos, então o trio a cruzou em breve tempo, encontrando no único quarto a imagem de uma jovem sobre uma cama, se debatendo e gemendo de dor, seus poucos músculos estavam enrijecidos, os dentes foram serrados com tanta força que a gengiva começara a sangrar, os olhos reviraram e os ossos pareciam prestes a se partir, a jovem estava terrivelmente desnutrida, seus cabelos estavam opacos e sem vida, a menina não tinha mais que treze anos.
Mattis lutava para evitar que a menor infligisse dano a si mesma, mas era difícil realizar tal tarefa sozinho sem acabar machucando-a, não foi necessário que ele pedisse ajuda, pois no momento em que compreendeu o que se passava, em um instante Frieda já se encontrava sobre a garota.
– Segure as pernas dela. – Pediu Erna, que já se preparava para agir também.
Feliz obedeceu prontamente, rapidamente chegou aos pés da cama e segurou firmemente as pernas da menina, porém, com cuidado. A senhora assistia tudo da porta atônita, não sabia o que fazer.
– Nagi ni açuri, nagi ni emul, fuda nagi dur nano xu dur onan, ni nagi alzo brin xu alzo seran. – Erna entoou assim que assumiu a postura. – Imecula ni nagi av gongtobi irgo aven nano reu survo: – Prosseguiu. – bajin endova uni mek seran. – Ela entoou serenamente. Em tradução ela disse: Água no céu, água na terra, existe água em mim e em ti, a água tudo lava e tudo cura. Invoco a água para devolver aquilo que me foi roubado: círculo espiritual das cem curas.
Mattis reconheceu de imediato a oração de alto nível, o jovem havia pesquisado muito nos últimos tempos, ele buscava saber se não havia um meio de forçar o despertar de um novo tipo de heilig em seu núcleo, uma vez que poderia curar sua irmã ele mesmo se conseguisse, mas não teve resultado. Estava surpreso por ver Erna entoar uma oração como aquela com tranquilidade, como se fosse nada.
A menina se acalmou e perdeu a consciência.
– Ela dormiu. – Constatou Frieda.
Erna estava em silêncio.
– Conseguimos? – Mattis disse aliviado. – Finalmente!? – O rapaz sorria, mas seu sorriso morreu ao olhar para as feições de Erna. O gênio na manipulação de heilig de atributo água estava consternado diante de uma situação que imaginou que jamais voltaria a lhe ocorrer.
– Mattis, eu não sei como lhe dizer isso. – Sua voz vacilou, aquela que sempre pareceu ter certeza sobre tudo estava incerta agora. – Ainda que eu tenha dito que faria o meu melhor para curá-la... – As palavras lhe fugiram dos lábios e um sabor desagradavél se instalou em sua boca, misturando-se a sua saliva, o terrível sabor da derrota. – Eu...
– Isso não é possível... – Leona tentou falar, mas sua voz sumiu, em todo esse tempo, ela nunca viu Erna falhar assim.
– Por que não pode curá-la? – A voz de Frieda soou como sempre, como a água intocada de uma lagoa, sem ondulações, sem perturbações.
– A doença da menina não é física. – Apresentou Erna. – Eu curei os danos causados pela desnutrição, desidratação, as feridas que causou a si mesma, mas não pude curá-la.
– Por que não? – Mattis voltou ao fundo do poço.
– Porque seu transtorno vem de sua condição mental. – Respondeu ela. – Ela vai se alimentar melhor agora e ficará mais forte, mas ainda terá crises. – Externou. – Não fui capaz de curá-la porque me falta conhecimento, não aprendi nenhuma oração que cure o estado mental de alguém, eu... falhei? – Erna não podia crer. Seu olhar caiu sobre a paciente que ela foi incapaz de curar e a ideia de que ela poderia morrer devido a sua falta de conhecimento a afetou mais que o esperado. – Eu vou dar um jeito. – Erna estava perdendo o controle. – Não é possível que não haja nada sobre isso em algum livro, eu vou pesquisar mais e aprender e então vou voltar. – As palavras saiam freneticamente. – Deve ter alguma oração, eu vou me esforçar mais e...
– Erna! – Frieda falou alto.
– Eu tenho que salvar essa garota, Frieda. – Erna respondeu no mesmo tom, mas desviou o olhar no instante em que percebeu o seu próprio estado. Ela estava com raiva de sua inabilidade.
Frieda analisou a irmã, se perguntava o que tinha deixado passar, questionava-se sobre os reais motivos que levaram Erna a agir daquela maneira e sem que ela pensasse muito a imagem de Heiko na Catedral lhe veio a mente e sua voz repetiram as palavras que havia dito antes: " Vi a sua irmã na seção de livros antigos, não na comum e sim na seção de livros proibidos, uma seção na qual apenas Meisters ou acima poderiam entrar, mas não entenda errado pois não vejo problema nisso e nem vou contar para ninguém, o problema é que ela estava lendo um livro em especial com várias orações que a muito foram banidas. Eu ficaria de olho nela se fosse você.". Enquanto as palavras ecoavam em sua mente, Frieda viu sua irmã lentamente se virar e sair.
– ...ida!... ieda! – A voz soava distante, mas foi se aproximando aos poucos. – Frieda!. – Leona chamou mais uma vez e sua irmã olhou para ela confusa. – Está tudo bem?
Frieda apenas assentiu e ajustou a postura.
– Não há mais esperança. – Murmurou Mattis, seu olhar estava distante e ele se encontrava sentado sobre os joelhos, estava completamente derrotado.
Leona foi abraçá-lo de modo a lhe oferecer algum consolo, Felix estava sentado na beira da cama, ele se compadecia da situação daquela menina, Frieda se retirou da casa e foi para perto seu cavalo, Erna já estava lá, acariciava seu próprio animal. Elas ficaram em silêncio por muito tempo, Felix e Leona chegaram onde elas estavam depois de mais de uma hora, todos subiram nos cavalos e regressaram para sua base. Erna e Frieda mal conversaram no caminho de volta, em sua mente, Frieda se convencia de que nada estava errado e que as desconfianças de Heiko não tinham fundamento. Por falar em Heiko, seus olhos buscaram com ele em todo o momento em que estavam naquela cidade, seu olhar se agitava sempre que encontrava algum Cavaleiro vestindo seu traje, mas ela não o encontrou naquele dia.
O sabor da derrota não se afastou dos lábios de Erna, ela não aceitou o fato de que foi incapaz de conseguir curar alguém e ao retornar a base se jogou de cabeça nos livros, chegando até mesmo a se afastar um pouco de sua família, dividindo seu tempo entre fazer as missões atribuídas a ela e estudar, era quase uma obsessão. A garota passou a ir para a Catedral sozinha várias vezes, em busca de aprimorar a si mesma, tentava buscar uma cura absoluta e algo que devolvesse a saúde daquela menina. Seu estado piorou quando cerca de cinco meses depois recebeu uma carta da senhora que conheceram naquele dia, a carta dizia que a jovem havia cometido suícidio, ela aproveitou-se de uma das ausências de seu irmão, usou suas poucas forças para prender o lençol no teto e se enforcou. Erna tentou contatar Mattis, queria se desculpar por não ter conseguido encontrar uma cura a tempo, contudo, ela foi incapaz de encontrá-lo, segundo a resposta que recebeu da base na capital, o rapaz havia ficado com a mente instavel demais para seguir com as missões e acabou por receber uma licença. Aquela foi uma derrota completa, mas Erna não se deixou abater, agora que já não podia fazer mais nada sobre aquilo, ela apenas voltou para os seus livros pois ainda precisava encontrar uma cura absoluta, algo que poderia usar em seus irmãos e mantê-los como deveriam ficar... bem vivos.
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Receba o capítulo que eu te dou, em cada letra um beijo meu 🎼🎤
Gostaram do capítulo? Já já vem mais, tem muita coisa pra acontecer ainda. bjs <3
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