Capítulo IV
Acordar com a luz do sol iluminando a face pode ser incômodo, teimosamente o feixe de luz passava pela fresta da janela e atingia o olho do homem, mas não foi aquilo que o fez despertar, até porque naquela terra que sempre chove a luz do sol é fraca. Começou com um som distante, quase como se estivesse sendo abafado pela fina barreira da subconsciência, ele ignorou o som como quem ignora um mosquito irritante, mas gradativamente foi ficando mais alto, era o som de pessoas gritando em desespero, pés batendo contra o chão em uma corrida desesperada, berros e urros, crianças chorando, homens e mulheres lamentando, objetos caindo, tudo estava tão frenético... o homem abriu os olhos e se sentou abruptamente. Fazia tempo que dormia tão confortavelmente.
O som não cessou, estava mais evidente, era como se o mundo lá fora estivesse desabando, era como sons de um campo de batalha e... era isso mesmo, pessoas estavam batalhando para sobreviver. O homem se colocou de pé, ele não precisava abrir a janela e conferir, sabia exatamente o que estava acontecendo. Apanhou seu sobretudo e vestiu, pegou sua bolsa e agarrou a menina apressadamente nos braços, ela ainda estava na exata posição em que ele a tinha deixado, eles precisavam fugir dali.
O homem já havia visto aquelas criaturas várias vezes em sua vida, estava habituado a enfrentá-las, mas planejava evitar confronto uma vez que reconhecia o quão difícil era combatê-las sozinho, principalmente porque dificilmente surgiam sozinhas. Ele desceu as escadas com pressa, correu para a porta sem pestanejar e deixou a taverna, ficar ali dentro não era seguro, os Haidu não respeitavam portas. No instante em que saiu teve que se esquivar de parte de uma carroça que veio voando do nada, em sua esquerda, no final da rua, avistou duas monstruosidades rasgando cada alma viva que surgia em sua frente, alguns pedaços eles comiam outros eles arremessavam para direções diversas. Algumas pessoas corriam, outras tentavam salvar seus filhos, país, irmãos e outros parentes das garras das criaturas, lutavam com pedaços de pau e davam socos, mas nada daquilo causava dano o suficiente para afastar as criaturas, tudo que conseguiram foi fazê-las sangrar um pouco e o sangue derramado apenas causaria mais caos.
As criaturas tinham dois metros de altura, eram quadrúpedes, as patas dianteiras eram curvas como ganchos e fatiavam como tal, seus olhos eram cavidades vazias em um rosto alongado como o de um lobo, chifres de touro adornava suas cabeças, eles era vermelho sangue e descarnado, as patas traseiras eram semelhantes a de cavalos, seus dentes estavam sempre amostra devido a ausência de lábios.
O homem começou a correr pela rua na direção oposta às bestas, para o sul, as pessoas corriam para o mesmo lado que ele, alguns caíam e eram pisoteados, sangue, carne e lama se misturavam, a chuva não cessava, crianças perdidas choravam à margem da multidão, procuravam por pais que potencialmente já estavam mortos. Ele chegou em uma bifurcação, já estava tomando o caminho da direita, para o leste, quando uma terceira criatura caiu em cima de um aglomerado de pessoas que corriam em sua frente, esmagando algumas delas sob seus pés e decepando membros de outras mais. Esta tinha dois metros e trinta, era bípede, sua cabeça é composta por oito lâminas pretas, quatro de cada lado formando algo parecido com uma planta, seu dorso é oval e braços longos e finos usados como chicote pendiam em suas laterais, um em cada lado, os braços bifurcavam na região na qual deveriam ficar os cotovelos, pernas finas e tortas sustentavam o corpo magro, a maior parte dele era da cor verde musgo.
O homem freou bruscamente e quase caiu ao ser empurrado pelos que vinham atrás, então ele saltou para a calçada da casa mais próxima, ela estava cerca de cinquenta centímetros acima do nível do chão, começou a correr pela calçada voltando pelo caminho que veio, desceu da calçada num pulo e retomou a corrida seguindo o caminho para oeste. A menina era leve, mas prejudicava sua mobilidade, é como carregar uma caixa grande feita de papel, é leve, mas não dá pra competir em uma corrida carregando uma.
- Mas que maldição! - Praguejou quando foi empurrado outra vez. - A situação está ruim, eles são muitos. Talvez eu tenha que abrir mão dessa menina, eu tentei ajudá-la, mas não há nada que eu possa fazer numa situação como essa, não há nada que eu... - Murmurou.
Ele parou de praguejar ao sentir um leve aperto em seu braço, a garotinha o apertava, ela não ouviu o que ele disse, fez aquilo inconscientemente. O homem olhou para ela de esguelha, ela ainda fitava o vazio, ele suspirou e a segurou com mais firmeza, continuou a correr, precisava deixar a cidade. Ele esvaziou a mente e focou na corrida, foi por pouco, mas uma quarta criatura surgiu correndo por entre as casas na direita e foi em direção a esquerda, atravessando a rua e atropelando tudo que encontrou pela frente como se fossem pinos de boliche, quase acertou o homem e a menina. Essa também era quadrúpede e se parecia com as outras duas a diferença estava na camada de osso presa a sua face, era como se o crânio dele estivesse exposto, ele era cinza escuro e oleoso.
O homem já estava se recuperando do choque de quase ter morrido quando uma pessoa transformada surgiu atacando o que restou das pessoas em sua frente, então ele olhou para trás na intenção de recuar, mas outro transformado começou a atacar as pessoas de trás, se voltou então para a direção da qual o quarto Haidu tinha vindo, contudo dois transformado estavam atacando pessoas ali... ele estava cercado.
Aparentemente não havia para onde ir naquele pandemônio, se ele abandonasse a menina poderia escapar facilmente da caçada dos Haidu, mas ela ainda o agarrava firmemente, lembrando-o de não deixá-la para morrer. Ele começou a olhar para as casas, procurava um jeito de subir em uma delas e encontrou uma estaca fincada próxima a uma das casas, a ideia era escalar pela estaca, seria uma tarefa difícil uma vez que ele usaria uma única mão, o homem se agarrou a estaca e começou a escalar usando as pernas e os pés, mal tinha subido um metro e meio quando algo se atirou em cima dele jogando-o no chão, a menina caiu perto do que sobrou de um dos corpos espalhados pelo chão, ele não foi ferido além daquilo causado pelo impacto contra o chão de terra batida, sua cabeça bateu forte no solo deixando-o um pouco desorientado, mas não sangrou.
Ele apertou os olhos com força, até a luz do sol incomodava, os sons oscilavam aumentando e abaixando o volume, a pancada que recebeu na cabeça foi forte demais. Estranhou que a criatura não terminou o serviço, notou que a menina já não estava em seus braços e começou a procurar em sua volta, foi quando viu o transformado terminar de rasgar uma vítima e começar a avançar na direção de Frieda, ela ainda estava jogada no chão, encostada no cadáver frio, seus olhos abertos e desnecessariamente esbugalhados estavam como sempre, sua expressão seguiu inalterada mesmo quando o transformado chegou ainda mais perto dela. O homem se pôs de pé com dificuldade, estava desarmado e não conseguiria chegar na garota antes do monstro, não havia outra opção.
Ele estendeu o braço esquerdo, e apontou a palma da mão na direção da besta, colocou os dedos mindinho, anelar e polegar em posição de garra, mas manteve o médio e o indicador apontando para cima bem unidos.
- Imecula ni viratis av lucen ni vittua: - O homem entoou uma breve oração a Brandt, o deus do fogo. - Viravitis! - Bradou por fim. Em tradução ele disse: Invoco o fogo para purgar o mal: Queime!
Um círculo de fogo surgiu no chão ao redor da criatura impedindo-o de avançar mais, o círculo começou a se fechar, suas chamas eram densas demais e não dava para a criatura simplesmente pular para fora do círculo, ela estendeu a mão tentando afastar o fogo, mas no instante em que a chama o tocou seu corpo foi instantaneamente incendiado e a criatura imediatamente se transformou em cinzas enquanto berrava em agonia.
O pandemônio ainda acontecia, mas o homem ignorava, caminhava para junto da menina, as pessoas a sua volta gritavam algo como "a um santo entre nós", algumas diziam isso pouco antes de serem dilaceradas. Ele finalmente chegou onde estava Frieda, apanhou ela do chão e quando se colocou de pé notou que a segunda criatura que ele viu o encarava, certamente ela percebeu que alguém havia usado heilig e veio conferir, quando o Haidu fez menção de correr para cima do homem uma trombeta foi tocada... Eles finalmente tinham chegado. Eles quem? Você pode até se questionar, não há motivos para explicação pois do telhado de uma das casas que ainda estavam de pé, uma mulher de cabelos ruivos saltou e pousou graciosamente entre o homem e a fera, com a espada em mãos ela cortou superficialmente o polegar esquerdo e o deslizou sobre a lâmina, especificamente sobre os símbolos gravados na extensão dela e eles começaram a brilhar em verde azulado, o símbolo que representava o elemento do ar brilhava com maior intensidade. O Haidu seguia correndo na direção dela, mas ela não parecia temer, posicionou a espada no lado esquerdo do corpo segurando-a com a mão direita e esperou, quando a criatura saltou a dois metros de distância dela, a mulher fez um movimento profundo de corte na horizontal, arrastando a espada para a direita, uma foice de vento se formou e dividiu a criatura em duas.
- Paven Ritovium! - Bradou ela ao cortar. Em tradução ela disse: Lâmina Vendaval!
O sangue do Haidu espalhou para todo lado, mas uma barreira simples, esverdeada e semitransparente protegia a cavaleira, ela havia sussurrado algo inaudível. A mulher se virou e caminhou até o homem, parando diante dele.
- É uma surpresa encontrar o grande Heinrich Falkenberg por aqui, o famoso Meiger. Todos estão curiosos sobre como vive aquele que decaiu de herói para desertor. - Disse a última frase entre dentes.
Heinrich não respondeu, não havia o que responder.
- Estou ocupada demais para lidar com você agora. Aproveite a chance e faça o que faz de melhor: Fuja! - Provocou passando por ele.
O homem seguiu em silêncio, ficou parado até que ela fosse embora, não queria ser visto como ameaça, não queria que ela chamasse os demais que chegaram com ela, não queria lutar. Quando já não podia escutar os passos dela, apenas aprumou o corpo e começou a ir na direção oposta, queria deixar aquela cidade antes que encontrasse outro Haidu ou membro da Ordem Dos Cavaleiros Sagrados de Ismar.
✴✴✴✴✴✴✴✴✴✴✴✴✴✴✴✴✴✴✴✴
O que acharam do capítulo?
Não esqueça de votar e comentar. Obrigada por acompanhar a obra, adicione ela na sua biblioteca.
Imagem: Criatura bípede de classe cinco que aparece no capítulo. (Art by ErlemP)
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro