5 - Ilyana
Já passou um bom tempo desde que estas malditas vozes começaram. No entanto, não sei dizer quando. Foi extremamente difícil aceitar que tenho um problema neurológico, mas o facto de estudar enfermagem, fez com que percebesse que a Dra. Bridges tem razão. A minha esquizofrenia é oficial e tenho que aturar os olhares da vizinha da frente, me encarando como se eu fosse uma criatura rara, a cada vez que saio pela porta da frente. No entanto ela olha da mesma maneira para Kendall e é óbvio que o alargador dele faz desenvolve ódios, incluindo o de meu pai que diz que aquilo deve servir para meter cabides.
Talvez por sofrermos os dois do preconceito social, tornamos-nos mais próximos. Ele compreendia-me como nem Ashley conseguia fazer e vice-versa. Quando por vezes começava a ficar ansiosa e tinha vontade de me esconder em lugares confinados, ligava para ele, a tremer que nem uma vara ao vento e ele me acalmava como ninguém conseguia. Ele era muito doce comigo e partilhava o meu gosto por séries.
Num fim-de-semana de Novembro chegou aqui em casa com uma caixa de pipocas XXL e todas as temporadas de Supernatural registradas num disco duro. Foi um dos melhores fins-de-semanas da minha vida e a gente repetiu. Tendo Supernatural tanta temporada, ainda nos valeu um bom par de fins-de-semana. Sentia-me um pouco culpada, porque ele tinha que estudar muito, pois andava na universidade, mas no fim de contas estava ali ao pé de mim, fazendo-me companhia.
Dia dezoito de Dezembro fiz vinte anos e ele deu-me um aquário e um peixe dourado ao qual nomeei Raya. A psiquiatra disse que aquilo era muito bom para mim. Quando tomava a minha medicação, podia dar a comida ao peixinho. Isso fazia com que fosse mais fácil de aceitar que tenho que tomar os antipsicóticos. Na verdade, agora que ouço as vozes raramente, sinto-me mais leve, sinto-me melhor. Por isso fui à Escola e descongelei a minha inscrição. Evidentemente aquilo não era uma universidade e aconselharam-me a ficar em casa até setembro, porque já não conseguia chegar ao nível dos outros. Tive muito medo que os meus pais ficassem chateados por causa daquela situação, pois ía ficar mais de meio ano em casa, mas os meus pais, os melhores do mundo, não ficaram chateados. De vez em quando davam-me dinheiro para comprar livros, que eu devorava com uma rapidez incrível. Li uma legião de livros de todas as categorias possíveis. Fui muitas vezes ao cinema com Ashley e Kendall e dia dezassete de Maio, eu e Kendall nos beijamos pela primeira vez.
Eu sabia que ele gostava de mim desde que me conhecera, por isso admirava a sua paciência. Fazendo os cálculos, pude contar dez meses. Dez meses que ele esperara por aquele beijo, que esperara para dizer que me ama sem me assustar e eu realmente sentia-me super bem ao seu lado. Claro que o meu pai continuava a implicar com o raio do alargador (que devo admitir, me habituei à muito tempo), mas gostava de me ver feliz. Por vezes parecia reticente por eu ter namorado, pois apesar de ter vinte anos, eu nunca tivera um namorado na vida, mas à sua maneira gostava de eu ter alguém que me fizesse sentir bem, como me sinto quando estou com Kendall.
As idas à ala psiquiátrica do Hospital de Craigavon eram normais. A Dra. Bridges não tinha mais necessidade de vir a minha casa, agora que eu aceitava que precisava dela. As conversas com ela ajudavam-me a viver o dia-à-dia, a não ter ataques de pânico ou de ansiedade. Estava-lhe muito grata, por toda aquela ajuda, especialmente, porque tal como Kendall, ela tivera uma paciência incrível comigo.
Conheci no hospital mais pessoas como eu. Conheci uma menina de doze anos que sofria de mutismo à seis anos. Fizera amizade com ela, apesar de eu ser das duas, a única a falar.
Quando recomecei as aulas, finalmente, sentia-me capaz, sentia-me leve, mas levei com olhares indiscretos na minha direção.
Felizmente comecei a fazer estágio no hospital. Mais que nunca tinha o desejo de trabalhar com pessoas como eu, ajudá-las a ultrapassar as suas doenças mentais que as atormentavam. Quem melhor que eu, para perceber o que se passa com os outros iguais a mim?
Por sorte eu tive uns pais que me apoiaram muito. Admito que foi investido muito dinheiro, muito tempo, muita insistência, mas por fim, já com vinte-e-três anos, saí da Millington, com o diploma de enfermeira graduada. O diploma ajudara-me a quebrar muitas barreiras. Recebi um cargo no Hospital de Craigavon, hospital esse que eu frequentava e fiquei responsável da pediatria na ala psiquiátrica. Eu não era médica, nem psiquiatra, mas como enfermeira, tinha muito mais tempo para conviver com estas crianças super diferentes. Vi muita coisa: adolescentes anoréxicas, crianças autistas, crianças com síndrome de asperger e mais raramente casos de esquizofrenia. Todos eles eram tão diferentes uns dos outros que dava vontade de conhecer cada um deles ao pormenor.
Sinto-me realizada. Porquê? Porque provei à sociedade que estudei, tenho um diploma, tenho uma profissão, um emprego de responsabilidade. Que sou capaz de amar, casar e construir uma família com Kendall, que já tirou o seu alargador para agradar ao senhor professor.
Mas sejamos realistas, consegui ultrapassar as barreiras que se meteram à minha frente, porque tive na minha vida, pessoas que nunca desistiram de mim, que me apoiaram, mesmo quando eu ficava com medo e me escondia na dispensa ou gritava. Mike, um rapaz autista, muito traumatizado, lá do hospital, também faz isso. Como eu o compreendo!
~Fim~
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