|| UM - NOVA REALIDADE - MILEY
A primeira coisa que me lembro após acordar de um período em coma, foi do rosto cheio de lágrimas da minha mãe. Ela segurava firmemente minha mão na sua e dizia coisas atropelando suas palavras que eram banhadas a dor e alívio na mesma medida. Eu não sabia onde estava de início. Só via os móveis brancos e o quarto da mesma cor. Era tão forte e limpo o branco que meus olhos ficaram doloridos por um momento. Mas poucos segundos depois eu me acostumei a ela.
Na minha tumultuada mente, eu via fragmentos do meu quase casamento passarem em câmera lenta. Como um filme interpretado por um péssimo ator. No caso eu. Minha atuação foi ridícula, o fim dessa então. Mais desastroso não há. Só me lembro de ver muita luz e nada. Só me lembro de sentir minha garganta seca de repente e praticamente implorar por um pouco que fosse de água.
O médico entrou usando seu sorriso habitual. Aquele que todo médico utiliza para lhe dar más notícias. Estar em uma cama de hospital era o menor dos meus males. Até o momento que vi aquele homem de estatura baixa, careca e com óculos redondos na cor vermelha, eu não sabia o quanto minha vida mudaria. Eu me sentia um pouco fora de mim.
Com minha mãe ao lado da cabeceira da cama onde fiquei por três semanas, ouvi que durante o acidente no qual me envolvi, perdi uma parte de mim. Uma parte que usava normalmente e que iria fazer uma falta tremenda para mim. Eu não ouvi mais nada. Só sentia um fodido vazio dentro de mim. Senti também uma parte importante se quebrar dentro de mim. Minha auto confiança se rachou como um vidro que foi golpeado com tanta força, que seus pedaços de tornaram tão pequenos, que seriam impossíveis de se colar novamente. Eu nunca mais seria o mesmo.
Depois que ele nos deixou com os contatos de um psicólogo, uma ortopedista e uma fisioterapeuta, não dissemos nada. Meu olhar perdido no vão evidente que havia na minha perna esquerda. Eu não chorei, xinguei ou gritei com ninguém. Me recolhi em mim mesmo me recusando a chorar. Me recusando a aceitar que uma imprudência minha me deixou naquele estado. Eu estava no telefone e dirigia. A culpa era totalmente minha. Mesmo com minha mãe dizendo que o motorista que bateu no meu lado estava completamente bêbado. Se eu estivesse prestando atenção, poderia ter desviado dele. Que não sofreu um arranhão sequer, a não ser vomitar quando me viu ser carregado inconscientemente em uma maca.
Não perguntei por James, ele estaria melhor sem mim. Por isso me recusei a vê - lo após despertar do coma. Não queria que ele me visse incompleto. Jenah estava lá por mim assim como Madson. Mesmo que ambas não estivessem de acordo com minha vontade em não vê - lo, me apoiaram. Elas assim como Julieta são amigas que vou levar para a vida toda. Uma semana depois da notícia, discuti feio com meu fisioterapeuta que insistia em me colocar em uma cadeira de rodas. Segundo ele disse muito calmamente, seria o início da minha transição. Uma transição que seria vagarosa mas que teria bons resultados, até que eu pudesse enfim, usar uma prótese.
Eu fui um péssimo paciente, confesso. Estava uma raiva reprimida dentro de mim. Eu a sentia aquecer meu sangue e destruir o pouco de mim que sobrou após o acidente. Foram semanas discutindo com minha mãe e irmã. Eu já estava na casa da mulher que me deu a vida, sendo cuidado por ela. Sentia dores fantasmas terríveis. Sentir doer um membro que nem sequer existia era quase horroroso e isso me fazia ficar irritado ao ponto de quebrar as coisas dentro de casa.
Eu chorava no fim. Mamãe também e tudo terminava com ela massageando levemente a área acima do meu maldito coto e falando palavras de incentivo. Que continuava me amando assim mesmo. Não foi fácil. Eu me negava a ir a um psicólogo. Para o desespero da minha família e amigos que me viam afundar em tristeza cada vez mais.
Por alto, fiquei sabendo que o homem que amava profundamente, estava morando novamente na Califórnia. De onde veio para cuidar da mãe que estava com câncer, o qual a venceu no final. Uma parte minha ficou feliz, pois ele poderia encontrar um homem que realmente o amava ao ponto de assumi - lo para o mundo. E a outra parte sofria. Pois mesmo não sendo o mesmo fisicamente, meu coração seria dele para sempre.
Quase cinco meses após sair do hospital, enfim procurei ajuda psicológica. Eu entendi que era forte o suficiente para passar por aquilo, me ajustando a uma nova realidade. Como o ser humano que era, se adaptando a uma nova situação. Eu queria ser melhor para minha família e amigos. Não tinha mais esperanças de te - lo em minha vida novamente. E sabia também que nunca mais amaria outro, como amo ele.
Uma fisgada intensa me traz para o presente. Um presente em que vivo minha vida da maneira que posso. Um pouco cinza mas me conformo. Deixo a vassoura que estou usando desde muito cedo. Eu poderia contratar alguém para limpar minha casa. Assim, eu ajudaria alguém com um salário bom e me ajudaria. Mas prefiro manter minha casa como um santuário. Recebendo somente pessoas que conheço. E sei que minha mãe manteria contato com minha empregada para saber notícias minhas. Sei que ela se preocupa, mas as vezes ela exagera. Eu morava em um apartamento no centro, após sair do hospital decidi investir em uma casa. Tendo um quintal enorme, onde Bob pode brincar a vontade.
Mancando um pouco, abro a porta da cozinha. O dia está claro e um pouco quente, uma diferença enorme das duas semanas de chuvas intensas que tivemos.
Sentado na varanda, tomo uma respiração profunda e retiro calmamente a prótese. Retirando a meia de compressão, respiro aliviado e de olhos fechados, massageio o local um pouco inchado. Fiquei de pé a manhã toda. Os raios de Sol sendo um fortalecimento a mais para minha pele. Dói bastante mas tento suportar. Escuto seus passos antes que esteja ao meu lado. Bob, essa farsa de uma mistura de alemão e outra raça grande, nem ao menos late para um possível invasor. Estou muito fodido com ele.
- Eu te liguei e não me atendeu! - diz se sentando ao meu lado. Seus braços indo de encontro a mim.
- Estou tomando um Sol, não está vendo? - faço graça.
- Não seja um engraçadinho Miley! - bufa apertando minhas bochechas ao ponto de dor. - Está com dor?
Abro os olhos, a observando de perto. E preocupação marca suas feições delicadas. Para quem olha de fora, nunca daria quase cinquenta e cinco anos para ela. A delicadeza e beleza que a compõe, impedem isso. Os traços de Rachel são tão nítidos nela. Um sorriso largo se abre em meu rosto ao pensar que elas agora se dão bem. Foi um dos melhores presentes que recebi depois de acordar do coma. Mesmo esperando que estivesse com raiva de mim, por ter deixado tudo para trás antes do acidente. Um momento que não falamos muito.
- Um pouco!
- Quer que mamãe faça uma massagem? Onde está aquele creme que compramos...- aperto sua mão. As vezes seu cuidado extremo me sufoca. Sei que ela está preocupada comigo mas já sou adulto. Posso habilmente me cuidar. Mesmo agindo impulsivamente nos primeiros meses após a amputação, eu vivia em negação e queria gritar com todos.
- Estou bem mãe. - seus olhos ficam suaves enquanto a mão delicadamente vem acariciando minha mandíbula. A barba rala na certa fazendo cócegas em sua mão.
- Tem certeza?
- Absoluta. - sob seu escrutínio, massageio perto de onde está a cicatriz.
A massagem juntamente com a música que cantarolo, ajuda a diminuir a dor. Foi uma forma que encontrei de lidar com as dores fantasmas. A música, que meu pai cantava para mim quando criança, me ajuda a ter uma distração. E me permite não esquecer dele.
- Sua irmã te ligou?
- Não, por que?
- Ela está grávida! - paro por um breve momento.
- Como?
- Grávida! - mamãe diz tentando conter sua empolgação. Sei que ela quer sair daqui dando pulinhos de alegria.
- Está feliz? - sondo.
- Sim mas também estou me sentindo culpada. - diz baixinho.
- Posso saber o motivo? - digo levemente. Sei o por que. Só preciso que ela fale. Ela enrola uma mecha de cabelo loiro escuro em seu dedo indicador.
- Não dei o apoio que ela precisou quando estava grávida de Helena. E agora, tenho medo dela não me querer por perto dessa gravidez por isso. Agora que ela está casada é....- posso minha mão livre por meu cabelo. Ninguém é perfeito e dona Lilian tem o feio defeito de julgar as pessoas. Se não viverem no padrão estabelecido por ela, não são dignas. Decidindo não discutir com ela, vou por outro caminho.
- Eu também a julguei e me arrependi logo depois. Somos seres humanos, propensos a errar. Uns mais do que os outros, mas continuamos errando. É a vida. Vocês estão bem. Converse com Rachel. Você se arrepende do que fez? - ela não responde. Desvia o olhar para seus saltos alto vermelhos. - Mãe?
- Eu não sei.
- Sim ou não mãe?
- Não! - suspiro profundamente.
- Não estamos vivendo no século dezenove, onde as mulheres tem que se casar virgens e só terem filhos no casamento.
- Mas se...
- São tantos "e se's". Mas nada é certo nessa vida. Eu estava lá por ela e é o que importa. Você tem a oportunidade de fazer tudo certo agora, não perca isso.
Posso ver sua cabeça trabalhando a mil por hora.
- Falei com Julieta hoje. - pisco algumas vezes com a mudança brusca de assunto.
- Tudo bem, não estamos mais falando de Rachel. - presto atenção as suas palavras no entanto.
Julieta nunca mais foi a mesma depois do que aconteceu com Lana. Minha amiga hoje é somente a casca da mulher que um dia foi. Mesmo tendo a abandonado no altar anos atrás, nossa amizade não mudou nada. Pelo contrário, a impressão que tenho é que ficou mais forte. Ela sempre diz o quão orgulhosa ficou quando decidi seguir meu coração.
- Vamos jantar hoje no nosso restaurante favorito.
- Vocês formam um bonito casal. - suspiro massageando minhas temporas.
- Eu a amo mãe, mas é como uma amiga.
- Filho...você insiste nessa coisa de ser bissexual. Gosta de homem, de mulher. Isso é confuso e é pecado.
- Não quero brigar com você mãe. Então por favor, não me julgue.
- Eu não...
- Está! Como sempre faz se alguém é diferente de você de alguma forma. - tento me acalmar. - Só entenda que Julieta e eu seremos eternos amigos. Eu amo uma pessoa que não quer me ver pintado de ouro e não o julgo. Fui um canalha com ele.
- Aquele.... aquele....- aperta a ponta do afilado nariz. - O homem que você diz amar, te abandonou quando você mais precisou. - disse amargamente. Tento fazer meu coração bater corretamente após me lembrar dele. Do seu rosto anguloso, dos lábios carnudos, do sorriso matador e do cheiro incrível que ele tem.
- Eu o mandei embora, não se esqueça. Não o queria comigo por pena. E ele merecia ser feliz. - forço as palavras para fora da minha boca. Meu lado egoísta gritando que ele seria feliz somente comigo.
- Que seja! Julieta é a melhor opção para você. Sei do que estou falando. - reviro meus olhos.
- Claro que sabe!
- Senti Julieta um pouco triste. - alarmes foram acionados em minha mente. Milhares de imagens nada boas passando como um filme de terror diante de mim.
- Ela te disse alguma coisa?
- Não. Só que iria jantar com você hoje!
- Mais nada?
- Não.
- Vou ligar para ela.
Mamãe fez o almoço, cantando no topo dos seus pulmões. Quase me causando um sangramento em meus tímpanos. A mulher pode ser linda mas canta muito mal. Mas para não chatea - la, fingia adorar o show gratuito que estava disposta a me oferecer juntamente com um almoço maravilhoso. Não podia dispensar cômoda boa, ela tem mãos de fada.
Me encarreguei da louça enquanto ela brincava com Bob no tapete da sala. Com a cozinha parecendo como nova, fui para meu quarto e rapidamente disco seu número. No quinto toque, penso que irá para a caixa postal e que terei de ir correndo para sua casa, ela atende. Soltei o ar de meus pulmões que nem sabia esta preso. Me recosto na janela.
No início não há palavras entre nós. Somente nossa respiração.
- Mamãe comentou que te sentiu um pouco triste hoje. Vai me contar a respeito?
- O mesmo de sempre.
- Tem ido as suas consultas? – questiono com cuidado.
- Não!
- Julieta...
- Estou bem, acredite.
- Está afirmando isso para mim ou para você?
- Minha vida nunca mais será a mesma Miley – a tristeza latente em sua voz me quebra em pedaços. Queria eu ter o poder de tirar toda a sua dor mas não posso. O silencio se estende por um tempo.
- Só não esqueça que eu te amo!
- Nunca!
Nos despedimos. E com o coração pesado, volto para a sala pronto para fazer companhia para minha mãe e a noite encontrar com minha amiga.
13/06/20
E aí gente! Gostaram?
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