Capítulo 8
PEDRO
Quando entrei pela segunda vez na sala do diretor, estava pronto para limpar da barra de Jaguncinha. Mas tio Luís foi o único que falou, olhando para mim firmemente. Não sei o que aconteceu para que o senhor Jones e minha mãe ficassem calados. O primeiro parecia concordar feliz com aquilo que o Montenegro falava, e a segunda apenas tendo que aceitar enquanto torcia o nariz.
Eu mereci cada palavra dura de Luís Montenegro. Não foram muitas, porém o bastante para que eu sentisse vergonha e quisesse ser melhor.
— Garoto, eu te vi nascer e o considero como meu sobrinho. Mas aquela menina lá fora tem um pai, que sou eu. Cuidado. — Assim concluiu sério, em seguida, sorriu e me abraçou do jeito que sempre fez. Se eu já o admirava antes, agora ainda mais ao vê-lo tão comprometido com a paternidade. Ele era mais tio do que os irmãos dos meus pais.
Por fim não teve jeito, estávamos suspensos. Linda e eu por três dias. Lauren por uma semana, correndo o risco de ser expulsa por causa da comprovação de seus atos pelas câmeras de segurança.
Duas semanas se passaram, tivemos as provas finais e a tão esperada International Food Fair, a mais importante festa anual da Roads. Como nossa escola era bilíngue, os alunos eram, em sua maioria, estrangeiros. Por isso costumava ser um grande evento com músicas e barracas de comidas típicas dos países natais das pessoas matriculadas na instituição.
O coral em que Linda e Ami participavam cantou, salvo que dessa vez escolheram canções populares ao invés daquelas coisas clássicas de sempre. Linda surpreendeu a todos ao fazer um solo de Chances, do The Strokes. Sua voz era realmente muito boa, o que gerou comentários entre meus amigos enquanto esperávamos o nosso momento de subir ao palco.
A nossa banda, que nem tinha nome, tocaria na sequência para o encerramento da feira. Alejandro, Ruprecht, Nicolas e eu costumávamos apresentar nos eventos escolares, mas não era nada sério. Começamos a tocar juntos por causa de uma matéria optativa na escola e desde então não paramos mais. Como disse, não tínhamos pretensões, tudo era mero passatempo para tocar Indie Rock, entretanto, o único que poderia seguir carreira de músico era Rup. O cara tinha um talento nato, tocava qualquer instrumento, cantava e compunha canções. Já meu irmão e eu - ele no contrabaixo e eu na guitarra - conseguíamos acompanhá-lo com nossos instrumentos sem fazer feio. Alejandro se virava na bateria, mesmo se perdendo na contagem de compassos de vez em quando.
Enquanto tocávamos no palco ao céu aberto, pude ver Linda de costas para nós e em frente à barraca de comida francesa. Ela vinha evitando contato visual comigo desde o dia em que a encurralei na sala da secretária do diretor Jones. Eu sabia que ela estava escapando não só pelo que aconteceu com os preservativos, mas também porque enlouqueci ao ficar tão próximo e quase dizer as coisas que eu queria fazer com ela.
O pessoal se aglomerou no gramado diante do palco logo nos primeiros segundos que começamos a tocar. Algumas meninas dançavam ao som do Indie Rock das bandas que fazíamos cover e os caras apenas balançam suas cabeças no ritmo, mas pareciam satisfeitos com o que ouviam. Tudo estava dando certo, do jeito que tínhamos ensaiado. Só não conseguia aproveitar completamente o momento porque meus olhos não se desviavam da Jaguncinha. A sequência de acordes e solos estavam decorados, eu tocava no modo automático ao passo que Rup cantava e tocava sua guitarra como se sua vida dependesse disso. E droga! Eu queria estar curtindo como ele e os outros garotos! Eu queria que Linda não ignorasse a nossa apresentação e fosse a primeira ali na frente, de preferência do lado onde eu costumava a ficar no palco!
Infelizmente tudo que eu via era suas costas, não que fosse uma visão ruim, na verdade, sua calça jeans azul escuro estava bastante justa e mostrava a forma bonita daquele corpo incrível.
Mesmo não muito perto, vi que ela observava o que acontecia dentro da tenda de comida francesa. Havia um crepe sendo preparado sobre uma chapa redonda muito comum nas comidas de rua em Paris. Imaginei que ela provavelmente havia experimento esse tipo de refeição na viagem que fez a capital francesa duas semanas atrás.
Quando passamos para a segunda canção, ela já estava com seu crepe de creme de avelã em mãos. She Moves In Her Own Way do The Kooks tinha um ritmo animado, sem ser pesado. Rup tinha substituído a guitarra por violão de cordas de aço e eu mantive a minha Les Paul* para seguir com o efeito elétrico e realizar o solo. Logo na primeira frase cantada, algumas pessoas começaram a cantar com a gente. A atmosfera amistosa junto ao dia ensolarado deixava tudo legal, mas eu não conseguia parar de observar Linda. Ainda que ela estivesse de costas, dava para ver que deu uma mordida em seu crepe para, em seguida, jogar a cabeça para trás de modo sutil. Eu sabia que ela estava fechando os olhos para apreciar, ao máximo, o sabor do doce e, inconsciente, começou a balançar devagar. De um lado para o outro. Bastante graciosa. Até que, sem se dar conta, virou de frente ainda com os olhos fechados. Ela sorriu, deu mais uma mordida, sujando um dos cantos da boca, e sorriu de novo sem parar de dançar. Creme de avelã e Linda; uma excelente combinação. A minha mente pervertida desejou estar ao lado dela só para tirar aquela sujeirinha com minha língua. Ou quem sabe fazer o contrário. Talvez eu a sujaria ainda mais porque, na verdade, tinha muita vontade de corromper seu jeitinho, que era inocente demais para o meu gosto.
Alheia àquilo que causava em mim, ela continuava a se movimentar ao som da música que eu contribuía para acontecer. O mais engraçado era que a letra que Rup cantava falava sobre uma garota que se movia do seu próprio jeito, presa em seus pensamentos e cheia de complicações. Este era o retrato perfeito de Linda Montenegro. Não dava para negar o quanto ela era única: fosse dançando, agindo, falando, ou simplesmente existindo.
Então ela abriu os olhos. Nos encaramos. Seu sorriso morreu e o meu cresceu. Ela parou de dançar e eu levantei as sobrancelhas com ironia. Ela deu mais uma mordida no crepe sem perceber que sujou os lábios mais um pouco, e eu, aproveitando os míseros segundos de intervalo entre um acorde e outro, elevei a minha mão direita até o meu rosto e apontei o canto da minha boca com a palheta. Ela arregalou os olhos ao entender o meu gestual, as bochechas ganharam um tom rosa de vergonha por causa daquela sujeirinha qualquer, segundos depois fechou o semblante e deu as costas, se afastando com passadas pesadas e limpando os lábios com a palma da mão.
O nosso clima hostil se estendia com o passar dos dias. Quando as férias chegaram, minha família e eu encontramos com os Montenegro em Mykonos. Já fazia duas semanas que meus tios estavam na Europa visitando alguns países com Linda. Foi arrebatador encontrá-la bronzeada naquele cenário bonito da ilha. Ela ficava bem com o mar azul ao fundo, sua alegria era convidativa e vê-la toda criançona, empolgada com as coisas mais simples, coisas das quais eu não tinha o costume de valorizar, sacudiu o meu mundinho tão bem estruturado.
Sem mencionar os biquinis! Caramba! Se ela já ficava deslumbrante vestida no maiô ridículo da Roads, com aqueles pedacinhos de panos era o paraíso!
Infelizmente, tanto ela quanto eu não dávamos abertura para uma aproximação. Linda colou no meu irmão porque assim não teria que lidar comigo. Nico era fácil, receptivo, não tinha maldade e considerava a garota sua amiga. A agitação que os dois causaram nessa viagem deixou minha mãe de cabelo em pé. Principalmente quando saímos da Grécia e fomos para os Estados Unidos. Os parques temáticos da Florida desencadearam um frenesi tão grande neles que até eu fiquei cansado só de olhar. Nico tinha arranjado uma parceira a altura. Pareciam duas crianças descontroladas com tanta distração ao redor. Me senti de fora daquela cumplicidade; algumas vezes cogitei tentar entrosar. Inclusive até ria quando Linda dizia ou fazia algo engraçado. Claro que isso acontecia quando ela não estava me vendo, pois era só nossos olhares se cruzarem que eu ficava sério de novo.
Após dez dias de Mickey Mouse e montanhas russas, fomos para Miami, onde os Montenegro tinham um apartamento de frente para a praia. Minha mãe não gostava daquela cidade, sempre dizia que há décadas havia sido tomada pela classe média, mas não pôde reclamar da suíte luxuosa que a esperava na residência dos meus tios. Até então havíamos hospedado em hotéis naquela longa viagem, agora ficaríamos todos no mesmo lugar, e por mais que o apartamento fosse grande, fiquei com esperança de que a situação entre Linda e eu pudesse melhorar. Só que não melhorou. Entretanto pude perceber que ela evitava a minha mãe muito mais do que a mim. Nunca as vi trocarem palavras além do necessário e a bomba só não explodia por causa de Shari. Tanto Edna quanto Linda respeitavam minha tia, que durante anos lutou para ser mãe, com tentativas frustradas de fertilização e períodos de depressão.
Era final de uma tarde e eu estava na varanda da sala, preso na visão do oceano Atlântico e dedilhando acordes no violão quando ouvi risadas. Nico e Linda tinham passado, praticamente, o dia inteiro fora comprando bugigangas e comendo porcarias. Meu irmão chegou a me convidar para o passeio, mas neguei porque eu já estava de saco cheio de não saber como reparar a minha situação com a garota e louco para voltar para casa.
A vozes alegres se aproximavam enquanto eu deixava o violão sobre a espreguiçadeira e olhava para dentro da sala. Eles não conseguiam me ver de onde eu estava. Apenas eu os via.
O imenso sofá tinha o formato em U. Nico se jogou numa ponta e Linda se jogou na outra, de costas para mim.
— Deus! Tudo é exagerado nesse lugar! Não quero comer nunca mais! — ela exclamou em um som quase gutural.
— Você comeu uma bandeja de frutos do mar no almoço, e uma hora depois seis rosquinhas. Não pode reclamar.
— Eu não sabia que as porções eram tão grandes. Além disso, odeio desperdiçar comida. — Lamentou e ficou em silêncio por um tempo até começar a rir baixo.
— Do que você está rindo, Linda? — meu irmão perguntou de olhos fechados.
— Daquele doido na rua.
Nico silvou.
— Nunca tive tanto medo. O cara me encarou e veio na minha direção falando coisas sem sentido!
— Ninguém nunca te ensinou que não se olha pra doido de rua?
— Não. — Nico deixou escapar um riso.
— É só passar reto que ele não mexe com você.
— Ok. Nada de contato visual com mendigos doidos na próxima vez. — Após esse comentário de Nico, Linda gargalhou com as mãos na barriga e quando ela se acalmou, ele a chamou novamente. — Linda?
— O que foi, Nico?
— Tenho uma curiosidade. É sobre a Lauren.
— O que eu tenho a ver com a Raimunda?
— É justamente isso que quero saber. Por que você a chama assim? — com essa pergunta, tive que dar uns passos para frente, ficando entre a varanda e a sala. Eu também estava curioso quanto ao apelido de Lauren.
Linda ergueu o tronco, se apoiando nos cotovelos.
— Raimunda: feia de cara e boa de bunda.
Depois dessa resposta, foi impossível me manter na surdina. Eu ri alto porque aquilo era a mais pura verdade. Lauren tinha um corpo bacana, mas o rosto deixava a desejar.
Vi a Jaguncinha se sentar de supetão e olhar para trás. Seus olhos estavam arregalados e o sol que vinha de fora refletiu naquele verde inconfundível.
Não consegui parar com as risadas, Nico também. Em um certo momento, Linda se encheu de não falarmos nada, ficou de pé e virou na minha direção com as mãos na cintura. O rabo de cavalo desgrenhado e seu short jeans curto dava um ar tão à vontade, que tive vontade de agarrar aquela menina bravinha e distribuir uma porção de beijos em seu rosto em meios aos meus risos.
Infelizmente ela cortou o meu barato da minha fantasia quando falou:
— Pois saiba que ela não teria esse apelido se não tivesse me apelidado de jagunça! Foi ela que começou!
Deu meia volta e saiu batendo o pé.
*Les Paul: Gibson Les Paul é um modelo de guitarra.
Abaixo segue um vídeo de um coral infantil cantando Chances do The Strokes. Foi mais ou menos assim que imaginei o coral da Roads, mas a diferença é no vídeo as crianças e os adolescentes dividem o solo, já no coral da Roads o solo é somente de Linda.
Escutem porque está de arrepiar de tão bonito.
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Versão original do The Strokes
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She Moves In Her Own Way (a música que Pedro tocou olhando para Linda)
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A primeira música que a banda sem nome dos garotos tocou.
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