Capítulo 7 parte 2
LINDA
Quarenta minutos depois estávamos na sala do diretor Mitchell Jones; um americano alto e bigodudo com sotaque carregado. Edna, que estava sentada numa cadeira de braços de madeira ao lado de seu filho, me encarava como se fosse me fuzilar. Luís e eu havíamos sentado num sofá de frente para os dois. O diretor permaneceu entre nós, escorado em sua mesa de trabalho.
Sem vestígios de sangue e sem uma lesão séria no nariz, Pedro teve que contar sobre o acontecido duas vezes. Graças a Deus não detalhou demais. Omitiu os preservativos e disse que ele mesmo teve a ideia de mexer em meus pertences, instigando os amigos para que o seguisse naquela brincadeira.
— E você reagiu batendo. — Jones afirmou calmo, olhando para mim.
— Bati e não me arrependo. — Minha voz saiu baixa e segura. Era a primeira vez que eu abria a boca para falar desde a última hora.
O diretor apenas gesticulou com a cabeça, pensativo por alguns segundos, antes de falar:
— Estou pensando em suspensão para os dois alunos. Mais dias para Linda porque aqui na Roads temos uma política rígida contra agressão física.
— Mas isso é um absurdo! — manifestou Edna imediatamente. — Meu filho foi atacado e poderia ter revidado por ser mais alto e mais forte!
— Mãe... — Pedro suspirou, fechando os olhos.
— Mas ele não revidou! — Edna continuou. — Tudo por causa de uma brincadeira de criança! Cadê o senso de humor dessa menina?
— Mãe...
— Se algum aluno não consegue suportar uma brincadeira, a escola precisa tomar as devidas providências! Olha, diretor Mitchell Jones, sou amiga da família Montenegro, Shari é como uma irmã para mim! Mas nem por isso posso deixar algo tão sério ser tratado como se fosse uma normalidade! O que aconteceu hoje não é normal!
— Mãe! — Pedro foi mais enfático.
Ainda assim, ela não parou.
— Me recuso a pensar que a Roads está afrouxando porque nossas famílias são influente e contribuem financeiramente com...
— Mãe, por favor, pare! — Pedro virou para o lado e segurou a mão de Edna. Vendo que ela se conteve, ele olhou na direção de Luís e prosseguiu. — Passamos do limite. Na verdade, eu passei do limite, tio. — Ele manteve-se encarando meu pai que, por sinal, estava calado demais. — A brincadeira tomou um rumo que não deveria ter tomado. Linda ouviu coisas cruéis e acabou se defendendo. A escola não deveria puni-la!
Nem mesmo a sua defesa ao meu favor foi capaz de me comover, pois só o fato de ele estar protegendo Lauren também, me rebolia as entranhas de tanta raiva.
Luís ficou em silêncio por mais uns instantes até olhar para o meu lado. Instintivamente espelhei seu movimento.
— O que aconteceu, minha filha? — perguntou baixo. — Até agora não ouvi a sua versão. Diga-me o que aconteceu.
Eu realmente deveria contar? Tipo, contar tudo? Eu deveria dizer que eu já estava chateada devido a notícia recebida do Ceará? Que eu odiava a irresponsabilidade da minha irmã mais velha? Que eu seria tia pela quarta vez e que seria o meu quarto sobrinho sem pai? Deveria dizer que ela me pediu dinheiro? Que depois de falar com Francisca, comecei a andar sem rumo? Deveria dizer que vi um aglomerado de adolescentes em volta da minha carteira? Que eles estavam fazendo chacota porque ando uma cartela de preservativos para todo o lado mesmo sem a intenção de fazer sexo?
Além dos Montenegro, ninguém mais sabia dessa minha mania. Eu tinha apenas catorze anos, mas garotas da minha idade, vindas de uma realidade de miséria, dificilmente se mantinham virgens. Muitas de nós tínhamos a nossa primeira vez roubada. Por sorte eu ainda era intocada, porém, traumatizada. Por isso que no último ano comecei a levar comigo camisinhas por onde quer que eu fosse. Eu não tinha pretensões em iniciar a vida sexual tão cedo, mas o medo me rondava. Eu me recusava a ter filhos fora do tempo! Eu me recusava ter o mesmo destino que minhas irmãs e minha mãe! Na primeira vez que contei aos meus pais adotivos sobre esse hábito esquisito, eles entenderam e respeitaram.
— A Francisca... a gente tinha acabado de falar pelo telefone. — Praticamente cochichando, encolhi os ombros e virei um pouco de lado para encará-lo melhor. Era vergonhoso confessar que eu mantinha contato com minha família biológica sem o conhecimento dele. — Ela vai ter outro bebê. Eu não estava num bom momento...
Pausei, incerta de quais palavras deveria usar.
— Entendi. Continue. — Luís incentivou, sempre benevolente.
— Eu já estava chateada com essa notícia e quando cheguei na sala de aula, vi que estavam... que estavam...
Tremi da cabeça aos pés. O ar denso daquela sala dificultava meu raciocínio.
— Eles estavam vasculhando seus objetos pessoais. — Completou para mim, cheio de compreensão.
— Aham... — pigarreei e fechei os punhos. Finquei as unhas na palma da minha mão com força para compensar a fragilidade da minha voz. — .... eles riram e alguns disseram mentiras ao meu respeito. — Eu não queria repetir o que ouvi de Lauren. Suas palavras foram tão nojentas que não tive coragem de proferi-las. — Eu não vi quem pegou minha necessaire e nem me lembro de tê-la esquecido na sala de aula quando fui para a aula de educação física, mas não acho justo que só Pedro e eu estejamos aqui.
— Quem mais deveria estar aqui? — ouvi o diretor interferir.
Puxei uma longa respiração, pois se Pedro pretendia proteger a Raimunda, eu arruinaria seu plano! Os dois que se danassem juntos!
— Lauren Iversen. — Continuei olhando para meu pai, pois só com seu incentivo que eu criaria coragem para soltar o verbo.
E foi o que fiz dali para frente. Mesmo com a voz fraquejada, contei como Lauren aproveitava quando estávamos longe das vistas dos funcionários da Roads para fazer piadinhas xenófobas, sempre acompanhadas por sua típica risadinha irritante. Relatei sobre o seu roubo malsucedido da minha mochila semanas atrás e a suspeita que eu tinha sobre a sua liderança no ocorrido de hoje. Se duvidassem de mim, as câmeras de segurança da escola eram minhas provas concretas.
Apenas ocultei o absurdo que ela proferiu a respeito do meu pai e a ameaça que sussurrei em seu ouvido. Essas coisas eu manteria comigo.
— Ok. Chamarei a senhorita Iversen aqui. — O diretor começou a falar. — Mas isso não anula o fato de que você agrediu um colega, Linda.
— Eles fuçaram naquilo que não podiam fuçar. — Retruquei com um resmungo.
— O que seria exatamente? — A voz do senhor Jones soou preocupada, com razão. Ele prezava pela segurança de todos os alunos num mundo cheio de acontecimentos violentos nas escolas.
— Coisas. — Engoli em seco, e numa comunicação visual, continuei olhando diretamente para meu pai. Levantei as sobrancelhas enquanto dizia: — O senhor sabe.
Então Luís entendeu sobre o que se tratava. Por poucos segundos seu rosto surpreso se transformou em algo sombrio. As narinas dilatadas mostravam o quanto seu humor foi afetado. Assim, ele lançou um olhar na direção do diretor e falou:
— Preciso conversar a sós com o senhor. Levará apenas alguns minutos.
Por um milagre, Edna não falou mais nada.
Enquanto aguardávamos o diretor Jones e Luís, permaneci de pé e escorada na parede. Só se ouvia o barulho de teclas do computador da secretária. Aquela antessala tinha um tamanho razoável, mas para mim, parecia apertada demais para nós quatro. Por esse motivo não fiz contato visual com ninguém; era mais interessante encarar meu tênis. Novo. Branco. De marca. Exclusivo. Talvez um pouco destoante da saia e da meia três quartos. E daí? Mero detalhe! Nos dias que eu tinha aulas de Educação Física, eu os usava. Nos outros dias, sapatos pretos brilhantes. Desse modo eu revezava os calçados.
A porta se abriu e Mitchell Jones chamou Edna. Não vi, mas percebi que ela se levantou e andou. A porta foi fechada logo em seguida.
Continuei sem levantar a cabeça. Meus calçados eram mais interessantes do que qualquer outra coisa ali. Shari havia me presenteado com novos Oxford. Lindos e macios. Os antigos ainda serviam, mas ela disse que estavam velhos. Exagero dela, na minha opinião. Cresci usando as coisas até se acabarem, dissolverem ou puírem. Era estranho ter tudo em abundância.
Mesmo assim eu tinha planejado que estrearia os Oxfords na escola no dia seguinte.
Será amanhã.
Deixei escapar uma risada amarga e neguei com a cabeça. Provavelmente eu estava suspensa. A estreia seria adiada.
Por quanto dias eu ficaria em casa?
O telefone da secretária tocou. Ela não disse muita coisa, apenas concordava com o que ouvia do outro lado da linha. Antes de encerrar a ligação, falou "Ok, senhor Jones.". Recebida a ordem do nosso diretor, ela fez um nova chamada e começou a falar com a coordenadora Baxter.
Eu ouvi tudo; Lauren seria solicitada a diretoria também. Ótimo!
O telefone foi colocado no gancho e as rodinhas da cadeira se arrastaram no chão.
— Preciso sair por alguns minutos. Por favor, comportem-se. — A secretária pediu e foi se retirando. Achei estranho deixar dois inimigos sozinhos no mesmo lugar.
Entretanto, não falamos nada por um tempo. Cada um em seu canto. Só silêncio... e meu tênis branco. E o pensamento nos Oxfords que não seriam estreados amanhã.
— Desculpa. — A voz de Pedro soou. O pedido foi firme, sem medo e sem covardia. Mantive-me com a cabeça baixa, mesmo sabendo que ele também estava de pé e escorado na parede oposta a minha. — Deixei ser influenciado pelo momento e não estava pensando direito... foi idiota. Eu fui um idiota. — Ouvi ele suspirar alto e, num tom de voz desgostoso, concluir: — A verdade é que nada justifica o que eu fiz. Por isso estou pedindo desculpa.
Mesmo ele reconhecendo o erro como uma pessoa de caráter reconhece, encobri todo o meu abalo e falei:
— A ideia não foi sua e você não agiu sozinho, mas não me surpreende que esteja protegendo Lauren.
— Não me importo com Lauren. Muito menos agora.
— E não me interessa se você cospe no prato que comeu. — Foi impossível esconder o rancor na voz.
— Não é nada disso que está pensando.
— Que seja...
Só cale sua maldita boca!, gritei em pensamento enquanto ele tentava prolongar o papo comigo.
— Lauren não aceitou muito bem o nosso término. Às vezes a gente pensa que conhece uma pessoa até começar a passar mais tempo com ela e ver que é tudo uma farsa. A verdadeira índole dessa pessoa aparece de um jeito ou de outro. — Escutei uma risada curta e sem vontade. — Fizemos uma brincadeira de mau gosto. Isso não vai mais acontecer, tem a minha palavra.
— Não quero seus favores, Pedro.
— Compreendo. E você nem precisa deles.
— Então cala a boca. — Finalmente soltei.
Mas ele estava disposto a continuar com a conversa.
— Só um egoísta não entenderia o seu comportamento. — Pareceu lamentar. — Você só quer se sentir segura.
— Você não sabe de nada sobre minha vida.
— É verdade, eu não sei, mas eu te observo...
— Me observa? Pra quê? — levantei a cabeça, voltando a me sentir irritada. — Pra rir de mim quando estiver com seus amigos idiotas?
Ele endureceu o queixo, travando um olhar desafiante comigo. Foram míseros segundos de silêncio quando ele, numa voz baixa e séria, começou a falar.
— Na noite em que nos conhecemos, você chorou quando experimentou a sobremesa. Desde então, toda vez que te vejo comer algo doce, percebo que fecha os olhos. — Ele desencostou da parede e continuou:— Não há dúvidas de que você seja realmente boa em matemática, mas sua paixão é desenhar, pintar e colar adesivos. — Deu um pequeno passo para frente. — Você costuma fechar os punhos quando fica irritada. Fez isso no primeiro dia de aula, quando Alejandro presumiu que você pudesse nos roubar, fez a mesma coisa quando Lauren roubou sua mochila, fez hoje quando ela falou aquela merda do tio, fez na sala do diretor agora a pouco. — Outro pequeno passo. — E está fazendo isso agora.
— Estou com vontade de socar sua cara de novo. — Grunhi.
Pedro falhou em segurar um sorriso.
— Seria outro soco bem-merecido.
— E você e sua mãe teriam o prazer de me ver expulsa da Roads.
Seu sorriso morreu.
— Me desculpa. — Ele repetiu em voz baixa.
Permaneci calada, achando muito cedo para aceitar suas desculpas. Tive muita raiva dele, mas tive raiva da minha mente também, pois passei meses sustentando uma paixão incabível. Estava quase certa de que me apaixonei por uma ideia e não por uma pessoa. O problema era que meu corpo não estava indiferente com a aproximação dele. Um calor agradável subia por minhas coxas, deixando minhas pernas moles e o coração acelerado.
— Me desculpa. — Insistiu e deu mais um passo, com seus olhos me hipnotizando.
— Não posso. Você só quer brincar comigo.
— Me desculpa. — Deu um outro passo, lento e repleto daquele tipo de masculinidade atraente. Caramba, o cabra sabia ser bonito!
— Não se aproxime mais, Pedro. — Pedi, assustada. Eu estava sem entender como ele conseguiu migrar da contrição para a sedução tão rápido!
— Me desculpa, Linda. — Meu nome saiu da sua boca como um elogio.
Um novo passo.
— Diabeisso* que você está fazendo?
Ele sorriu pequeno ao ouvir a gíria que me escapou e respondeu:
— Estou me desculpando.
— Mas você não me suporta, por que eu deveria?
Ele estava cada vez mais perto.
— Você tem toda razão. Não te suporto e tenho raiva das coisas que me faz sentir. — Concordou quando as pontas de nossos calçados se encostaram. Depois se curvou e suas mãos se apoiaram na parede, bem ao lado minha cabeça.
— Então se afaste, por favor. — Supliquei face a face.
Ele não atendeu ao meu pedido, pelo contrário, voltou a se comportar com a arrogância de sempre. Meu coração bateu ainda mais rápido e parecia que eu podia ouvi-lo retumbar.
Ao ver que Pedro moveu o rosto para levar a boca ao meu ouvido, fechei os olhos.
— Você é uma coisinha pequena. — Sussurrou e calor de sua frase alcançou a minha bochecha. — Tão pequena que eu tenho vontade de...
Antes que terminasse a frase ouvimos a porta se abrir. Não sei como Pedro conseguiu se afastar tão rápido, pois quando abri os olhos, ele já estava encostado na parede oposta à minha. O diretor o chamou para entrar e ele entrou. Fiquei do lado de fora, aguardando a minha vez e tentando entender o que tinha acabado de acontecer.
Pedro disse que eu era uma coisinha pequena e isso remetia a coisas insignificantes. O problema foi que seu tom de voz não era de desprezo. Aquilo tudo soou mais como um desejo. Bufei confusa. Era melhor não pensar muito sobre o assunto. Eu tinha um problema maior do que bem me que, mal me quer. Eu ainda era nova demais para entender essa linguagem de garotos cheios de hormônios, onde querem chamar a atenção de uma garota de um jeito ou de outro.
Sozinha, não precisei voltar a olhar para os pés. Observei tudo ao meu redor sem me desencostar da parede, aproveitando daquele silêncio antes de ouvir a iminente notícia sobre meu futuro na Roads.
Não demorou muito para a porta se abrir de novo e ver meu pai cumprimentar o diretor Jones amistosamente como se tivessem fechado um grande negócio.
Desencostei da parede quando vi meu pai se aproximar.
— E aí? — perguntei, nervosa.
Edna e Pedro também saíram da sala logo em seguida.
— Três dias de suspensão. — A ocasionalidade na voz de meu pai me vez encará-lo novamente. Como assim ele estava bem com isso?
— Três dias? — minha voz saiu aguda, porém amuada. Eu não sabia se ficava aliviada por não ter sido expulsa ou se ficava mal com aquela pena disciplinar.
— Mas não se preocupe. É apenas uma formalidade. Aqui eles seguem as regras sem pensar nas exceções. — Seu semblante estava carregado de sarcasmo. — Amanhã é quarta-feira. Somando com o fim de semana, são cinco dias de descanso. — Descanso? Peraí, eu deveria ficar de castigo!, pensei, ouvindo-o falar: — Então resolvi que esta noite você e sua mãe viajarão comigo para a França. Enquanto trabalho, as meninas farão compras na Champs-Élysées. Vamos, Linda?
Não consegui falar mais nada, muito menos reparar nas reações das outras pessoas ali. Tudo que fiz foi pegar minha mochila, que estava na cadeira ao lado, e seguir meu pai.
Paris parecia um bom castigo.
Que dia estranho.
Diabeisso*: Expressão que significa "Que diabo é isso?".
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