Capítulo 7 parte 1
LINDA
Eu tinha estudado muito, me dedicado ao extremo para alcançar o nível dos demais alunos. Seis meses tinha se passado e em poucas semanas o ano letivo encerraria.
Ami mostrou-se aberta para uma amizade verdadeira, preenchendo o vazio do que eu tinha perdido no Ceará, com a morte de Midiã. Apesar de sermos de séries diferente, minha nova amiga e eu passamos a andar juntas na escola. Inventamos os Clube das Vira-latas, onde a regra para ser membro do grupo era simples: ser rejeitada por (pelo menos) setenta por cento dos alunos. Com isso, apenas nós duas estávamos aptas a fazer parte do clube. No meu caso era por não ser uma Montenegro de sangue, e ela por ser bolsista da Roads.
Eu evitava falar da minha família no Ceará, mas as vezes me escapava um comentário ou uma história aleatória. Ami sabia que minhas irmãs eram jovens mães solteiras, e que dentre as duas, Bruna era a que mais me fazia falta.
Naquele dia, eu terminava de pentear meus cabelos molhados no vestiário do ginásio. Logo mais seria o almoço, mas Ami e eu aproveitaríamos o intervalo para ensaiar. Em alguns dias o coral da Roads se apresentaria na confraternização do final do ano letivo e a regente tinha me dado um solo. Não queríamos fazer feio na frente de nossas famílias, então, para otimizar o tempo, minha refeição se resumiria a um snack de frutas secas.
Distraída enquanto cantarolava baixinho, mal percebi que meu telefone vibrava sobre a bancada. Joguei o pente dentro da mochila, mas antes que eu conseguisse atender, a chamada foi encerrada. Verifiquei quem poderia ter ligado, e mesmo com o número desconhecido, vi que o prefixo era de São Fortúnio, minha cidade natal.
Pensei que poderia ser Bruna, pois era a única da minha família biológica que tinha meu contato. Foi automático retornar à ligação; presumi ser urgente.
Mas aí estava o meu erro! Como uma menina de catorze anos conseguiria resolver uma urgência há milhares de quilômetros de distância?
Um gosto amargo subiu até minha boca quando ouvi a voz de Francisca do outro lado da linha. Pelo tom de sua voz eu já sabia que não ouviria algo bom e não me enganei. Minha irmã mais velha anunciou a gravidez do terceiro filho como se fosse a coisa mais natural do mundo. Seria normal e motivo de festa se sua realidade permitisse. Mas Chica era solteira, desempregada e semianalfabeta. Além do fato de ter apenas dezenove anos.
Três filhos de três pais diferentes. Três inocentes.
Minha cabeça previu o que aconteceria. Toda a responsabilidade cairia nas costas de Ana Maria, minha mãe biológica. Imaginei-a se acabando de tanto trabalhar para sustentar os netos enquanto Chica ficaria solta no mundo, desajuizada como sempre foi.
Obviamente minha irmã não queria apenas me informar que eu seria tia de novo. Chica era terrível; uma pedinte de carteirinha. Sabia chegar de mansinho, bajular, para em seguida nos constranger por termos muito e ela tão pouco! Tudo era dito com muita sutileza, mas com pequenas alfinetadas. Morder e assoprar para depois dar a cartada final: pedir.
Ela queria dinheiro. O que mais seria?
O fato de eu ter sido adotada por uma família abastarda não me fazia a salvadora da minha família biológica, muito menos das irresponsabilidades de Francisca. Um dia eu os ajudaria sim, mas seria com o fruto do trabalho das minhas conquistas, e não com aquilo que eu recebia dos Montenegro.
Neguei a ajuda para minha irmã porque eu realmente não tinha como ajudá-la. Eu não entraria em detalhes com ela, pois, por mais que Luís tivesse feito uma conta no banco em meu nome, eu era menor de idade e as movimentações bancária eram monitoradas por meus responsáveis.
— Dá um jeito, Linda! Preciso de dinheiro! — insistiu, com sua voz perdendo a suavidade e ganhando um tom severo. Já era esperado que ficasse agressiva após ouvir a recusa.
— Não tenho como fazer isso, Chica. — Tentei ser fria e firme.
— Tem sim! — gritou. — Você me deve, deve ao seu sobrinho mais velho! Miguel não tem o pai e todos nós sabemos o motivo! — eu sabia que ela tocaria nesse assunto, mas nem por isso pude deixar de sentir medo. — Nem mesmo o Rondini vai conseguir me fazer ficar de bico fechado! Se vire pra depositar essa grana!
Assim ela encerrou a chamada, deixando-me com um problema que ia além da minha capacidade de resolver.
Não sei quanto tempo fiquei parada, com o telefone ainda colado na orelha.
Chica havia mencionado aquilo que nossa família combinou de nunca mais tocar no assunto. Genaro Rondini, o chefe do tráfico de drogas da região onde nasci, agia como se fosse o xerife. Seu poder era tão grande que até os prefeitos se sujeitavam a ele. Apesar de ser um homem fora da lei, ele conseguia manter a ordem das cidadezinhas. Ele não aceitava que os maridos batessem nas esposas, punia quem furtava, torturava e matava estupradores, pedófilos e toda essa raça nojenta.
Como eu andava na linha, Rondini gostava de mim. Dizia que eu era o orgulho da cidade por causa das minhas conquistas escolares. Foi ele que aconselhou que eu me mudasse de São Fortúnio para minha própria segurança.
Eu não o admirava pela sua liderança e por distribuir "bondades" aos cidadãos que não perturbam a "paz". Não mesmo! Não quando seu senso de justiça se baseava em nele próprio e em seu modo de pensar apenas. Entretanto, Rondini só me causava medo de vez em quando, já Francisca, a história era outra. Ela sempre me dava arrepios.
Tremendo, guardei o telefone na mochila. Tentei procurar minha necessaire, mas estava tão nervosa que desisti. Não me importava mais em passar o brilho labial ou qualquer outra maquiagem. Eu só queria sumir. E chorar. Outras garotas circulavam pelo vestiário, suas conversas animadas se distanciando dos meus ouvidos. Peguei minhas meias três quartos de modo automático e quando sentei no banco para calçá-las, minha visão embaralhou. Fiz o possível para não desmoronar naquele território onde não havia proteção para mim. Respirei fundo e soltei uma grande quantidade de ar pela boca algumas vezes. Até que escutei a voz de Ami no fundo. Sem saber o momento exato que ela chegou, apenas a encarei sem a mínima vontade de falar. Seu rosto preocupado só serviu para agravar o meu estado emocional. Calcei as meias, os sapatos, fiquei de pé e joguei minha mochila nas costas, ouvindo minha amiga perguntar se eu estava bem. Antes de dar-lhe as costas, balbuciei:
— Preciso andar.
Saí do vestiário lenta e um pouco cambaleante. Ao atravessar a área da piscina, meu andar foi ganhando um pouco mais de firmeza. Nas quadras eu praticamente trotava e, chegando nas escadas, as desci rápido com Ami logo atrás, falando coisas que eu não compreendia. Minha vontade de cantar tinha sumido. Tudo que eu queria era tirar aquela sensação ruim de mim. Por isso acelerei as passadas pelo corredor, sem lugar específico para chegar, apenas precisava me movimentar. Desci mais um lance de escadas com a visão turva quando o sinal do intervalo do almoço tocou e alunos começaram a sair das salas de aula. Ami continuou atrás, me acompanhando a espreita. Ela já sabia que eu andava a esmo quando ficava nervosa.
Ao entrar no setor onde ficava a minha sala, diminuí os passos.
Mesmo desorientada, percebi uma movimentação incomum. Alguns alunos de outras séries entravam e outros saíam pela porta que eu atravessava diariamente, todos com rostos curiosos e a maioria risonhos. Por um instante pensei que seus olhares se voltavam para mim.
Como se não bastasse tudo que sentia, tive um mau presságio. Desacelerei ainda mais o meu caminhar ao ver que abriam espaço para que eu pudesse passar.
Sim, eu era o centro das atenções!
Quando entrei pela porta da minha sala de aula, havia um aglomerado de alunos nas carteiras centrais. Bem onde eu me sentava.
— Olha ela ali! — Lauren riu, apontando para mim.
Meu cérebro demorou a entender o que realmente acontecia até ver Pedro e seu meio-sorriso sarcástico. Ele estava bem atrás da minha cadeira e algo metálico reluzia em sua mão direita. Desci o olhar, avistando a minha necessaire aberta sobre a mesa.
Não! Não! Não!
Por instinto, corri para onde ele estava, passando por entre Alejandro e Lauren, que não se aguentavam de tanto rir. Pedro percebeu a minha intenção e levou a mão para o alto, ficando impossível de alcançar aquilo que me pertencia.
— Devolve, Pedro, — pedi, desesperada. — por favor!
— Lindinha, sua safadinha! Quem diria! — Any, amiga inseparável de Lauren bradou de algum lugar.
As gargalhadas aumentaram.
O mundo ao redor sufocando-me sem piedade.
— O que vai fazer com esse tanto de preservativo? — Pedro sacudiu a cartela no ar enquanto eu tentava abaixar seu braço.
— Você é muito inocente, Pedro! — ouvi a voz de Lauren logo atrás — Não está claro o objetivo da jagunça?
— Você não deveria mexer naquilo que não é seu! — continuei de frente para Pedro, ignorando o comentário de sua namorada.
— Sim, eu não deveria — concordou cinicamente. — e nem estava interessado até Lauren me mostrar o que você leva para todo lado. Então agora fiquei curioso. Pra que tanta camisinha?
— Não é da sua conta.
— Diga o motivo e eu devolvo. — Ampliou o sorriso com muita maldade, destruindo o meu coração.
— Não lhe devo explicações.
— Então não LHE devolvo. — Remedou o meu sotaque, se divertindo as minhas custas. — Diga.
A vergonha queimou minhas bochechas. Ser forçada a dizer algo que não estava pronta para revelar era esmagador demais.
— Não quero ser igual as minhas irmãs — falei baixo para que somente Pedro ouvisse. — Eu não vou seguir pelo mesmo caminho delas. Não serei uma mãe adolescente.
Ao me ouvir, seu sorriso morreu. Enquanto um dos meus inúmeros medos estava sendo ridicularizado ao nosso redor, seus olhos castanhos suavizaram. Já não existiam as fagulhas pérfidas de um segundo atrás. Nunca vi uma mudança de expressão acontecer tão rápida. Da maldade para estupefação, e depois, o arrependimento. Agora sim ele tinha compreendido o meu motivo! A dor em seu rosto deu-me a impressão de que se desculparia. Talvez. Que seja! O meu coração estava endurecendo para ele, de qualquer maneira.
Porém, antes de qualquer nova reação vinda de nós dois, a voz de chacota de Lauren rompeu em meio ao burburinho.
— Fala mais alto! Está com medo de confessar que foi adotada para ser a putinha do papai?
Cerrei os punhos.
Eu queria virar e partir para cima daquela menina entojada, mas Pedro estava bem na minha frente, um tanto assustado por sua namorada dizer o que algumas mentes maldosas provavelmente pensavam. Ele a encarou rapidamente e, no segundo em que seu olhar voltou a se encontrar com o meu, abaixou o braço para me entregar os preservativos. Aproveitei sua baixa guarda e não pensei duas vezes antes de meter um murro no meio do seu nariz. Em seguida, arranquei a cartela de suas mãos, virando de frente para um público eufórico e joguei-a de volta na necessaire. Assim que levantei a cabeça, avistei Ami e Rup entrarem na sala. Ambos assustados.
Isso não me impediu de dar um passo na direção de Lauren.
— Nunca mais fale de meu pai ou terei que lhe colocar em seu lugar, sua lambisgóia. — Aproximei mais um pouco e sussurrei em seu ouvido. — Já sujei minhas mãos de sangue uma vez, não importarei de repetir o feito. — Dei um passo para trás, agora com intenção de que todos ouvissem, concluí: — Não esqueça disso, Raimunda.
Eu estava pronta para me afastar quando a coordenadora do ensino médio apareceu.
— O que está acontecendo aqui? — ela perguntou, olhando para Pedro, que segurava o nariz ensanguentado.
Enquanto a coordenadora Josephine Baxter me levava para sua sala, Ami vinha atrás, pedindo-me desculpas.
Foram Rup e ela que chamaram a senhorita Baxter ao me verem encurralada pela armadilha de Lauren. Aconteceu que eles não esperavam que eu resolvesse a situação do meu jeito: socando um nariz e sussurrando uma ameaça.
Se não fosse a agressão, eu seria cem por cento a vítima. Agora eu era a vilã, pois o capitão da equipe de canoagem, membro do clube de matemática e guitarrista nas horas vagas, ou seja, o garoto de ouro da Roads estava recebendo cuidados na enfermaria.
Tadinho.
Como não adiantaria ficar me defendendo, resolvi não abrir a boca em hipótese alguma. Em sua sala, a pobre coordenadora até que tentou, por fim teve que chamar a psicóloga da escola.
Continuei calada.
Minha nossa! Pedrão pisou na bola!
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