Capítulo 4
PEDRO
Eu não sabia o que deveria sentir.
Em parte, tive raiva. Ela era uma intrusa, uma peça fora do lugar.
Porém, vê-la tão deslocada, dava pena também.
Meio magricela e desajeitada, ela era um clichê ao vivo e em cores da mocinha pobre dessas telenovelas cafonas. Se gesticulava com inocência, insegura, tímida e com uma dose de atrevimento. O tipo que não aceitava desaforo.
Inteligente, mas sem berço.
Meus tios teriam muito trabalho para educá-la!
Minha mãe dizia que Shari e Luís estavam loucos em adotar uma adolescente. Ela nos preparou para encontrar o pior naquele jantar. Dentro do carro, durante o trajeto até a casa dos Montenegro, não parou de falar. Queria deixar conceitos prontos em nossas mentes.
Nico não deu ouvidos, meu pai muito menos, já eu queria dar algum crédito a mulher que me concebeu.
Edna tinha zelo pelos seus. Era extremamente possessiva e protetora dos amigos e da família. Morria de medo de sermos envolvidos em algum escândalo. Dizia que o legado de gerações poderia ser corrompido em segundos por causa de uma única pessoa tomando uma má decisão. De certa forma, Nico e eu entendíamos a responsabilidade do nosso sobrenome. Éramos privilegiados por sermos herdeiros de uma importante empresa do setor alimentício do país. A mídia e os políticos estavam em cima de todos nós. Nossos carros eram blindados e sempre estávamos rodeados de seguranças armados. Eu tinha dezesseis anos e esse fardo já pesava em minhas costas, pois, como minha mãe costumava falar, existia pessoas que esperavam algo de nós.
— Já pararam para pensar na quantidade de pais e mães de família que empregamos? — minha mãe sempre finalizava seus discursos ensaiados com essa pergunta.
Isso era cansativo, mas pelo menos dava um sentindo maior para minha vida. Mesmo que eu quisesse seguir por caminhos diferentes dos meus antepassados, eu tinha um futuro garantido. Um plano B se o A desse errado.
Esse era um dos motivos que me fazia não questionar o jeito agressivo que minha mãe nos protegia. Eu estava disposto a levar em consideração sua opinião sobre a menina que meus tios haviam adotado. A verdade era que se eu pudesse nem teria ido ao tal jantar de boas-vindas da coitadinha.
O problema foi que ao entrar na sala de estar dos Montenegro, eu a vi.
Assustada e desajeitada.
Pura. Transbordando inocência.
Linda como o próprio nome sugeria.
Isso me enfureceu porque era única garota proibida para mim.
Ela seria um problema.
Dos grandes.
LINDA
Era um mundo completamente diferente daquele eu estava acostumada. A estrutura do colégio continha muita imponência; salas de aula com ar-condicionado, carteiras e notebooks para todos os alunos, uma biblioteca bem equipada e piscina aquecida. Lá era tudo limpo, muito limpo mesmo! O banheiro tinha cheiro de eucalipto. Por ser uma construção grande e luxuosa, obviamente me intimidava, mas não a ponto de me fazer recuar. Aquilo era só concreto.
Humanos dominam as coisas, e não o contrário., pensei algumas vezes, pois, o que eu realmente temia era as pessoas. Os professores foram gentis, pacientes até demais. Se eu entendia uma frase de suas explicações em inglês, as próximas nove eu não fazia ideia do que se tratava. Ok. Era apenas meu primeiro dia de aula numa escola bilíngue. Com esforço, daria para pegar no tranco. Entretanto, a boa receptividade foi apenas através do corpo docente. Meus colegas de classe ficaram receosos ao ver que teriam uma nova companheira bem no meio do ano letivo. Ainda que eu estivesse vestida no uniforme como eles e que meu tênis fosse tão caro quanto os seus calçados, meu trejeito de menina pobre parecia estar evidente.
Por mais que os Montenegro me emperiquitassem, eu estava longe de assumir a postura de uma adolescente endinheirada. Eu tinha muito o que aprender. Principalmente quando se tratava de lidar com aquelas pessoas. Dona Edna tinha me dado uma bela amostra no jantar dias atrás.
A única aluna que veio até mim com genuína gentileza foi Ami Shibata. Uma nipo-brasileira que falava o português mais paulistano do mundo! Ela era da turma do Nico, mas se encarregou de me mostrar as estruturas do colégio e me ajudar no inglês.
Infelizmente, já na parte da tarde, Ami teve que me deixar para participar de uma reunião dos representantes de turma do ensino médio, ou melhor, do High School.
Eu tinha vinte minutos livres antes de me encontrar com o coordenador. Era um protocolo da escola acompanhar os novos alunos de perto com eventuais encontros no gabinete. Mas, ao invés de esperar na biblioteca ou em qualquer outro lugar nos arredores, resolvi ir à área comum. Acostumada a andar quilômetros por dia, sentia falta de me movimentar.
Eu estava rumo ao pátio principal quando interrompi os passos ao ver a ala de quadras esportivas vazia. Não vi problema em adentrar e caminhar por ali. Seria até melhor, visto que as turmas da primeira série estavam no pátio realizando uma atividade ao ar livre numa euforia ensurdecedora.
Deixei a mochila na arquibancada e comecei a dar voltas por uma das quadras. A saudade da minha família apertava no peito, mas, para garantir um futuro melhor para todos, teria que não criar problemas com a solidão. Esta seria minha aliada. Entretanto, não digo solidão de pessoas ao redor. Luís e Shari eram presentes, gostavam de conversar e me incluir em tudo. Eles me amavam e eu os amava. A dificuldade estava dentro de mim. Meus pensamentos estavam acostumados a serem de sobrevivência. Uma vida inteira lutando para ter o básico do básico com todos da minha casa no mesmo propósito. Agora minha realidade havia mudado drasticamente. Eu tinha mais do que o necessário e não deveria criar problema com isso, apenas me adaptar.
E eu faria me adaptaria a qualquer custo!
De repente, escutei vozes de garotos e passos de solas de tênis em atrito com o chão. Não tive curiosidade de saber quem eram eles, pois, além de Nico e Pedro, eu não conhecia ninguém. Subi alguns degraus da arquibancada para me sentar e verificar o horário. Ainda faltavam dez minutos para encontrar com o coordenador.
Guardei o telefone de volta na mochila e levantei a cabeça para observar o movimento.
Foi quando vi Pedro olhando para mim. Ao pé da arquibancada e numa roda de amigos, ele sustentava a mesma postura assoberbada. Mochila nas costas, braços cruzados, pernas afastadas e queixo levantado. Oxi! Meu coração foi a mil! Nem mesmo na vez que precisei matar uma cobra coral a paulada os meus batimentos ficaram daquele jeito!
Sem pensar muito, tomei a atitude mais idiota possível: acenei um tchauzinho tímido e sorri.
Óbvio que ele não retribuiu, e sim o oposto; fechou o semblante e revirou os olhos entediado.
Depois de ser deixada no vácuo, só me restava ficar na minha, lidando com a vergonha. Foi então que abri minha mochila para pegar meu caderno de desenho e colagem.
— Pedrão, — escutei um dos garotos falar. — você que é amigo da menina dos Montenegro...
— Ela não é minha amiga. — Pedro o corrigiu.
— Que seja... sabe se é seguro deixar nossas coisas aqui? — a pergunta mexeu com minhas entranhas, mas mantive os olhos atentos no caderno.
— Não sei. — Pedro respondeu calmo. — Mas é sempre bom ficar de olho.
Num rompante, levantei a cabeça para encará-lo. Não consegui disfarçar o espanto; estar sob suspeita não era nada agradável. Eu sabia que aquilo era uma provocação cruel. Foi proposital, pois estávamos numa escola bilíngue, onde a primeira língua a ser falada ali deveria ser o inglês. Contudo, o diálogo acontecia no mais alto e fluente português.
Veio a vontade de me defender de alguma forma, talvez gritar para que eles soubessem o quanto eram preconceituosos. Nunca tinha roubado nada, nem nas vezes que passei fome! Mas, do que adiantaria caçar confusão logo no meu primeiro dia? Além do mais, ali ninguém me conhecia, ninguém sabia dos meus valores e o pior: pareciam não querer me dar o benefício da dúvida.
— Vocês falam muita merda. — Um rapaz loiro se manifestou. Emburrado, jogou a mochila de qualquer jeito na arquibancada e foi para o centro de uma das quadras.
Em seguida, observei rapidamente o infeliz que tinha feito aquelas perguntas a Pedro. O garoto moreno tinha um corte de cabelo quase raspado, pinta de atleta e sorria como um imbecil.
Cerrei os punhos com uma vontade absurda de esmurrar sua boca cheia de dentes.
— Ei Rup, calma aí! — o imbecil falou alto em meio aos risos.
— Vá se ferrar, Alejandro! — esbravejou e começou a chutar bolas ao gol.
Rup e Alejandro. Fiz questão de gravar no nome dos amigos de Pedro.
Sem clima para permanecer no mesmo ambiente que eles, abaixei a cabeça e comecei a guardar meu caderno com calma. Tive que me segurar para não fazer tudo rápido, pois sair correndo das quadras só serviria para me fragilizar diante daquele bando de almofadinhas. Por mais que eu estivesse ofendida, eu não deixaria transparecer o abalo que sentia por dentro.
Joguei a mochila nas costas, me colocando de pé. Diferente do dia do meu jantar de boas-vindas, onde eu estava cheia de sorrisos para Pedro, fiz questão de encará-lo com severidade. Ele interpretou minha expressão como um desafio e levantou as sobrancelhas, encarando-me também.
Que bundão!
Que decepção!
Desci das arquibancadas e só quebrei nossa troca de olhares hostis quando tive que virar em direção a saída. Nesse momento avistei Nico entrar nas quadras com outro grupo de garotos e, ao mesmo tempo, ouvi o imbecil do Alejandro soltar mais um de seus impropérios.
— A órfã dos Montenegro até que é bonitinha, mas alguém precisar avisar a ela que só as meninas do Middle School usam a saia do uniforme.
Interrompi meus passos imediatamente, enquanto Nico continuou a caminhar na minha direção. Ele também não parecia feliz com a asneiras dita pelo tal do Alejandro, pois havia parado de sorrir.
Cerrando meus punhos com força, dei meia volta e segui em linha reta até ficar frente a frente ao imbecil. Infelizmente minha altura só chegava até seus ombros. Eu seria biruta se partisse para a briga física com alguém daquele tamanho, então, tive que tentar vencê-lo com as palavras.
Ergui o queixo com seriedade e falei:
— Não sou órfã. — Alejandro permaneceu calado e com o mesmo sorriso no rosto. Com isso, repeti: — Não sou órfã.
— Já ouvi. Não precisa repetir. — Debochou.
Que folgado!
— Também não sou ladra. — Minha voz saiu baixa e ferina.
— Ok.
Por que ele continuava sorrindo? Por acaso ele era retardado?
— Estão me ouvindo bem? — lancei um olhar duro para o lado, onde Pedro se encontrava e falei: — Não sou ladra!
O garoto por quem eu havia me apaixonado permaneceu imóvel. Não havia abalo em seu semblante. Ou pelo menos, foi o que notei.
— Ei Linda, o que está acontecendo aqui? — era Nico.
Virei na sua direção da voz de Nico, exclamei:
— Esse imbecil me deixou fumando numa quenga*!
A gíria cearense veio com tudo e fiquei ainda mais nervosa.
Todos riram.
Riram de verdade! De soltarem gargalhadas!
A seriedade havia se esvaído, desvalidando a minha tentativa de imposição.
Que saco!
Bufei e comecei a marchar para longe dali. Eu esperaria pelo coordenador na porta da sala dele. Era o melhor a se fazer.
Quando saí das quadras, não demorou para que Nico viesse atrás.
— Linda! — continuei andando sem nenhuma vontade de olhar para trás. — Onde está indo?
— Encontrar com coordenador. Tenho uma reunião com ele.
— A sala do senhor Geller fica na direção oposta. — Ao ouvi-lo, fui parando de andar e dando meia volta. Logo ele oferece ajuda. — Posso te levar até lá. Se você quiser.
Eu não sabia se deveria desconfiar da sua ajuda, pois estava difícil desatrelá-lo da imagem do irmão. Mas Nico foi legal comigo no jantar em que nos conhecemos. No mais, se eu ficasse arredia a ele, meu comportamento não seria muito diferente de Pedro e sua trupe. Por isso, resolvi dar o benefício da dúvida ao caçula Oliveira Rizzo.
Apertei as alças da minha mochila e concordei com a cabeça.
Seguíamos lado a lado, em silêncio, quando deixei escapar uma pergunta.
— Qual o problema da minha roupa?
Escutei ele respirar alto antes de responder.
— As meninas do high School não usam saia.
— Isso é uma regra da Roads? — franzi o cenho. Eu não me lembrava de ter lido aquela instrução no livrinho de boas-vindas que tinha recebido dias antes de iniciar na nova escola.
— Não. Elas simplesmente param de usar porque não querem parecer infantis.
— Que chato. Eu adorei essa saia! — lamentei enquanto subíamos um lance de escadas. O modelo da peça possuía duas pregas frontais simples, além de um shortinho escondido por dentro para que pudesse ser usada nas aulas de educação física também.
— Nada te impede de vesti-la quando quiser. — Nico sugeriu.
— Se for pra ser chacota, é melhor não. Pelo menos por enquanto.
— Sobre o que aconteceu lá na quadra... — refletiu por alguns segundos e continuou: — às vezes os meninos são uns idiotas, mas não são pessoas ruins.
— Tudo bem. — Fingi que acreditei para não dar continuidade ao assunto.
Nico, porém, não se deu conta disso.
— Nós somos ensinados desde cedo que devemos nos proteger de tudo e de todos. — Quando ele disse "nós", imediatamente entendi que se referia as pessoas que são muito ricas desde o berço. Em parte, até que os compreendia, afinal, os pobres também têm seus meios de se protegerem. Mas a minha outra parte se encontrava ofendida. — Reações arredias acabam saindo de forma natural. Com o tempo ninguém aqui fará distinção, você será aceita e ficará muito bem adaptada. Só tenha paciência.
Apenas concordei com a cabeça, quando na verdade, pensei: Ficaria muito mais fácil adaptar aqui se, ao invés de fazerem piadinhas às minhas costas, eles falassem diretamente comigo.
*Fumando numa quenga: a pessoa está muito nervosa, com raiva.
*****
Obrigada por terem lido o capítulo
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