Capítulo 3
LINDA
Após o jantar, Shari arrastou os garotos e eu para a sala de televisão. Disse que deveríamos interagir; conversar e jogar videogame.
Minha nova mãe era uma tia postiça deles. Ela havia me explicado que os viu nascer e que, desde sempre, eles frequentavam a sua casa. Inclusive tinham o costume de dormir lá! Isso ficou evidente no momento em que vi Nico ligar o videogame com familiaridade e Pedro se jogar no canto do imenso sofá.
Já eu fiquei em pé, estagnada perto da porta sem saber o que fazer. Apesar de ali ser o meu lar, ironicamente os dois garotos estavam muito mais a vontade do que eu.
— Vem, senta. — Nico me chamou, dando umas batidinhas sobre o estofado. Bastante tímida, fui para o local indicado. Em seguida, ele me estendeu o controle. — Toma. Gosta de corrida? — peguei o objeto sem entender sua pergunta. Como assim corridas? Não íamos jogar videogame? Vendo o meu semblante confuso, o caçula dos Oliveira Rizzo logo se explicou. — Corridas de videogame.
— Ah. — Sorri sem graça, encolhendo os ombros, e confessei: — Nunca joguei videogame.
— Nunca? — perguntou visivelmente surpreso e neguei com a cabeça. — Nem joguinhos de aplicativo de telefone? — gesticulei um não mais uma vez.
Nico lançou um rápido olhar para o irmão mais velho por cima do meu ombro. Pedro estava no mesmo sofá que nós, porém, sentado num canto mais distante e praticamente às minhas costas. Então não pude ver sua reação.
— Joguem a primeira... rodada. Se diz rodada? — perguntei e Nico afirmou com a cabeça. — Vou ficar atenta nos botões que vocês apertarem e tentarei na próxima corrida.
Ele concordou e olhou na direção do seu irmão mais velho novamente. Houve um movimento atrás de mim. Não demorou para que eu sentisse o calor do corpo de Pedro aumentar à medida que se aproximava. Quando ele acomodou na beirada do sofá, bem ao meu lado, fiquei entre os dois irmãos. Foi um pouco intimidante, não por causa deles, mas porque eu tinha crescido numa casa matriarcal e com duas irmãs mais velhas. Apesar de eu ter um pai e ter ganhado três sobrinhos meninos nos últimos anos, as mulheres dominavam o ambiente do meu antigo lar. Eu não sabia como me comportar perto do sexo oposto, morria de medo de me soltar e ser entendida de maneira errada. Porém, confesso que estava um pouco mais fácil conversar com o mais novo dos Oliveira Rizzo, pois o menino se mostrou gentil. Já com o mais velho, o cenário ainda era incerto. Seu jeito reservado dava um pouco de medo, entretanto, ao invés de querer fugir, fiquei curiosa, com uma imensa vontade de me arriscar como nunca tinha feito com ninguém, só para descobrir quem ele era realmente.
Bem, pelo visto eu tinha a mesma tendência das mulheres da minha família: se sentir atraída por homens complicados e que fazem pouco caso de nós.
Que saco!
— Preciso do controle. — Pedro estendeu a mão, me tirando dos meus pensamentos.
Olhar dentro de seus olhos e ouvir sua voz fez meu coração acelerar ainda mais.
Com tão pouca idade, eu mal conseguia lidar com o reboliço que me acontecia por dentro, quanto mais descrever os inúmeros adjetivos na feição daquele garoto! Coitada de mim...
pois tudo que enxergava nele era arrogância e algo semelhante a enfado. Se existisse um pouco de empatia, ele sabia muito bem como disfarça-la.
Quando lhe entreguei controle, seus dedos longos encostaram em minha pele. Prendi a respiração e abaixei a cabeça igual um bicho do mato por não saber conter as emoções.
Logo os garotos começaram a jogar enquanto eu tentava me recuperar daquele abalo.
— Então, Linda, o que você faz pra divertir? — Nico soltou a pergunta com os olhos atentos na tevê.
— Hum, — pigarreei, incerta do que responder. Eu amava colecionar adesivos fofos, além de ocupar o meu tempo resolvendo cálculos matemáticos e desenhando coisas aleatórias sem técnica alguma. Não possuía perfil nas redes sociais, não praticava nenhum esporte específico e nem sabia qual era o super-herói que bombava no momento. Eu era xucra e esquisita. Essa era a verdade! Por isso, tentei ser o mais enxuta possível na resposta. — gosto de desenhar e assistir filmes antigos.
— Antigos? Como os dos anos noventa?
— Não. — Sorrindo, neguei com a cabeça. — Quarenta, cinquenta e alguns da década de sessenta.
— Uau! Nunca consegui assistir filmes antigos inteiros, as cenas são muito paradas e fico entediado.
— Gosto dos diálogos. — Respondi modestamente. Eu não sabia se deveria dizer que tinha tomado gosto pelos clássicos da Era da Ouro de Hollywood por causa da minha antiga professora de inglês. Não foi algo que gostei logo de cara, mas aos poucos fui me interessando pela trama, figurinos, e por fim, estava até analisando a fotografia! Além das taças coupe! É claro! Eu amava ver divas como Bette Davis degustando champanhe naqueles cristais elegantes! Não via a hora de ser maior de idade para fazer a mesma coisa! — E vocês? O que fazem para se divertir?
— Eu jogo videogame, qualquer jogo, em qualquer aparelho. Sou capaz de virar noites! — se expressou com empolgação enquanto seus olhos estavam vidrados na tela.
— Isso é intenso. — Falei e esperei que Pedro respondesse também, mas, pela minha visão periférica, vi que ele só queria jogar em paz.
Ficamos um tempo em silêncio quando Nico voltou a fazer perguntas.
— Já deu uma olhada na grade de matérias da escola?
— Sim.
— Se interessou por alguma AP?
— AP são aquelas disciplinas complementares? — eu ainda estava me familiarizando com os termos da minha nova escola.
— Sim. Na sua série só pode se matricular em economia. Já Estatística só depois que fizer Álgebra Um.
— É, eu vi.
— Você não parece muito animada. — Falou, sendo muito perceptivo àquilo que eu sentia.
— Bem, quero fazer algo relacionado a exatas, mas talvez... — pausei para ponderar o que viria a dizer. — ...quer dizer, quem sabe me arriscar em algo novo que agora tenho a oportunidade de fazer.
— Artes cênicas? Já que gosta de filmes... — Sugeriu.
— Pensei em Ateliê de Desenho e gostei da aula de Coral.
— Coral? — Nico se surpreendeu positivamente.
Mas, para minha decepção, escutei Pedro segurar uma risada.
— Gosto de cantar. — Respondi acuada, encolhendo os ombros. — Eu cantava na igreja.
— Você é do mesmo tipo de igreja que nossos tios? — sem saber o linguajar adequado, ele tentou formular a pergunta da melhor forma possível. — Digo, o mesmo tipo de igreja protestante?
— Sim. — Afirmei com a cabeça mesmo que ele estivesse olhando para a tela.
— Legal. Eu toco contrabaixo e o Pedro, violão e guitarra.
— Eu tinha uma amiga que tocava violão e sanfona. Costumávamos apresentar nos cultos de domingo.
— Então você desfalcou a dupla ao vir pra cá. — Ele brincou.
— É. Nossa dupla foi desfalcada. — Minha voz foi sumindo à medida que eu terminava a frase.
Quem me dera se aquela fosse a versão do desfalque da nossa dupla!
Midiã tinha morrido há um ano. Atropelada por um caminhão.
Dizer que ela foi especial parecia ser pouco. A menina possuía dons espirituais. Várias vezes ela foi a minha casa fazer orações para expulsar coisas ruins do corpo de Francisca. Minha irmã mais velha costumava desaparecer por dias e voltar suja, fedida e falando sandices. Tínhamos que banhá-la, ouvindo seus desaforos numa voz demoníaca.
Eu vivia com medo. Não conseguia dormir e odiava ter que revezar as madrugadas de vigília com Bruna, minha irmã do meio. Nesses períodos, mantínhamos Francisca deitada, vendo-a rosnar e revirar os olhos. Nada parecia ser capaz de tirar nossa irmã desse transe. Nem padre, pastor e pai de santo! Somente Midiã. A menininha tinha a alma pura. Quando ela atravessava a porta da minha antiga casa, os demônios faziam Chica gritar, e quando minha amiga impunha suas mãos, o mal ia embora.
O mais impressionante foi que Midiã sabia que não ficaria aqui na Terra por muito tempo. Uma vez ela disse que Deus a recolheria para descansar num lindo jardim. Também disse que em breve eu enfrentaria novos desafios, onde minha vida mudaria drasticamente para melhor.
Por que não acreditei em suas palavras?
Suspirei já sem muita vontade de me socializar. Relembrar tudo aquilo foi cansativo, mas eu precisava fazer algum esforço para que meus novos pais ficassem alegres comigo.
— Venci. — A voz de Pedro me tirou do devaneio.
— Ah... foi por pouco! — Nico lamentou.
— Pelo menos ficou no segundo lugar da corrida. — Tentei consolar o mais novo, apontando para a tela a nossa frente. — Você venceu as máquinas.
Ele me olhou de um jeito brincalhão e disse:
— Nesse jogo a graça é vencer os humanos e não ao computador. — Ele estendeu o controle para mim. — Sua vez de jogar. Pronta?
Gesticulei um sim.
Entretanto...
Obvio que eu não estava pronta!
Fui um desastre total! Mario Kart só era fofo e colorido na aparência! O jogo era praticamente uma metáfora da vida! Agressivo e extremamente competitivo! Os adversários jogavam cascas de banana pelo caminho, atiravam raios encolhedores e espirravam uma tinta preta no nosso campo de visão. Não era uma corrida comum, onde o melhor vencia. Não mesmo! Na verdade, os favoritos a subirem no pódio eram aqueles que tinham aptidão para malandragem. Além disso, eu fiz tudo errado! A começar na escolha da minha personagem. Uma princesa que se chama Peach e usa um vestido rosa? Ora! Não deveria ser laranja? Ou qualquer outra cor que se pareça com pêssego?
Terminei em último lugar!
Sentindo-me sufocada por estar entre os dois garotos, resolvi levantar e sentar no sofá ao lado. Enquanto eles jogavam, observei os botões que eram pressionados e tentava olhar para a tela da tevê ao mesmo tempo. Não era difícil de aprender, até porque quando tive o controle em minhas mãos, manejei-o por instinto. Eu só precisava de prática.
Mas, em um certo momento, comecei a fitar unicamente Pedro. Sentado de pernas abertas e com os antebraços apoiados nas coxas, ele estava bastante compenetrado no jogo. Dava para notar o quanto era competitivo, diferente do seu irmão, que soltava alguns gracejos, levando aquela rodada numa boa. O único instante em que o primogênito dos Oliveira Rizzo esboçou uma emoção contrastante foi quando ganhou a corrida. Ele levantou as mãos para o alto em comemoração sorrindo para a tevê. Sorri junto, pois seus dentes frontais separados eram um charme.
— Perdi de novo. — Nico chamou a minha atenção ao estender o controle para mim. — Sua vez de jogar.
— Ah, — reagi sem graça por ter sido pega em flagrante. — pode ir mais uma vez. Quero só olhar.
— Tem certeza?
— Acho que aprendo melhor se ficar atenta ao que vocês estão fazendo.
— Ok. — Deu de ombros e voltou sua atenção à tela.
Para falar a verdade, eu nem queria jogar! Muito menos vontade de aprender!
Preferia continuar babando no garoto mais lindo que eu tinha visto na vida!
Em seguida, firmei o cotovelo esquerdo no braço do sofá e descansei o queixo na minha mão.
Mal podia acreditar que eu o veria todos os dias na escola.
Suspirei.
Uma euforia borbulhava no meu estômago. Eu gostava daquela sensação!
Suspirei mais uma vez.
Se fosse possível, passaria a noite inteira olhando Pedro.
Fiquei tão distraída que não percebi uma nova presença na sala de tevê. Somente quando escutei um pigarro, que virei para o lado e vi dona Edna encarando-me com um sorriso de boca fechada.
— Trouxe bebidas. — Disse, altiva enquanto segurava uma bandeja com uma jarra de suco e três copos.
— Obrigada. — Fui a única a responder, já que os garotos estavam atentos ao jogo.
A madame colocou a bandeja num aparador ao lado e, quando pensei que se retiraria da sala, ela deu meia volta e se sentou do meu lado.
— Não quer jogar? — ela cruzou as pernas com elegância.
— Não. — Apertei a bainha do meu vestido com as duas mãos não gostando da aproximação daquela mulher. Com um sofá daquele tamanho todo, não entendi o porquê ela tinha que se sentar grudada em mim.
— Sabe, Linda, não duvido que se dará bem na sua nova vida. — Soltou a frase como se quisesse parecer amigável.
— Obrigada. — Engoli em seco, bastante ressabiada.
— Isso não é um elogio, minha querida. — Sua voz saiu baixa e friamente calma. — Conheço bem o tipo de garota que é. Se faz de inocente, de coitadinha, tão bobinha..., mas não demorará para estar com as asinhas soltas. Você é um problema. Dos grandes, diga-se de passagem. — O volume alto de Mario Kart encobria tudo que ela ansiou falar desde a primeira vez que colocou os olhos em mim. — Já que vamos ser obrigadas a conviver uma com a outra, tenho um conselho — colocando sua mão no meu antebraço, concluiu: — comporte-se.
Imediatamente senti um puxão na minha pele. Uma dorzinha aguda e chata.
Mantendo o sorriso congelado, Edna me soltou, levantou e se retirou da sala tranquilamente.
Demorei alguns segundos para entender o que tinha acontecido. Até me dar contar de que levei um beliscão.
Caramba! Edna Oliveira Rizzo tinha me beliscado!
Massageei o local dolorido, bastante assustada com a audácia daquela mulher.
No final da noite, depois que os Oliveira Rizzo foram embora, estive a beira de contar para os Montenegros o que a madame havia feito. Mas ao ver Shari tão feliz, acabei guardando para mim. Além do que, suspeitei que seria mais fácil Shari acreditar na amiga de longa data do que na filha recém-adotada.
Resolvi tentar esquecer, pois tive medo de causar problemas e ser devolvida a minha antiga vida.
Obrigada por ler o capítulo
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