18: Queijo Com Goiabada
- Então, vocês se beijaram, tipo na boca? - A pergunta de Lua foi um sussurro curioso, como se estivesse contando um segredo.
Soltei um murmúrio em concordância, meio distante, permanecendo concentrado na tarefa de terminar de girar o parafuso que sustentava o espelho na parede com a chave de fenda, no qual eu via, em sua superfície refletiva, a garota de treze anos com o cabelo cacheado preso em duas bolotas no topo da cabeça feito a princesa de Star Wars.
Ela era a melhor amiga do irmão de Amélia, e, provavelmente, o ser humano mais curioso da face do planeta, porque não parou de me lançar perguntas desde que Mel acabou soltando, sem qualquer pretensão, que eu gostava de garotos e estava ficando com um.
- Isso aí, pirralha. Agora, para de encher o saco do Lu. - Minha amiga reclamou, esbarrando suavemente o cotovelo no braço da mais nova sobre a cama. - Afinal, não é porque ele tá totalmente apaixonado que a gente pode ficar zoando com a cara dele...
- Não tô, nada! - entoei a mentira com a mesma eloquência de uma criança birrenta de cinco anos, girando nos meus calcanhares logo que terminei de rosquear aquele negócio.
Estava começando a pensar seriamente em cobrar pelos meus trabalhos manuais na casa de Amélia. Com certeza, estaria com pelo menos cinco potes de vidro recheados de notas antes mesmo do final do mês.
Lua soltou um suspiro inundado de paixão, apoiando o cotovelo na coxa e, depois, a bochecha sobre os nós dos dedos.
- Ai, que bonitinho! - exclamou ela. - Vocês são almas gêmeas, que nem aquela coisa do queijo com goiabada, e das metades da laranja!
Uma simulação de vômito se fez audível, vinda da porta. Direcionamos as vistas simultaneamente para lá, e nos deparamos com Luigi apoiado na esquadria, os braços cruzados em frente ao seu corpo grande demais para os dez anos que fizera recentemente.
- Vocês são bizarros se acham que lamber a cara de outra pessoa é bonitinho. - Afinou a voz para imitar o timbre da amiga, rolando os olhos. - Minha professora disse que na nossa boca tem um monte de germes. Isso é nojento. Beijar é quase como meter a cara no vaso sanitário, só que ele tá colado na língua de alguém.
Lua capturou rapidamente o leãozinho de pelúcia ao seu lado, arremessando o pobre bicho direto na cara do menino.
- Sai daqui, seu idiota! - reclamou ela, com um fervor abissal. - Estamos discutindo um ponto importantíssimo!
- Não saio, não! - berrou o garoto. - Estou com fome. Efe-ó-eme-é. Vocês querem me matar de desnutrição? Meu estômago já está com um buraco imenso!
- Não tenho nada a ver com os buracos idiotas do seu estômago! - resmungou Lua, impaciente, cruzando os braços.
- Não briguem, seus pestinhas. Eu e o Luccas vamos fazer alguma coisa para vocês antes de sair. - Mel entoou, esticando a perna até o seu pé coberto pela pantufa com um pompom gigante tocar o chão. - E eu garanto que você vai querer lamber a cara de muita gente daqui a alguns anos, mocinho. - Apontou para Luigi, enquanto terminava de ficar de pé, recebendo em troca uma careta nauseada do menino.
Não contive um riso.
- Por favor, não deixa o Luccas chegar perto da cozinha. - Lua praticamente suplicou. - Da última vez, ele torrou os biscoitos que estava fazendo para a gente!
- Deveria ter sido preso naquele dia, porque com certeza queria matar nossos estômagos. - Luigi entrou na brincadeira, e eu ergui uma sobrancelha indignada na sua direção.
- Achei que gostasse dos meus lanches. - Meu tom foi descontraído.
- Eu falei que gostava só para você não ficar triste. - explicou, piscando os olhos castanhos inocentemente.
Eu não conseguia ficar chateado com aquele pessoal. Não por muito tempo, pelo menos. Eram como os irmãos que eu nunca tive.
Na cozinha, Mel tirou dois miojos de saquinho cem-por-cento não saudáveis do armário, inclinada na direção das duas metades da porta de madeira.
Por trás da janela sobre a pia, dava para ver o azul cintilante do céu sem nuvens até onde meus olhos alcançavam do horizonte por trás do vidro.
Lua e Luigi estavam esparramados no sofá, assistindo o filme que Amélia colocara há pouco com uma empolgação genuína crepitando em suas íris. Talvez, tivesse a ver com o fato dele ter uma classificação etária de pelo menos quatorze anos.
O eco dos tiros provenientes da televisão reverberava até os meus ouvidos, seguido pelos gritos de incentivo dos amigos para "o cara super maneiro estourar a cabeça do maníaco mesmo".
- Que tipo de filme você colocou para eles? - Dei risada, incrédulo. - São crianças.
- Quase adolescentes. - corrigiu, lançando-me seu tradicional erguer esperto de sobrancelha. - Precisam saber como funciona o mundo!
- O mundo dos psicopatas? - Ri novamente.
Ela esbarrou as costas da mão no meu braço, gargalhando junto comigo.
- Isso. - Sorriu. - E eu ainda não faço ideia do que vou vestir para ir ao museu.
- O Luís já me falou que você fica bonita de qualquer jeito, e eu concordo com ele. - Comecei a acender a fogueira do plano, o mais naturalmente que pude. Ajudava o fato de saber que nada do que estava dizendo era mentira.
- O... - Limpou a garganta, parecendo um pouco desnorteada. - Luís disse mesmo isso?
Assenti.
- Algumas vezes. O engraçado é que nas nossas conversas ele sempre arruma um jeito de inserir você de alguma forma. - Outra verdade. - Nunca pensou em conversar mais com ele?
Amélia engoliu o seco, entreabrindo os lábios por um instante.
- Acha que a gente... combina? - Sua pergunta ecoou, receosa. - Eu sempre tentei não pensar muito isso, e nem sei exatamente o porquê. Quer dizer, ele é todo esquisito, e... eu sei lá. - Passou as mãos nos cotovelos, abraçando a si mesma como se quisesse erguer uma barreira em torno do seu coração.
Não poderia culpá-la por ter tanto medo de sentir. Pelo que me contara, já fora alvo de muitos garotos cuja intenção era somente usá-la por uma única noite, mas nunca deixavam isso claro, de modo que Mel acabava por se apegar demais a esses rapazes feitos de vento, que sumiam sem mais nem menos e deixavam seus cacos espalhados pelo chão, para que se reconstruísse sozinha. E ela sempre o fez.
- O Luís é uma das melhores pessoas que você vai conhecer. - assegurei, totalmente convicto, sustentando minhas orbes nas suas para dar mais ênfase. - Se eu estou respirando aqui, hoje, isso se deve à ele.
A garota assentiu devagar, ciente do abismo que minhas palavras significavam. Então, de súbito, jogou-se para cima de mim, envolvendo meu pescoço em um abraço com grande potencial de amassar ossos, o qual eu correspondi com o máximo de força que meus músculos comportavam.
- Eu amo você demais. - Sua voz saiu baixa. - Obrigada por tudo, tudinho mesmo. Principalmente por existir.
Um sorriso automático repuxou meus lábios.
- Também te amo muito, Mel.
O museu da cidade era relativamente simples, exibindo artefatos históricos de Amaré achados durante os anos, fotografias antigas em quadros de madeira nas paredes, cuja superfície retratava imagens em preto e branco da construção da estação de trem, bem como de outros pontos memoráveis da cidade, e uma coletânea de objetos diversos.
Eu e Amélia vislumbramos Oliver e Luís assim que chegamos, na companhia do guia que lhes explicava algo sobre uma maquete próxima. Logo que nos aproximamos, o olhar de Luís recaiu sobre minha amiga, e pude vê-lo puxar o ar com mais dificuldade. Não era para menos; Mel estava ainda mais deslumbrante do que o habitual dentro do seu vestido favorito de bolinhas que esvoaçava até os joelhos.
Oliver demorou um pouco mais para nos ver, distraído com uma das fotos na parede. Eu quase podia ver um milhão de borboletas feitas de devaneios batendo asas em torno da sua cabeça, que certamente estaria tentando imaginar como era a vida na época daquela fotografia embebida em tom sépia.
— Você... tá linda. — Luís elogiou Mel, e eu tive certeza que Ollie haveria de ter falado algo para ele na mesma linha de raciocínio do que eu disse para minha amiga.
As palavras do rapaz finalmente atraíram a atenção do outro garoto de calças rasgadas, cujas orbes irradiaram vaga-lumes bioluminescentes na minha direção quase de imediato.
— Ah, obrigada... — Amélia agradeceu, soprando um riso embaraçado. — Você... quer ver a parte dos jornais de época comigo?
Luís assentiu rapidamente.
— Ah, sim, com certeza, é claro... — Seu nervosismo se fez evidente.
— Eu levo vocês! — o moço que trabalhava no museu ofereceu, prontamente.
Eu e Oliver prendemos os lábios para não rir, e os observamos se afastarem a passos equalizador rumo à parte específica do museu, sendo acompanhados pelo guia, que se pôs a tecer comentários ocasionais sobre algumas coisas que os cercavam.
Sorri diante do pensamento de que os dois finalmente iriam começar a deixar seus orgulhos e medos de lado, para colecionarem momentos mais leves e, quem sabe, um romance.
— Sabia que os primeiros habitantes daqui sobreviviam à base da pescaria? — Oliver perguntou em um sopro baixo contra o meu ouvido, cortando meus enleios.
Inclinei a cabeça para fitá-lo, mirando as constelações de sinais que se desenhavam no seu rosto até estacionar nas íris azuladas, que me observavam com genuína atenção.
— Sério? — murmurei, apertando os cílios.
Um sorriso empolgado se desenhou em seus lábios, quase infantil.
— Sério. Tinha de tudo quanto é peixe por aqui, e dizem que hoje em dia não se encontra mais tanto por causa desse povo do passado.
— Não fazia ideia disso. — respondi, sem conter um sorriso. — É interessante para caralho imaginar como viviam há tanto tempo atrás.
— As lendas dão um pouco disso pra gente. Eu já li uma indígena brasileira, sobre como surgiram as estrelas.
— E como foi?
Ele comprimiu os lábios, parecendo caçar as palavras na mente para explicar.
— Diziam que algumas crianças conseguiram escalar um cipó que ia até o céu para fugir das mães, depois de terem roubado milho delas. Só que quando elas foram subir para pegar os filhos, as crianças cortaram o cipó e elas caíram. Daí, foram castigadas, as crianças, a ficarem olhando para a terra por causa disso. E as estrelas seriam tipo os olhos delas.
Sorri de forma involuntária, tanto por ter aprendido uma coisa nova, quanto por achar extremamente adorável a empolgação de Oliver enquanto narrava a história.
— E eu pensando que as estrelas eram bolas de hélio explodindo a milhões de quilômetros daqui, desde o início de tudo. — brinquei.
Ele riu.
— Não estraga a lenda com racionalidade. Ela é muito incrível. — fingiu indignação, o que me arrancou uma risada breve.
— Ela é, mesmo. — admiti, com sinceridade genuína. — Você seria o tipo de pessoa que moraria em um museu, se isso fosse possível. Se duvidar, dormiria em alguma daquelas tumbas egípcias conservadas e cheias de ouro.
— Como adivinhou meu maior sonho? — Fingida seriedade enfeitou as sílabas, sua mão viajando até o peito.
Dei risada.
— Se pudesse viajar no tempo para conhecer todas essas coisas, teria coragem? — inquiri.
— Acho que não. Se eu tivesse a oportunidade de ir para, sei lá, a época do povo egípcio, teria saudade de muitas coisas do tempo moderno. Da música como a gente conhece, da arte, dos livros, da pizza de frango... — Suas íris escorregaram até os meus lábios, e ele sorriu. — E principalmente de você. Ah, Luccas, acho que a saudade de você seria uma das coisas que me faria pensar em beber um pouco de cianureto. A saudade da pizza de frango também, admito... — Deu risada, e eu o acompanhei. — E da música. E do mundo. Mas... você com certeza seria uma das minhas saudades principais, leãozinho. Você e seus cachos.
Não contive um sorriso.
— Só pra constar, a parte do cianureto era brincadeira, não era? — Arqueei a sobrancelha.
— Totalmente. — Riu. — Eu ia me distrair das saudades assaltando sarcófagos.
— Meu Deus, estou apaixonado por um criminoso... — Simulei profundo espanto.
Nossas risadas rodopiaram juntas no vento, trazendo uma dose extra de calor àquele lugar.
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