17: O Plano Pseudo-perfeito
No final das contas, eu e Oliver montamos uma estratégia muitíssimo simples, cujo ponto principal era convidar Amélia para ir ao museu da cidade - lugar que eu e a garota mais gostávamos de ir juntos -, onde lá estaria Luís e Oliver.
Depois, colocaríamos a segunda parte do plano quase infalível em prática: Dissiparmos-nos por entre as prateleiras, para que os dois possam ficar sozinhos. Se isso, por si só, não fosse suficiente para fazê-los embarcar em uma boa conversa, acionaríamos a terceira parte: O projeto pizza.
- E o que diabos é o projeto pizza? - indaguei à Oliver, enquanto vagávamos pelas ruas da cidade sob o breu que a noite despejava em nossos poros.
Afundei as mãos nos bolsos da calça, encolhendo-me dentro do meu moletom muitíssimo quente diante do vento gelado que rodopiava contra nós.
- Não faço ideia. - O garoto riu ao meu lado. - Está em desenvolvimento. Mentes brilhantes também cansam de pensar, e eu já usei muito do meu incrível potencial cerebral. - Falseou seriedade, arrancando-me um riso.
- Como você é convencido. - brinquei, esbarrando o ombro no seu.
Ele circundou o braço no meu pescoço antes que pudesse me afastar, puxando-me para perto de si enquanto seu riso orquestrava a melhor música de todas nos meus ouvidos, preenchendo minhas veias de um manto de conforto ímpar, que me incitou a abraçar sua cintura por cima da costumeira jaqueta de jeans gasto que usava.
Algumas pessoas que passavam ao longo da calçada nos observaram com olhares curiosos, outros estreitos em estranheza. Mas isso não foi suficiente para que eu desejasse romper o fio invisível que me enlaçava à Oliver.
- As pessoas estão olhando a gente. - sussurrei em seu ouvido, pendendo de leve o rosto para fitá-lo.
Suas orbes caíram nas minhas.
- Deixe que olhem. Não estamos cometendo nenhum crime. - Sorriu. - Se a coisa desandar, a gente corre. Ou grita.
- É estranho saber que alguns precisam gritar para serem ouvidos. - Minhas palavras saíram baixas, em meio aos pensamentos que escorriam pela minha cabeça.
- Não fica triste com isso, leãozinho. - Oliver pediu, parecendo um tanto aflito com sua possibilidade. - O mundo costuma ser assim com os mais extraordinários.
Não contive um sorriso, mirando suas feições cujos contornos bonitos reluziam sob os vislumbres dourados que escorriam dos postes próximos.
Tive vontade de fugir com ele naquele momento; simplesmente agarrar sua mão e correr sem rumo até o mundo que conhecemos chegar ao fim, ou sermos engolidos pela lua em expansão no céu. Sabia que isso nunca se tornaria possível, mas era divertido imaginar. O mais próximo que chegaríamos de uma fuga seria, no máximo, furtar sorrateiramente o carro de um dos nossos pais na madrugada e rodar por algumas horas pela cidade.
O pensamento, que fora somente um devaneio aleatório, fez estalar uma ideia na minha cabeça que tinha absolutamente tudo para dar errado.
- Você sabe dirigir? - questionei à Oliver.
- O básico. Quer dizer, meu tio me ensinou nas férias do ano passado, junto com algumas poucas leis de trânsito essenciais para, sei lá, não morrer ou levar uma multa. - Deu de ombros, casualmente. - Por quê? Tá pensando em roubar um carro? - Deu risada com a própria brincadeira, mas esta foi minando conforme os segundos se transcorriam sem qualquer negativa da minha parte. - Ai, cacete...
Não era exatamente roubar, já que iríamos devolver de volta. Não que isso torne o que fizemos naquela noite correto; não é, de forma alguma, e por favor, não repitam isso em casa. Todo esse procedimento foi realizado por profissionais altamente capacitados - fala sério, nem aqui, nem na China.
A prova de que não tínhamos ideia do que estávamos fazendo se deu logo que eu abri a porta da casa em que morava há mais de doze anos, e não lembrei do quanto a dita cuja berrava como se tivesse vida ao ser escancarada com muita rapidez - coisa que eu, com todo o meu cérebro de minhoca, fiz.
- Ai, merda... - praguejei em um sussurro, e a risada baixa de Oliver ecoou próxima a mim.
Todas as luzes estavam apagadas, o que significava que meus pais já haviam ido dormir, como sempre faziam por volta das oito da noite graças ao costume que adquiriram de deitar cedo.
O segundo desastre aconteceu pouco depois, enquanto tateávamos o ar na escuridão da sala em busca do suporte que abarcava o molho de chaves da residência, dente as quais estava a que abria a garagem, bem como a que ligava o Chevy 500 tão amado pelo meu pai.
Deu que Oliver esbarrou a mão no vaso favorito de mamãe e o objeto quase se estraçalhou no chão, sendo impedido pelos dedos ágeis do garoto de última hora. Àquela altura do campeonato, minha pulsação corria em ritmo frenético nos meus ouvidos, e uma gota de suor carregado de nervosismo pela minha falta de costume em fazer coisas tão fora do eixo trilhou caminho pelas minhas costas.
Engoli o novelo que se embolara na minha garganta, e voltei a procurar as duas chaves. Encontrei ambas quase de imediato, e, após fisgá-las, procurei Oliver na penumbra e envolvi sua palma com a minha, puxando-o até o andar de cima do jeito mais silencioso que consegui.
Infiltramo-nos no meu quarto, e eu esvaziei minha mochila do colégio, substituindo a coleção infinita de livros por um cobertor enrolado em um bolinho de tecido, meu walkman refugiado no fundo da gaveta com uma pequena pilha de cassetes - meus e de Oliver, na mesma proporção -, e fechei o zíper.
- Você tem uma lanterna? - ele quis saber, abrindo meu guarda-roupas para espiar lá dentro, em busca do equipamento em questão.
- Não, só o meu pai, mas eu lembro de ter visto a dele no porta-luvas do carro semana passada. Ainda deve estar lá, já que não faltou luz por aqui. De qualquer forma, é melhor não fazermos mais barulho. - murmurei, pendurando uma única alça da mochila no ombro.
Oliver assentiu, e seu típico sorriso torto meio cafajeste lhe riscou a bochecha, perfeitamente visível devido à luz de teto acesa, a qual meu indicador apagou com um deslizar no interruptor quando estávamos saindo do cômodo.
Descemos para o primeiro andar, e pouco depois estávamos do lado de fora. Demorei um pouco para distinguir qual era a chave certa que revelava a garagem vasculhando as formas metálicas no escuro. Logo que a vislumbrei, destranquei a porta de rolo e Oliver me ajudou a empurrá-la para cima a uma velocidade de lesma ressecada.
Mesmo depois dos pneus do veículo estacionarem além do meio-fio, guiados pelo moreno atrás do volante que, apesar da pouca prática que deveria ter, ainda assim possuía certa destreza para a arte da direção, eu ainda não conseguia acreditar que estávamos mesmo fazendo aquilo.
Por um momento, senti uma dose de culpa feita de ácido corroer minhas entranhas e ameaçar derreter meus ossos. Estacionei após fechar a garagem, quase letárgico, imergindo em uma espiral de pensamentos que começava a me arrastar para o fundo de mim mesmo.
- Luccas, vem. - O timbre suave de Oliver estourou a minha bolha particular.
Puxei oxigênio, e o frio da noite se enraizou nos meus pulmões, dando-me uma dose extra de coragem para começar a andar até o carro.
Seus dedos escorregavam por entre os meus cachos em uma carícia ritmada, espalhando mais daquela sensação de ter nuvens preenchendo cada canto do meu peito. Soltei um murmúrio baixo de deleite, acomodando melhor minha bochecha no seu ombro, que descansava contra a lataria da parte interna da caçamba do Chevy, onde estávamos sentados.
Alguns metros ao longe, a placa gasta repleta de ferrugem anunciava a saída da cidade. O céu exibia sua orgia frenética de pontos cintilantes acima das nossas cabeças, e partilhávamos o lençol macio que cobria nossas pernas, protegendo-as um pouco mais do vento gélido com cheiro agridoce que permeava o ar.
O toca-fitas próximo aos meus dedos dissipava um jazz qualquer dos anos quarenta, que Oliver gravara de um disco de vinil na sua paixão desenfreada por músicas antigas, ao lado da lanterna pequena do meu pai que encontramos no porta-luvas, como era de se esperar. Lá, também, achamos um pequeno bloco de anotações ostentando várias folhas vazias e uma caneta, as quais não resisti ao impulso de trazer para perto de nós.
Leonardo da Vinci falava que a contemplação é o ponto mais importante de tudo.
O homem em questão foi grande utilizador da técnica do sfumato em suas pinturas, que não admitia linhas para separar os contornos de corpos e coisas. Ele falava que, na natureza, as coisas não apresentam uma delimitação visível. Tudo é um contínuo. Não se sabe onde termina uma nuvem e começa o céu, por exemplo, porque não há bordas.
No fim, tudo é parte do todo e, na mesma proporção, o próprio todo; uma energia abstrata que vibra os átomos e molda existências portadoras de belezas únicas, que carregam o poder de ajudar a dar sentido à vida com a sua mera contemplação.
Cores, formas, fenômenos. Tudo o que enche a alma por nos fazer lembrar de que, apesar das guerras internas e externas, ainda existe beleza a ser vista em algum lugar - e que assim sempre seja.
Tudo em Oliver era arte. Eu via todas as cores do espectro visível sempre que fitava seus olhos, e me diluía em cada tom que o compunha no enlace dos nossos lábios. Na definição de beleza do meu dicionário particular, com certeza tinha uma foto dele sorrindo - apesar de ser mais fácil estar fazendo careta, por eu já saber o quanto detestava tirar fotos.
- Que bicho você acha que é? - indaguei, após empunhar a caneta sobre uma das folhas limpas do pequeno bloco.
Não conseguia enxergar praticamente nada, então, peguei a lanterna com a esquerda e a posicionei, ligada, sobre o pedaço de papel.
- Uma lagartixa albina. - Oliver respondeu, de imediato, soprando um riso. - É como a voz na minha cabeça sempre me chama. Quer dizer, a voz que, no caso, é a minha. Não sou esquizofrênico nem nada do tipo. Eu acho.
Dei risada, pondo-me a tentar transpor para a folha a imagem da lagartixa que se projetara na minha cabeça.
- Se a gente fugisse de verdade, para onde iríamos? - perguntou o garoto, enquanto eu esboçava uma das patinhas miúdas do bicho em questão.
- Sempre quis conhecer a Chapada Diamantina.
- Seria uma ótima rota. A gente poderia tentar rodar por toda a América também. - Ergueu a mão espalmada, como se estivesse desenhando um mapa diante dos seus olhos.
Soprei um riso, fascinado por toda aquela aura sonhadora que emanava dele.
- Adoraria fazer isso com você. - Sorri, e baixei as vistas para o que meus dedos traçavam. - Sabia que a têmpera que usavam para pintar na Idade Média era feita de clara de ovo, corante e água?
- Não sabia disso, mas já vi em algum lugar que na Idade Média tinham o costume de guardar tinta para pintura em uns recipientes bem bizarros, tipo conchas. As de escrever, colocavam dentro de chifres, porque eram mais líquidas.
- Fascinante. - entoei, eufórico por ter descoberto algo novo, e pude ouvi-lo soprar um riso.
Voltei a me concentrar no desenho, que ficou pronto pouco depois. Destaquei a folha e estendi para Oliver, desviando para ela o foco luminoso na minha palma, para que pudesse ler o que estava escrito.
Suas íris alcançaram as minhas, e um sorriso irradiou pontos luminosos no seu rosto. Subitamente, seus braços enlaçaram meu pescoço, e ele me apertou contra si com uma intensidade tão pungente que não consegui conter um suspiro, enquanto roçava os dedos nas suas costas, torcendo o jeans que a envolvia e pedindo silenciosamente para que nunca se afastasse de novo.
O calor da sua pele se mesclou ao meu, e, de forma gradativa, senti-me transbordar; escorrer por todos os meus poros diante da supernova que irrompeu do meu coração, com sua coletânea de cores e palavras desconexas demais para serem faladas em voz alta.
Ele recuou suavemente, e imprimiu na minha testa um beijo fugaz feito sopro quente em dia de inverno, infiltrando as digitais na base das minhas mechas para iniciar uma massagem suave, que carregava mais sentimentos do que poderia caber no mundo inteiro.
Inclinei-me devagar, e pincelei os lábios na sua testa também, sentindo minhas bochechas ferverem. Fechei os olhos, e Oliver beijou minha pálpebra solenemente, escorregando a outra mão até a maçã afogueada do meu rosto. Fiz o mesmo com a sua, sorvendo a textura de nuvem da sua pele sobre os cílios volumosos, que fizeram pequenas cócegas no meu queixo.
Por último, ele alcançou minha boca, desmontando-me por inteiro com os movimentos lentos da sua língua ao provar o gosto da minha. Arfei, jogando um pouco mais o corpo contra o seu para extinguir qualquer átomo de distância entre nós, e desci a palma até o seu pescoço, resvalando o polegar sobre a planície do seu pomo-de-Adão.
Cacete, como era bom sentir aquele garoto tão perto de mim.
Quando o contato se findou, estávamos sem ar; sufocados com todas as sensações elétricas que corriam pelos nossos sistemas.
- Merda, Luccas, você tem o melhor beijo do universo. - Oliver ofegou.
- Quantos alienígenas você já beijou para ter essa certeza? - Soprei a brincadeira, rindo.
Um sorriso pequeno enfeitou seu semblante, com uma profundidade oceânica latejando em suas íris.
- Você foi o único.
E eu só consegui despejar um riso carregado de embaraço, feliz de um jeito estupidamente único.
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