16: A Distração Infame de Órion
— Às vezes, eu fico pensando na trajetória que as coisas fazem ao longo do tempo em que existem.
Meu comentário fez Luccas me encarar por sobre o ombro, interrompendo o movimento do seu pincel na tela.
Eu tentava caçar por entre as gavetas cheias de papéis fora de ordem da minha cabeça alguma palavra para definir o quão bonito ela estava naquela tarde; vestindo uma camisa branca com inúmeras manchas coloridas traçando rotas abstratas no pálido tecido frouxo e uma calça de tecido xadrez.
Seu cabelo estava puro caos, revirado feito as gavetas que havia aberto há pouco, em busca de alguma coisa que sequer soube me explicar o que era, até encontrar; um dos desenhos que fizera à mão na noite anterior e fora a inspiração para a pintura que começou a elaborar antes mesmo de eu chegar.
Ainda não acreditava que tinha beijado aquele garoto. Mal consegui dormir naquela madrugada pensando nisso, e alguma coisa nas olheiras que se refugiavam sob os olhos de Luccas denunciavam que, talvez, acontecera o mesmo com ele.
O dito cujo avisou que estaria chato naquele dia, mergulhado no seu mundo surreal feito de todas as cores que cabiam na paleta de madeira envelhecida sobre a mesa próxima ao seu cavalete, engolindo tinta e arte como um lunático enquanto submergia naquele mar colorido feito das centelhas reluzentes que tingiam sua cabeça, enchendo-se de cor, de luz, até brilhar como se estivesse orbitando a maior estrela do espaço, e queimando junto com ela.
Era uma imagem tão linda que comecei a pensar nos meus devaneios sobre o caminho de tudo. Todas as coisas já haviam sido apenas poeira em algum momento, e nada fazia mais sentido do que imaginar Luccas assim; volúvel, feito dos astros de uma atmosfera onírica que exprimiam melhor do que ninguém a metafísica que aquele garoto era.
Percebi que não me importava que estivesse chato ou gentil, arredio ou doce. Era ele, existindo, e isso me bastava para querer ficar por perto, observando seus giros enquanto dizia estar fazendo arte, sem ter noção de que ele, por si só, já era uma. O quadro mais incrível de todos, daqueles que dá para se ficar horas contemplando e tentando achar um significado concreto que certamente não vai chegar. Porque é simplesmente a arte sendo o que é, à sua maneira. E ela não precisa fazer sentido, apenas ser contemplada.
Eu estava deitado na cama, tentando me concentrar mais no seu amontoado de colagens que pairavam na parede em uma miscelânea de cenários e imagens diversas, muitas delas embebidas em tom amarelado e outras exibindo várias estrelas e recortes de galáxias, do que nos meus pensamentos que constantemente trabalhavam em todas as possibilidades do que eu queria fazer com ele sobre aqueles lençóis.
Procurava manter meu foco na constelação de Órion, direcionando o máximo de atenção que conseguia reunir para o seu brilho estelar carimbado no papel em que fora impresso, como se enxergasse através daquele pedaço do espaço alguma espécie de portal para outros mundos que me ajudassem a ocultar o fato de que eu estava duro há mais minutos do que era capaz de contar.
Aquilo já estava me deixando preocupado. E se eu ficasse daquele jeito para sempre? Como iria às entrevistas de emprego com uma ereção eterna no meio das pernas?
Não deveria fazer bem para o meu cérebro, sem dúvidas, porque eu sentia que uma boa porcentagem do sangue que deveria fluir para ele e o manter funcionando devidamente estava vertendo para minha outra cabeça.
Sentia uma vontade quase patológica de tirar aquela camisa chata que recobria Luccas; de vê-lo sem nada além de toda a poesia que deslizava por cada contorno do seu corpo, em um rio feito de frases surreais, vírgulas, pontos e exclamações.
— Eu penso isso também, às vezes. — Sua voz fez dissipar aquela nuvem vermelha de pensamentos fumegantes que ameaçavam torrar meus miolos. — Por exemplo, uma cadeira. O que ela foi antes de ser cadeira? Um pedaço de árvore, que foi uma árvore, que já foi uma semente miudinha, que já foi um montinho de células, que já foram outras células, que já foram átomos que vieram de estrelas que nunca vamos conhecer, de algum lugar no meio de um lugar que nunca vamos estar, a menos que viremos astronautas.
— Já parou para pensar que a poeira pode saber mais da vida do que nós? — indaguei. — Porque, por exemplo, tem vários lugares que a gente esquece de limpar. Daí, junta poeira, e elas ficam assistindo tudo o que acontece por sei lá quanto tempo.
— Se pudessem falar, com certeza contariam histórias incríveis. — Luccas concordou, as orbes feitas de bolas de gude se apertando levemente para modelar sua expressão viajante.
Dei risada, sem conter o meu fascínio.
— Oliver, acho que a água do café já ferveu. — Voltou a falar. — Você faz?
— Acabei me distraindo e nem lembrei dela. — Dei uma risada um tanto sugestiva, pensando rápido sobre o motivo da minha distração.
Ele ergueu uma sobrancelha para mim, totalmente por cento ciente do que se passava na minha cabeça.
— Como pode me objetificar dessa forma? — Fingiu indignação, levando a mão que empunhava o pincel ao lado esquerdo do peito.
O movimento fez as cerdas do objeto roçarem sua blusa, colorindo ainda mais o tecido. Dei risada, enquanto ele fazia careta.
— Ouviu isso? — Coloquei a mão em concha no ouvido, como quem tenta capturar algum ruído distante. — Tive a impressão do pincel ter te pedido para tirar essa camisa.
— Sério? — Falseou ingenuidade. — Pensei ter ouvido ele gritar para você tirar essa bunda do chão e ir fazer o café.
— Por que eu? — resmunguei, espreguiçando-me feito um gato morto de sono. — Eu nem gosto de café.
Ela rolou os olhos.
— Mas sabe fazer?
— Sei.
— Então, faz. — pediu, simples. — Tô concluindo uma ideia importante aqui.
Com um resmungo baixo, fiquei de pé.
— Eu e minha bunda estamos indo.
Luccas prendeu os lábios para não rir, mas não resistiu. Fui até ele, atraído pela beleza do ato, e minha boca desfez seu sorriso com um beijo miúdo que se findou rapidamente.
— Você é um idiota. — afirmou contra meu rosto. — Tem sorte de ser bonito. Só por isso eu ainda falo com você.
— Obrigado por confirmar a minha teoria de que você só quer me usar. — Caprichei no semblante cabisbaixo. — Mas tudo bem, eu aguento. Posso fazer esse sacrifício imenso por você. Só seja rápido e indolor.
Ele riu e afundou o rosto no meu peito, em um gesto que me fez sorrir automaticamente.
Deixei o quarto pouco depois e segui para a cozinha. Reparei no Canela deitado perto da escada e tentei me aproximar do gato ligeiramente arredio, porém ele deu um sobressalto e se pôs a correr.
Dei risada, e fui fazer o bendito café.
Em alguns minutos, o cheiro quente com vislumbres de amargor dos grãos incendiou o ar, alertando que a bebida estava pronta. Depois de coar e colocar na garrafa de plástico, abri o lado do armário onde descobri ficar as xícaras. Fisguei uma e despejei o café recém feito no seu interior.
Quando me virei, deparei-me com Luccas apoiado na soleira da porta, fitando-me com um olhar tremendamente esquisito.
— O que foi? — perguntei, sutil.
— Nada. Não posso mais olhar para você? — Seus braços se cruzaram em frente ao corpo.
Não contive um riso diante do seu humor ranzinza, o que serviu para irritá-lo ainda mais. Suas bochechas começaram a inflar, ameaçando transformá-lo na versão gigante — e muito mais bonita — de um peixe-bolha raivoso.
Ignorando o perigo iminente, aproximei-me do garoto e estendi para ele a xícara, vendo-o se desmontar por inteiro ao agarrar a asa do recipiente de porcelana. O brilho faiscante no castanho das suas íris denunciava o quanto gostava daquele líquido amargo.
— Obrigado. — agradeceu, pouco depois de entornar um gole. — E desculpa caso eu não esteja sendo... sei lá... muito incrível hoje. É só que eu acho que não sei bem como me comportar diante disso. Sabe... de nós, desse jeito. Porque nunca vivi nada parecido.
— Fica tranquilo. — Sorri. — Eu também não. Mas a gente tem todo o tempo do mundo para descobrir o que fazer.
Ainda temos muito para existir, afinal de contas.
Um vislumbre de alívio perpassou por suas orbes, e ele sorriu também.
— Você pode me contar o que foi fazer com a Amélia ontem, depois da aula? — Sua indagação foi suave. — Eu perguntei à ela, mas ela disse que só você poderia me dizer. Foi algo... sério? Se não quiser contar, também tá tudo bem.
— Digamos que eu pedi a ajuda dela e do Luís para me ensinarem coisas que pudessem... fazer você gostar de mim, como eu percebi que gostava de você.
Um pequeno instante de silêncio se seguiu, até que, de súbito, ele caiu na risada.
— Não acredito. — Riu um pouco mais. — Por isso que você começou a me fazer elogios estranhos do nada!
— Eles disseram para eu ser romântico do meu jeito, e o meu jeito é esse. — Dei de ombros, rindo também. — Talvez seja meio torto e esquisito, mas.... sou eu.
Sua palma alcançou a lateral do meu rosto, o polegar iniciando uma carícia ritmada na minha bochecha.
— Eu... gosto disso. — Roçou a boca na minha. — Só não sei como vou contar para os meus pais.
— Não se force a nada. — pedi, mirando seus olhos escuros. — Cada pessoa tem um tempo que deve ser respeitado. Quando se sentir preparado, você conta.
Ele assentiu.
— Sinto que vão entender. Meu pai te adorou, e minha mãe também. — Riu.
— Quem não adoraria? — Fingi presunção, estalando a língua dramaticamente.
Seus olhos rolaram enquanto os lábios tremiam para rir, mas foram impedidos ao alcançarem as bordas do café, entornando mais uma porção generosa do líquido.
— Se quiser me beijar de novo, vai ter que escovar os dentes. — pontuei, e Luccas ergueu a sobrancelha em ceticismo na minha direção.
— A sua cara que vai.
— Tô falando sério. — Fiz minha melhor expressão inocente. — Corre o risco de eu vomitar na sua cara por causa desse cheiro de café.
Uma gargalhada gostosa lhe escapou.
— Se você insistir mais um pouquinho, pode ser que eu escove.
Só consegui sorrir. Então, lembrei-me de um detalhe que estava pensando em comentar com ele desde a tarde de ontem.
— Não acha que rola um clima entre a Amélia e o Luis? — sugeri, alcançando um fiapo solto de tecido na gola da sua camisa, que meus dedos começaram a puxar.
O pensamento tinha rodopiado na minha cabeça enquanto observava a dinâmica dos dois no apartamento do garoto mencionado, por vezes completando as frases um do outro e trocando olhares discretos sempre que podiam.
— A Amélia sempre me disse que não gosta dele, e nunca cairia naquele charme barato que ele tem. — Luccas riu. — Mas acho que isso é porque, no fundo, ela é bem parecida comigo.
Não pude conter o caminho dos meus pensamentos, que se puseram a flutuar em torno de um milhão de ideias que envolviam dar um empurrãozinho para unir os dois.
— E se a gente fizesse uma tentativa de juntar eles? — lancei a sugestão, empolgado com as possibilidades.
Luccas apertou os olhos, parecendo ponderar.
— Você tem alguma coisa em mente?
O sorriso ladino que se aflorou na minha boca se encarregou, por si só, de respondê-lo.
Saudações, terráqueos!
Gostaram do capítulo? Hahaha.
E das viagens do Oliver e do Luccas?
E do carinho dos dois?
E desse plano para unir a Amélia e o Luis? Também perceberam esse "clima" entre eles?
Eu ri muito imaginando o Oliver indo a uma entrevista de emprego com o negócio duro. E, sim, meu humor às vezes acaba sendo um pouco bizarro, hahaha.
Espero que tenham curtido! Beijos de nuvem <3
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