11: Óculos de Luneta
Quando eu era criança, lembro-me que enxergava os meus lápis de cores infinitas como um borrão disforme do que era para ser nítido.
Também não via direito as conchas que meus dedos pegavam por entre a areia da praia, embora soubesse que eram belas só de sentir todos os paralelos e meridianos que compunham aquelas casas esquecidas de bichos do mar, porque podia sentir a beleza, embora não pudesse avistá-la muito bem.
Nunca soube ao certo quem ou o que eu era, embora tivesse certeza do que queriam que eu fosse. As pessoas ao meu redor me enchiam da expectativa de que um dia teria um ótimo emprego, encontraria uma namorada que posteriormente se tornaria a minha esposa e, mais adiante, teríamos filhos de uma beleza ímpar. Era a ideia que tinham de um futuro brilhante e certo. A questão é que seus ideais nunca pareceram abarcar toda a imensidão que se expandia como o universo dentro de mim, cheio de desejos, anseios, enleios e dúvidas.
É difícil se entender quando se é criança, e mais ainda a vida inteira.
Sentia-me como um astronauta que vivia a deslizar por cantos imensos feitos de vácuo, de onde imergiam diversos planetas e galáxias que pareciam puxá-lo com fios invisíveis para lá. Mas o medo do desconhecido sempre falava mais alto.
Provavelmente, só comecei a entender alguns porquês quando ganhei um par de óculos de luneta, que me permitiu vislumbrar tudo no mundo por trás das suas lentes redondas; dos caracóis que escorregavam pelas flores do jardim aos que se amontoavam em centenas de cachos no topo da cabeça de Luccas, como uma moita muito propícia de esconder borboletas, cores e outras coisas que extravasavam em seu interior.
Ele fazia os desenhos mais bonitos da sala, e os mais coloridos, também, que contrastavam com as minhas ilustrações de monstros que secretamente representavam a forma que minha cabeça infantil via meu pai.
Um dia, morto de inveja de todo aquele talento descomedido, capturei a folha em que o garoto esboçava uma borboleta pairando sobre um arco-íris e a rasguei na frente da sala inteira.
Pelo que me lembro, aquela foi a primeira vez que eu o vi chorar. E, ao invés de me sentir satisfeito com aquilo, foi como se meu coração estivesse querendo virar do avesso em culpa e outro tipo de sentimento que minha cabeça não conseguia processar.
Não gostava do fato de não conseguir odiá-lo, e menos ainda de, às vezes, ter a impressão de que o que eu sentia por aquele garoto miúdo passava muito longe de ser isso.
Queria, no fundo, ser seu amigo. Estar perto dele. Desenhar junto com ele. Brincar com ele. Mas alguma coisa dentro de mim se revirava e retorcia, avisando-me de que não deveria.
Então, pensei que seria muito mais fácil fazê-lo me odiar; para não ter a possibilidade de, em nenhum momento, nos aproximarmos.
A questão foi que meus olhos se sentiram atraídos por outros garotos. E eu passei a não gostar da sensação de ver as coisas claramente, porque me permitia perceber o quanto me sentia disfuncional.
Deveria ter treze anos quando decidi arremessar meus óculos para longe; tanto no sentido físico, quanto no abstrato. Não gostava de como as lentes ficavam enormes no meu rosto e me deixavam parecendo uma mosca gigante, tampouco daquela sensação incômoda de deslocamento.
Desde esse dia, minhas vistas não eram das melhores, porém nunca tinha me incomodado tanto com tal fato quanto naquele domingo dentro de uma locadora semi-vazia, com Luccas a uma distância de mim que não me permitia enxergá-lo com o mínimo de exatidão.
Por que tão longe? Cacete, Luccas, não consegue perceber o quanto eu te quero perto?
Engoli o seco sobre minha língua, fisgando mais uma das embalagens retangulares de filmes que entulhavam a caixa aos meus pés.
Sessão de fantasia.
— Você também não acha que barcos não fazem o menor sentido? — A imagem na capa que eu segurava por entre os dedos me fez indagar.
Luccas ergueu a cabeça por cima da sessão de terror anunciada por uma pequena placa, de modo que somente conseguia ver seus olhos amendoados e os muitos cachos sensacionais que lhe moldavam o rosto, alvo de uma das centelhas de sol que a porta de vidro permitia adentrar.
— Com certeza, não. — concordou, rindo. — É um trambolho gigante, muito mais pesado que a água, mas que flutua em cima dela. Eu fico me perguntando como as pessoas descobrem como fazer essas coisas sem sentido fazerem sentido, e se tornarem.... reais.
Soprei um riso deslumbrado, enquanto encaixava a fita em minhas mãos na sua respectiva prateleira, do jeito que Rosa, minha digníssima tia, havia nos mostrado como fazer.
— Momentos de desocupação, provavelmente. — Virei-me para fitá-lo, e venci a distância entre nós. — Quando estamos sem fazer nada, vem umas coisas muito esquisitas na cabeça. — Dei de ombros, estacionando à sua frente. — Por exemplo, às vezes eu começo a me perguntar se eu seria outra pessoa caso os meus pais tivessem decidido transar vinte minutos depois da hora que escolheram, ou no dia seguinte.
— Já pensou que podem existir uma infinidade de Oliver’s por aí, vagando em outros mundos paralelos como versões diferentes de você? — Arregalou ligeiramente as orbes, com uma empolgação notável.
— E uma infinidade de Luccas também. — Ri, pressionando meu indicador na sua testa. — Em quantas outras realidades acha que a gente se conhece?
Um sorriso sutil enfeitou seus lábios.
— Acho que em mais ou menos 368.
Não contive meu próprio sorriso.
— Acho que em um pouco mais.
Ele soprou um riso baixo, permeado de timidez, e baixou um pouco a cabeça, desviando as íris das minhas por um segundo antes de voltar a me observar.
— Por que você... tá me olhando assim?
— Porque eu... — Apertei os lábios, reparando que fazê-lo não doía mais pela cicatrização quase completa do corte. — Eu acho que quero muito ter conhecido você em todas essas realidades que talvez nem existam.
Sua boca se entreabriu, e pude ver estrelas cintilarem no seu olhar.
— Meninos, menos conversa e mais ação! — O timbre divertido de Rosa ecoou, próximo à escada que levava para o segundo andar, onde morava.
Com uma risada meio tensa, afastei-me dele e voltei para perto da minha caixa.
— A propósito, como recompensa pela ajuda de vocês, vou deixar que escolham alguns filmes para assistirem sem pagarem pelo aluguel, desde que me devolvam até amanhã à tarde. — Sua voz foi doce. — Ah, e filmes adultos obviamente não estão inclusos. — pontuou, com ar de riso.
— Obrigado, tia. — Sorri.
Ela se pôs a subir as escadas, e minha atenção recaiu para Luccas novamente, que vasculhava uma caixa próxima de um jeito distraído, como se estivesse perambulando por uma outra galáxia; coisa notável na forma como esfregava a nuca incessantemente, e escorregava a ponta da língua vezes demais sobre o lábio inferior avermelhado.
— A gente pode assistir uns filmes de comédia. — Sugeri meu gênero favorito.
Ele me encarou por baixo dos cílios que piscaram muito por um instante, como se ponderasse, até um pequeno sorriso de canto riscar sua bochecha.
— Só se também tiver terror.
Porcaria.
— Tudo bem. — respondi com um fiapo de voz.
Luccas riu, preenchendo o ambiente com o ritmo melodioso do som, que enredou meu coração em um manto de leveza ímpar.
Demoramos cerca de duas horas para conseguir organizar tudo, e, ao final, caímos sentados contra o balcão, em estado de quase morte.
Alguns salpicos de suor escorriam pelo meu pescoço, bem como pelas palmas de Luccas, firmes ao redor das quatro pequenas embalagens que abarcavam os cassetes dos filmes que assistiríamos. Reparei no anel de pedra colorida circundando seu dedo médio, e não contive o impulso de perguntar:
— O que o azul significa?
Seu pomo-de-adão saliente se moveu quando engoliu, e seus lábios permaneceram entreabertos por um instante, as íris fixas no aro que evidenciava a cor em questão.
— Essa tonalidade pode significar normal, ou... apaixonado. — Gaguejou a última palavra. — Mas é claro que é normal, nesse caso. — Apressou-se em ressaltar.
Assenti, contendo o ímpeto de dar risada.
Os traços de desgaste da sua bermuda eram evidentes em alguns fiapos soltos que escapavam da barra, os quais meus dedos alcançaram em um impulso casual, puxando-os levemente para desprendê-los do resto do jeans.
Meus olhos, de forma automática, escorregaram ao longo das suas pernas próximas a mim, revestidas de pelos enrolados cor de avelã, que se escondiam debaixo da bermuda pouco acima dos joelhos. Ele tinha mais pelos que eu. Eram mais grossos, também.
Subi as vistas um pouco mais, e minha atenção recaiu sobre a elevação que demarcava a braguilha do jeans. Senti minhas células entrarem em efervescência diante do que meus pensamentos se puseram a projetar, e me forcei a deslizar o foco para o estabelecimento que se erguia à nossa frente.
As prateleiras estavam cheias de capas coloridas portando diversos títulos, que carregavam universos inteiros de possibilidades gravados por entre os retângulos de plástico de cada fita.
— Quando você tá tomando banho, às vezes também se pergunta o que aconteceria se pegasse o sabonete e enfiasse ele inteirinho pela garganta? — Luccas questionou, de súbito.
— Às vezes. — Ri.
Ele também gargalhou. E eu percebi o quanto estava ferrado quando me peguei, mais uma vez, inegavelmente hipnotizado pela forma como seus lábios se esticavam contra as bochechas, deixando à mostra os dois dentes da frente bem maiores do que os demais, mas que tornavam seu sorriso único no cosmos.
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