57ºCapitulo
Os meus olhos lentamente ajustam-se á luz clara que aparece pelas janelas sem estores. Gemo e viro-me na cama. O quarto parece tão grande para mim, a mobília castanha escura, os tapetes antigos, até as fotografias a preto e branco em cima do móvel onde tenho alguma roupa guardada. De uma maneira ou de outra sinto-me estranhamente apaixonada pela calma e pelo silêncio, pela única coisa que me chega aos ouvidos ser o vento lá fora. Nada de carros, pessoas, aviões...
Uma batida na porta faz-me virar rapidamente, a minha mãe sorri á porta e entra.
-Bom dia.- O cabelo dela está desorganizado de uma forma engraçada e sorriu-lhe.
-Olá.- Sorriu para ela.
-Queres ir dar uma volta? Não sei... o teu pai está zangado e a trabalhar então.
-Vou só vestir-me.- Digo-lhe.
Dez minutos depois estou vestida, e com tantos casacos quantos posso aguentar, tenho dois pares de meias e as botas calçadas. Estou pronta para ir lá para fora. A minha fome parece estar tão longe quanto a minha mente enquanto ando lá para o alpendre onde a minha mãe está a deixar sair o ar pela boca, formando pequenas nuvens de fumo.
-Onde é que vamos?- Pergunto, olho em volta e ainda á alguma neve a cobrir o chão.
-Podemos ir até á clareira onde tu e o Teddy costumavam brincar?- Aceno com a cabeça e ela levanta-se, andamos ao lado uma da outra, o barulho dos nossos passos, as nossas respirações, a aura triste e pesada.
-Como é que estás?- Sorriu, porque eu deveria perguntar isso.
-Bem, e tu?
-Bem.
Riu-me e ela segue-me, olhamos uma para a outra e tento ver quão parecidas somos, a acabar com homens indecisos e protetores, talvez se não fosse o Harry eu continuasse a invejar a relação dos meus pais, sempre tão carinhosa, até que comecei a ver como as coisas realmente funcionam, como é que as relações são feitas, do que são feitas.
-Sophia há alguma coisa a incomodar-te?- Um galho estala debaixo do meu pé e estremeço.
-Porquê?
-Não estás a rir-te, nem a brincar...
-Ver o avô, ver este sítio outra vez, lembrar-me das coisas, é difícil.
-Mas há mais certo?- Ela empurra.
Penso durante um momento. Sinto a fricção dos lábios do Harry nos meus, duros, implacáveis a sugar tudo de mim, tudo o que restava de mim. A maneira como ele me agarrou como que se estivesse desposto a guardar aquele momento como um trofeu pessoal, como eu e ele fossemos um só, mas no entanto tão distantes enquanto as lágrimas escapavam dos meus olhos como avalanches.
-Demiti-me, tinhas razão trabalhar debaixo do mesmo teto que o Harry não era bom.
-Oh, ele chateou-se?
-Não mais que eu.- Murmuro.
-Ele tem um feitio forte, mas vai habituar-se á ideia.
-É um problema dele, não meu.- Encolho os ombros.
Uma rajada de vento sopra sobre nós e o meu cabelo é atirado para trás, sinto as minhas orelhas doerem do frio. É quase confortável estar mais frio por fora do que por dentro.
-Porque é que estás a agir como se não te importasses? Estás numa relação com ele querida, deve ter-lhe custado, devias ser mais compreensiva.
-Talvez tenhas razão.- Riu-me. Talvez devesse ser mais cativa por ele, talvez devesse rastejar aos pés dele, talvez devesse tirar a roupa e deitar-me no chão para ele me usar como um tapete. Talvez a culpa não seja minha, talvez nunca devesse ter caído na tentação de novo, talvez não devesse ter sido tão ingénua. Não aguento isto! Não aguento a maneira como ele me tratou, detesto sentir burra, detesto que o controlo da minha vida me escape pelos dedos, detesto que ele me encontre em casa esquina. Odeio o facto de cada coisa na minha vida estar ligada a ele.
Quando estamos a almoçar, os meus pais estão calados, a minha avó chegou á meia hora e veio sentar-se para almoçar, o meu irmão chega esta noite, e não vejo a hora de algum alegre chegar para isto tudo parecer um pouco mais normal. Mexo com o garfo numa batata e olho para os meus pais, parecem tão distantes que o muro Berlim deve estar ali metido no meio. O som do relógio de pendulo na sala é o único barulho.
-Vocês os dois importam-se se parar?- Lily diz zangada e até eu olho para ela.
-Mãe...- A minha mãe sorri.
-Não vale a pena começares com isso, estou desapontada que tragam os vossos problemas para a mesa, quando a vossa filha esta a olhar para vocês como se o mundo estivesse a acabar.- O meu pai olha para mim e sorriu-lhe.
-Está tudo bem, estamos só cansados.
-Não Alex, cansada estou eu, vocês os dois deviam conversar e acabar com isso de uma vez.
-Nós...- A minha tenta.
-Agora!- A minha avó diz autoritariamente. A minha mãe levanta-se e o meu pai vai atrás dela.
O relógio continua a bater assim como a porta do quarto em cima se fecha com força.
-Sabes o que é que se passa?- A minha avó pergunta-me, mas quando tento responder ela silencia-me.- Passa-se que a tua mãe não sabe lidar com a vida, e que o teu pai está a perder o que ganhou estes anos todos. Cordialidade e paz no casamento, ou seja, a tua mãe está triste, perdida e sem vida, o teu pai está zangado, triste e perdido, isso faz deles os dois alvos a abater um para o outro.
-Eles não se odeiam.- Abano a cabeça.
-Não, mas estão a passar por uma crise conjugal maior do que a que dão a entender porque não conversam e aceitam o silêncio e as explicações baratas um do outro.
-Eles tentam falar mas...o pai disse que a mãe não se abre muito ultimamente.
-Nem o teu pai, ele é mais fechado que uma ostra, é impossível faze-lo falar.
-Mas eles falam, pelo menos tentam.
-Cada um mente da sua maneira, o outro sabe que é mentira e insiste mas isso só gera mais discussão então sabes o que acontece?- Tento responder, mas mais uma vez ela para-me.- Zangam-se, aceitam o que o outro diz e param de tentar.
-Talvez já tenham tentado demais.- De repente Lily não está a falar dos meus pais, está a falar de mim, do Harry, e de como nos pressionamos, e como acabamos por aceitar que nunca conseguimos comunicar, talvez chegue a um ponto que esgota.
-Só se tenta demais quando se morre, quando a força da vida se foi de vez. O que eles os dois estão a fazer é a desistir.
O medo bate-me por dentro com força, e tremo.
-Eles adoram-se.- Defendo.
-E do que serve isso se continuarem assim?
-Porque é te separaste do avô?
-Porque não podia ser eu.
-Desististe.
-Sim, por isso é que não quero a tua mãe para cometer o mesmo erro, embora ás vezes deteste o teu pai, mas se há coisa que aquelas dois são, é apaixonados um pelo o outro e isto vai acabar mal se não pararem por um minuto para pensar.
-Não é assim tão simples.
A minha avó abre a boca mas nós as duas calamo-nos quando ouvimos a porta a bater de novo.
-Fala comigo merda!- O meu pai grita e a minha mãe bate a porta da frente, levanto-me e corro para ver o meu pai a ir atrás dela, é tarde demais, o carro foi levado, sinto um murro no estomago com a visão horrível á minha frente. A minha mãe acabou mesmo de ir embora? Ela está bem o suficiente para conduzir? Ela está a chorar?
O meu pai vira-se e á lágrimas pequenas no cantos dos seus olhos. Os olhos azuis nunca pareceram tão vulneráveis.
-Nem uma palavra disto ao teu irmão.- Ele sibila.
-A tentar manter a fachada Alex?- A minha avó diz num tom sério.
-A senhora é incrível, estamos a passar uma crise familiar horrível, o seu ex-marido está numa lá em cima a tentar lembrar-se do nome da sua filha todos os dias, a sua neta está despedaçada, a sua filha não sabe lidar com a morte iminente do pai e você está preocupa em atacar-me? A mim?- O meu pai está furioso a olhar para Lily que permanece imóvel.
-Gritar com a minha filha, ou comigo não vai ajudar.
-Fazer-me por mau da fita também não.- O meu pai rosna.
-Se a minha filha não fala contigo talvez ela tenha perdido a confiança em ti.
Desta vez o meu pai não diz nada, cala-se e olha para a minha avó como se ela lhe tivesse espetado um punhal no peito. Lentamente os olhos dele encontram os meus, sinto que estou a tremer quando ele se aproxima de mim, não de medo, mas porque nunca na minha vida vi os meus pais assim, nunca na minha vida as coisas estiveram tão desarrumadas.
Ele aproxima-se e abraça-me.
-A tua mãe e eu estamos só chateados, vamos ficar bem.- Ele diz-me como que a tentar sossegar-me, mas algo me diz que se está a tentar consolar a ele mesmo.
Afasta-se devagar de mim e a minha avó olha enquanto ele sobe as escadas, em silêncio levantamos a mesa, há um nó nomeu estomago, uma contração no meu peito faz-me sentar por um minuto, passo a mão pela bochecha para me sentir a mim mesma, para ter a certeza de que estou aqui, puxar-me para o agora.
-Estás pálida, devias descansar.- A minha avó murmura.
-Porque é que foste tão bruta com o pai?- Murmuro sem olhar para ela.
-O teu pai parece ter dificuldade em ver a realidade ás vezes.
-Ás vezes podemos não ver as coisas, mas sentimo-las. Ele finge que não vê, mas sente.- Levanto-me zangada.
-Estas com rancor agora, assim como ele, mas daqui a umas horas quando a tua mãe voltar, ele vai saber o que dizer.
Ela sai e deixa-me sozinha, sentada na enorme sala, na solidão desgastante que penetrou as paredes forradas, a lareira crepita com fogo e deixo-me hipnotizar pelo lume. A minha cabeça balança ligeiramente para a frente e sinto uma dor aguda no lado direito da cabeça, mordo o interior da bochecha e baixo a cabeça contra o tampo de mesa, o frio da madeira envia um arrepio pela minha espinha e a minha visão fica nublada. De repente algo me atinge como uma descarga de eletricidade e gemo baixinho antes de um borrão preto se apoderar de mim.
Ando por uma rua escura, as lâmpadas iluminam as laterais da estrada e no meu lado direito á filas intermináveis de armazéns, cheira a mar, e a algo mais sujo que não consigo identificar. Não pessoas nesta zona da cidade, na verdade sinto uma presença forte, só que algo não bate certo, tenho a certeza que estou sozinha. Um telemóvel toca no chão a uns metros de mim e apresso o passo. Devo atender? Sem conseguir sequer pensar nisso o telemóvel é sugado contra a minha mão e levo-o num instinto ao ouvido.
-Se essa é a única maneira de o fazer pagar, estou disposto a arriscar!
O meu coração para com a voz rouca e implacável faz-me gelar o sangue, o Harry respira devagar e murmuro alguma coisa.
-Arriscar o quê?- Pergunto-lhe, mas a chamada cai.
O telemóvel é atirado contra a parede por uma força mais forte do que posso entender e começo novamente a caminhar, mas á medida que me aproximo do número 79 o meu coração começa a bater mais depressa, tento parar de andar mas os meus pés fazem força para continuar, sou catapultada para dentro do armazém e os meus olhos arregalam-se.
O cheiro é horrível, há garrafas por todo o lado, comida pelo chão e ao fundo o corpo de um homem embrulha-se numa manta, dormindo um sono perturbado, os olhos do homem abrem-se. Dois pares de safiras azuis penetram a minha alma com tanta força que choramingo quando percebo que está a caminhar para mim.
-Só pode haver um vencedor.- Sussurra-me.
Sou atirada contra a parede com força e por um momento o chão desaparece e quando aparece e os meus olhos se abrem, é o Harry na cama a contorcer-se que vejo, é o meu pai a caminhar por um labirinto escuro, é a minha mãe a deambular sem vida por um jardim, é o meu avô numa sepultura, e tudo o que posso murmurar é uma prece surda.
Quando abro os olhos o fogo continua a olhar para mim, inspiro bruscamente e endireito-me, tenho as unhas cravadas nas palmas das mãos com tanta força que parece que há marcas de sangue á superfície da pele.
A porta da frente bate mas não vejo ninguém, levanto-me e caminho até lá, olho pela janela perto do bengaleiro e vejo o meu pai subir para o SUV e sair da propriedade. Olho para o lado esquerdo e a minha avó está na casa velha onde guardamos coisas antigas, e itens de jardinagem, ela sai de lá e oiço a porta da cozinha fechar-se.
Fecho os olhos e visto casaco, quando volto a olhar estou a abrir caminho pela neve mais espessa, abro a porta da casa velha e ligo a luz, ao fundo o meu velho baloiço é iluminado, parece velho e desgastado, triste sem ninguém que se divirta nele. Sozinho, abandonada, com medo.
Sento-me no velho baloiço e dou um ligeiro empurrão. Observo como o vento abana a cabana, como o vento abanou a minha vida.
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