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Capítulo 2

As botas embateram no solo com desmedida força. As duas irmãs conseguiram sentir a vibração a subir-lhes pelo corpo. O vento, revolto, passava-lhes pelos longos cabelos dourados, que brilhavam sob a luz da lua cheia.

− Você consegue senti-lo? – Sarah, a primogênita Morgan, questionou. Seus olhos fechados viam bem mais do que qualquer outro ser de olhos bem abertos.

Susan aquiesceu, a pele arrepiada confirmava. Havia qualquer coisa de familiar impregnada na atmosfera daquela cidade.

− Nunca pensei que voltaria um dia. − Os pensamentos de Sarah massacravam-na. As imagens do fogo, do cheiro da carne queimada... − Vamos! Temos trabalho a fazer!

Quaerere invenit – sussurraram em uníssono para a escuridão da noite.

A magia levara-as até um velho edifício que repousava imponente como se as pudesse derrotar. A inscrição "Museu das Bruxas de Salem", com enormes letras amarelas, desafiou a paciência de Sarah. As irmãs não precisaram de encostar as mãos nas portas cerradas para sentir a aura de proteção em que o edifício mergulhava.

"Alguém não quer que entremos", o pensamento inquieto invadiu a mente de Susan.

− Ou não querem que alguém saia – respondeu Sarah, sem saber qual das duas hipóteses lhes era mais propícia.

Esticando as mãos abertas para a madeira resistente que as mirava, elas entoaram as palavras num murmúrio quase cantado:

Aperta ianua. Aperta ianua.

O vento forte investiu sobre as portas, que tremiam violentamente sob os comandos obstinados das jovens, até que os dois grandes pedaços de madeira foram arrancados e projetados para dentro do edifício. O baque estrondoso fez as irmãs sorrirem determinadas. Outrora poderiam ter sido umas simples crianças amedrontadas, porém, naquele momento, depois de anos de experiência e prática, sentiam-se preparadas.

Os corredores encontravam-se escuros e estranhamente vazios. Enquanto as duas moças caminhavam, a madeira velha, que cobria o chão, rangia.

Um grito de dor trespassou as irmãs. Era um simples eco distante, mas elas sentiam-no nos ossos. Agudo, sofrido, ininterrupto. O sangue ferveu e os olhos reviraram-se com a força de seus poderes a aflorarem-lhes a pele lívida.

De mãos dadas, elas avançaram com energia renovada. Os movimentos, demasiado fluídos, demasiado perfeitos, para serem humanos. As pupilas não recebiam informação alguma, enclausuradas debaixo das pálpebras. O soro que as alimentava, que lhes dava o rumo de que necessitavam, advinha do líquido escarlate que lhes corria nas veias.

− Para! − Susan alertou a irmã, que respondeu ao comando de imediato, estacando.

Os olhos da caçula Morgan foram absorvidos pela escuridão do espaço. Suas narinas se abriam para o cheiro acre que a seduzia. Que a inebriava. Susan largou a mão da irmã e se deixou guiar pelo odor. Sarah estranhou, mas não tardou para lhe seguir os passos.

As solas das botas começaram a ficar pegajosas com um líquido escuro que cobria o chão. O resíduo alastrava-se muito além do seu ponto de origem, devido ao chão levemente inclinado.

Susan ajoelhou-se junto ao corpo inerte, a borda do vestido azul imaculado absorvendo o vermelho viscoso.

A pouca luz do espaço deixava antever um homem deitado, completamente desnudo, com um corte profundo, em forma de cruz, que se estendia no peito, unindo o pescoço à cintura. A jovem mergulhou a mão nas entranhas do morto e deixou-se levar pela sensação dos órgãos arrefecidos que palpava. Seus olhos tornaram-se vítreos e sua cabeça tombou para trás.

− Sue. Vingança. Restos. Almas – balbuciou, ainda em transe.

Sarah, um pouco atrás, agachou-se e molhou a ponta do indicador direito no sangue. Levando-o à boca, também ela conseguiu provar um pouco da morte que arrebatara aquele homem.

− Eles vão todos morrer – afirmou perentória.

As duas irmãs apressaram-se a seguir o trilho de antes, desta vez, bem mais conscientes de tudo o que se passava.

O som de um choro gasto e profundo propagou-se pelo túnel que as irmãs percorriam. Aquela era a passagem para uma nova ala do museu. Se a anterior estava cavernosa, vazia e fria, não se poderia esperar muito da próxima, com aquele ruído perturbador de sofrimento humano como presságio.

− Fica atenta – avisou Sarah, trazendo o corpo da irmã para mais perto de si.

Os focos de luz espalhados pelo teto da sala tremeluziram com a entrada das jovens, como se lhes estivessem a dar as boas-vindas. O flash descaiu sobre os corpos fétidos jogados contra as paredes vazias do espaço. O sangue seco gretado aos corpos desnudos, com a pele enegrecida a evidenciar o começo do longo processo de decomposição. No centro, os móveis, reduzidos a uma confusão caótica, formavam um estranho círculo improvisado. O local respirava morte, emanava morte, e não fosse o bizarro choro, agora mais veemente, onde a vida, relutante, vincava presença, dir-se-ia fadado a nada mais do que à morte.

Pelo canto do olho, Susan percebeu movimento no canto da sala. A jovem fez sinal à irmã e ambas se moveram nessa direção exata. A luz parca do espaço não conseguia manter-se estável, mas a feição contorcida de medo de uma pequena criança desenhou-se claramente sob um flash intenso.

− Não te vamos fazer mal – garantiu Susan, acercando-se da menina.

− A mamãe não responde – queixou-se chorosa, apontando para uma das mulheres entre os mortos.

Alguns dos corpos tinham a cruz rasgada na carne do peito, mas não todos. Não aquele. O corpo da mãe da criança era marcado, em locais aleatórios, por uns cortes de garras ou unhas e o cérebro havia-lhe sido arrancado. Junto à cabeça, conseguia-se ver o órgão, jogado no chão, com pedaços em falta.

– Nós podemos fazer desaparecer a tua tristeza. – Susan abanou a cabeça, concordando com o que a irmã dizia. – Eu percebo-te na perfeição, pequena criança. Sei o que você sente.

A menina aquiesceu, sentindo-se reconfortada. As lágrimas, porém, continuavam a cair. Fugiam em desespero do interior daquela criança. Elas sabiam o que estava para vir.

As jovens, de mãos dadas, sentiram a energia a jorrar-lhes do corpo. Em torno delas, uma aura ardente unia-as numa só entidade, que se expandia cada vez mais e mais até que abraçou também a criança. Os três corpos começaram a entrar em convulsão e gritos de dor propagaram-se pela sala. Uma cruz desenhava-se lentamente, de dentro para fora, preenchendo o peito da menina. O tecido rasgado de seu vestido rosa amparava o sangue expelido em cascata.

A luz sobrenatural extinguira-se tão rápido quanto aparecera, e o pequeno corpo caiu, sem vida, no chão.

– Aqui! Mais duas! – gritou uma voz distante. As garotas respiravam ofegantes, de visão embaçada. Seus ouvidos estalavam. − Vocês trouxeram o Vírus para Salem e, por isso, terão que morrer.



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