Virtude
VIRTUDE
Narrado por: Sarisa
Não tenho adjetivos para descrevê-la. Da primeira vez que eu a vi ela parecia... Surreal. Eu mal entendi o que ela falou, apenas prestei atenção no tom da voz. O tom era como o de um anjo... Um anjo o qual havia descido à terra para me livrar da morte. Enquanto eu estava caída na lama, desesperançosa, certa de que minha vida acabaria naquele momento, ela surgiu há alguns metros, em cima das pedras, enquanto bloqueava de minha vista o avermelhado pôr do sol no horizonte. O sol refletia em seus cabelos dourados, que esvoaçavam com o vento. Seus olhos também eram dourados, um dourado que nunca tinha visto antes, o que a fazia parecer ainda mais com um ser celestial. Ela apenas vestia a armadura da cintura para cima, acho que para dar mobilidade às pernas. Seu semblante trazia seu vigor e superioridade. Lembro de ter visto também alguns braceletes, mas não lembro muito bem. Ela ainda trajava a capa vermelha da organização, que estava ligeiramente rasgada, e segurava uma das espadas na mão esquerda.
Muitos diriam que o começo da história se deu muito antes, que se deu quando eu conheci o Perseu, e então logo em seguida encontramos Mantel Carlo, o Carlinho, e então dias depois apareceu aquela garota do vestido branco, responsável por me dar a chance de ter o desprazer de ficar jogada na lama naquele dia, em frente a um soldado da organização. Mas para mim, foi o surgimento da Vi que foi algo digno de marcar a mudança de rumo na história de Auriga, assim como de marcar minha vida, de modo que ela se divide em antes e depois de conhecê-la... E, sobretudo foi para mim o que marcou o começo desta história. Mas para que não pareça tudo muito perdido, me permita contar-lhe um pouco do que estava acontecendo:
Meu nome é Sarisa. E não possuo um segundo nome, já que o segundo nome já havia sido abolido do setor 114 quando eu nasci. Mas embora eu não tenha um segundo nome eu tenho um sonho. Sonho de que a paz e a justiça que um dia reinou naquele planeta voltem a reinar mais uma vez. Acredito que todas as pessoas devem ter os mesmos direitos e deveres, e que devem ser julgadas pelas mesmas leis, e por isso acredito que as pessoas dos setores não devem a essa obediência cega à organização, como é de praxe, até porque foi a organização que foi fundada justamente com o propósito de dar suporte aos setores, e não o contrário. Então sonho com o dia em que os lindos, poéticos e filosóficos documentos das diretrizes escritas no documento de fundação da "excelentíssima" OSSP (Organização de Suporte aos Setores Privilegiados) tenham suas teias de aranha retiradas e sejam colocadas em prática, para que as pessoas possam voltar a ser amigas e felizes para sempre. Sabe... Esses sonhos malucos que as jovens têm.
Desde o massacre do "Horologium", a OSSP foi fundada para evitar que os povoados de Auriga se revoltassem e dessem início a uma nova guerra, e para isso a organização dispunha de nada mais nada menos que todas as armas e dinheiro que pertenciam a nós, antes de sermos conquistados, saqueados, e tornados favelas. Sim, havíamos sido tornados favelas sobre os péssimos cuidados da organização, que evitava se referir a nossos povos pelos nossos nomes verdadeiros, e foi por isso que posteriormente fomos enumerados e classificados como setores, incluindo o setor 114, que antigamente se chamava "Trópico das Luzes", a minha terra natal. A organização oferecia seus cuidados a todos os setores sob um pretexto de "união em prol da evolução", visavam unificar e pacificar toda a Auriga, e provavelmente mais terras além dela, e faziam isso tirando proveito dos resultados do Horologium e da invenção de Euphenstein.E para oferecer seus cuidados, convocavam forçadamente e davam armas à alguns moradores de setores para que eles lutassem contra suas próprias famílias para "concretizar a paz", em resumo a OSSP era basicamente o mesmo que uma ditadura militar, só que os soldados eram obrigados a exercer a função. Naquela época, a organização ainda não tinha encontrado o "código 11", que era como eles chamavam o tal objeto. Um objeto pequeno, cabendo numa mão, que era quadrado e branco, com conteúdo misterioso dentro, e lacrado de forma a não abrir com uma simples queda ou aplicação de força. Aquela garota do vestido branco insistia que ele era importante, mas para mim não passava de um pedaço de sucata branco, que mais parecia uma máquina fotográfica, com a única diferença de que não tirava fotos. Na verdade nem sequer ligava, sei lá porque a organização estava atrás daquilo.
Mas ainda assim eu estava protegendo o código 11 com toda minha determinação e força de vontade, eu estava cumprindo com o meu honorífico e promissor papel de adolescentezinha revolucionária, e por isso estava desperdiçando o maravilhoso pôr-do-sol daquela tarde caída na lama, com a roupa rasgada e a maquiagem corrida, esperando um mero soldadinho da organização acabar com a minha vida para tomar o código 11 de minha tão companheira mochila de oncinha, para que eu pudesse ter pelo menos a dignidade de dizer que morri bravamente, tentando privar o artefato perigoso de cair nas mãos sanguinárias do inimigo. (mas que parecia uma máquina fotográfica parecia).
Quando digo soldado da organização, não estou falando da Vi... Não. Ela é e sempre será o meu anjo da guarda que apareceu para me salvar, e jamais faria nada para me machucar. Estou falando do tal Hercules. Hercules Weakbald. O sujeito era um soldado à serviço da OSSP. Tudo bem, na verdade ele tinha um posto mais alto, e eu,talvez, deveria ter me esforçado para aprender a ver tais detalhes pero número de estrelas no emblema ou algo assim, mas não tenho paciência para essas coisas, para mim é tudo igual. Weakbald, para mim, não passava de mais uma mente comprada dos povos dos setores, que esqueceu que um dia pertenceu a um povo com identidade, e achava-se superior só porque agora usava uma capa e uma espada. Como todo soldado ele tinha um sobrenome. O dele era Weakbald... Careca e fraco. Acho que ele nem sabia que era isso que significava. O nome Hercules era um nome que ele próprio tinha se dado, pois ele se achava o tal.
Apesar de ser já vivido em anos, ele ainda tinha o corpo malhado, e possuía a energia de um jovem. E devia ter muita energia mesmo para eu mesma estar admitindo isso. Mas ele se recusava a aceitar que já estava velho. Weakbald não era muito alto... Acho que era a armadura dele que dava essa falsa impressão. Seus cabelos eram grisalhos, evidenciando sua idade e ao mesmo contrastando com sua condição física, e seu olho bom era de uma cor verde apagada. Antes do Horologium ele era um mágico famoso muito conhecido, tanto que eu até reconheci quando ele veio atrás de nós naquela tarde. Quando digo mágico, não pense que ele tinha algum poder sobrenatural ou algo assim, ele era simplesmente um desses que tiram coelhos da cartola, ou fazem truques baratos com cartas. "Um mágico de araque", esse era o tipo de pessoa qualificada para ter um posto alto na OSSP. E ele era o encarregado da missão "recuperação do código 11" naquela tarde.
Só para dar uma idéia de como eram as nossas chances, o poderio militar da organização naquela época já contava com cerca de 20 batalhões, formados de remanescentes de todos os 420 setores que tinham sido conquistados no Horologium. Com isso a organização conseguia reinar sobre todos os povoados da terra de Auriga, que agora são reduzidos a meros setores.
Enquanto isso, nossa facção revolucionária contava com, vejamos... Quatro pessoas: Eu, a garota de vestido branco - sempre esqueço o nome dela, coitada - o Carlinho, e o Perseu. Mas na verdade éramos três, pois o Carlinho estava lá mais de refém, já que eu e o Perseu duvidávamos da veracidade de suas histórias, e sobretudo concordávamos que ele tinha perfil de cientista da OSSP. Mas nem tudo estava perdido, pois nós tínhamos em mão uma máquina fotográfica branca, o que parecia ser suficiente para incomodar os autoritaristas da organização. Pelo menos meu irmão me ensinou que quando um oficial militar usa um código para descrever um evento ou objeto, é porque este é importante.
Mas voltando ao assunto, a ordem dos acontecimentos daquela tarde, que eu me lembre foi mais ou menos a seguinte:
Estávamos eu, o Perseu e o Carlinho viajando do setor 75 ao 74.Nós queríamos contactar um aliado nosso. E para isso deveríamos atravessar uma espécie de cidade fantasma, à qual se referiam como "Kebebassa". Kebebassa consistia em um punhado de estradinhas de terra, onde os lados das ruas eram ruínas de casas que um dia deveriam ter servido de lojas, ou algo do tipo. Kebebassa tinha a parte de baixo, onde ficavam as estradas de chão mesmo, e a parte superior, que eram as ruas de metal, com casas acopladas, construídas nas épocas antigas, épocas em que a população estava crescendo muito, e as cidades tiveram que inventar espaço para a circulação dos veículos. Mas é claro que todas essas casas, ruas e pontes já estavam todas abandonadas e caídas aos pedaços como todas as outras cidades antigas. Era uma cidade fantasma mesmo.
Perseu era nosso líder, pois foi ele que começou com essa loucura de revolta de adolescentes primeiro. Perseu era forte e determinado. Seu físico não era dos melhores, mas também não dos piores. Porte médio em todos os sentidos, acho. Ele tinha a pele branca, os cabelos pretos, e não chamava muito a atenção. Ele era teimoso para a maioria das coisas, então não contrarie muito as idéias dele se você um dia estiver na facção e ele for o líder.
Já o Carlinho era um pouco menos teimoso e menos determinado que o Perseu. Eles tinham mais ou menos o mesmo físico, mas o Carlinho era mais bonito. O rosto dele era bonito. Ele tinha os cabelos e olhos negros, e acho que era o contraste com a pele branca que chamava a atenção. Ele não era jovem como a gente, mas mesmo assim não aparentava a idade que tinha, tanto fisicamente quanto em personalidade. Mas apesar de ser bonitinho, ele também não me chamava muito a atenção. Sei lá, acho que era o jeito que ele era no começo, ele sempre concordava com tudo e estava sempre se colocando em segundo plano, parece... Acho que foi por isso que eu e o Perseu começamos a desconfiar dele.
Como todo morador de setor, nós três tínhamos que caçar nossa própria comida, pois já tinha se ido a época em que podíamos comprar comida facilmente dos outros. Assim, quando estávamos sentados em roda, sob os sussurros do vento frio e solitário de Kebebassa, onde no centro tínhamos feito um buraco no cimento da calçada para assar uma ave para almoço, a garota do vestido branco chegou, ofegante, tropeçando em si mesma. Era uma garota jovem, assim como nós. Ela usava o cabelo curto e mesmo assim amarrado, passando a impressão que trabalhava em um laboratório, ou cozinha ou algo do tipo. Seus cabelos eram castanho avermelhados, e seu rosto era de mocinha doce e inocente, e naquela tarde, mais do que nunca, mostrava uma grande preocupação no rosto.
- Com licença – começou ela em tom baixo – O senhor que é o Perseu, dos boatos dos setores 68 e 69?
Nós apenas nos entreolhamos, desconfiados. Também, há poucos dias nós havíamos acabado de cometer uma infração grave contra a organização, e Perseu que tinha sido o líder da nossa operação revoltosa, então como o boato estava correndo por todos os setores da região, qualquer pessoa que soubesse quem éramos,era suspeita de estar querendo vender-nos para a OSSP. E, aliás, a garota do vestido branco tinha uma espada da organização amarrada às costas, e um bracelete, o que podíamos pensar?
Deixe-me explicar mais ou menos como funcionavam os armamentos da organização: Devido aos chips metálicos de proteção, que eram implantados nos bebês pouco depois do nascimento, e também nas roupas e armaduras, não era muito efetivo o uso de armas de fogo daquelas velhas, que atiravam balas, pois as balas iriam naturalmente se desviar todas dos corpos humanos, então os armamentos mais adequados eram as espadas. As espadas eram grandes peças disformes, feitas muitas vezes de ligas de Manganês ou Arsênio, e estes elementos não causavam danos ao usuário devido aos ligamentos que o capacete do mesmo tinha com o sistema nervoso e respiratório. Muitas vezes algumas propriedades extras eram atribuídas às espadas para maximizar seu dano físico ao oponente, às vezes chegavam a expelir Césio ou algo do tipo quando causavam impacto. A construção da espada era feita de forma reversa à dos chips implantados no nascimento, e de alguma forma isso permitia que a espada fosse atraída pelos chips do corpo do oponente, e também pelas células dos nervos. Assim qualquer um conseguia usar a espada para machucar o outro com facilidade, no entanto era necessária muita habilidade para se bloquear golpes de espada usando outra espada, sem falar que para isso era necessário se ter uma espada, coisa que só os honrados oficiais da OSSP tinham autorização para possuir. Já o bracelete servia para acentuar uma propriedade específica da lâmina. Ele era também controlado via sistema nervoso e respiratório, e necessitava de compatibilidade com o modelo da espada. O bracelete que a garota de vestido branco era até que comumente conhecido. Ele permitia ao usuário acelerar ou desacelerar o movimento da espada de acordo com as ligações com o sistema cardíaco, cujas entradas eram canalizadas pelo pulso. A aceleração a era útil, pois a espada dela a era claramente muito pesada. Era um modelo OPH25 usual, o qual com o capacete, auxílio dorsal e tubulações chegava a pesar 110 quilos, isso sem contar a armadura que ela estava usando. Imagine como ela devia sofrer para carregar essas coisas todas, ainda mais ela que não estava acostumada. Tadinha. Essas coisas um ser humano só era capaz de usar graças aos chips que começaram a ser implantados após a invenção de Euphenstein, os chips nos davam além de força e proteção contra os projéteis, vários outros atributos físicos.
- Não se preocupem – continuou ela – eu não estou trabalhando para a organização, é na verdade o contrário. – Ela estava tanto empolgada quanto receosa para falar, estava atropelando as palavras.
- Eu sou Atalanta. – Lembrei o nome da moça agora: Vanessa Atalanta, mas não se espante se eu voltar a chamá-la de garota do vestido branco, sou péssima com nomes.
- Mais importante que falar sobre mim, preciso falar sobre os planos futuros da organização, vejam só isso - E então ela tirou do compartimento auxiliar da cotoveleira o importantíssimo código 11, e o Perseu olhou aquilo com uma cara de que já tinha o visto em algum lugar. O Perseu era estudioso dos artefatos secretos das pesquisas abandonadas de Euphenstein, então ele sempre sabia muito das coisas. Como era eu que estava encarregada de procurar a comida, enquanto que eles preparavam o fogo e os acompanhantes, eu não pude ficar para ouvir a utilidade da camerazinha branca naquele momento. E pra falar a verdade eu nem queria mesmo. Acho tão chato quando o Perseu e o Carlinho começam a conversar em linguagem técnica... Ninguém merece.
Enfim, dali eu saí para caçar aves, enquanto eles ficaram ouvindo a históriada garota. Creio que as aves de Kebebassa eram chamadas pelos moradores das épocas antigas de graúnas. Eram passarinhos pretos e pequenos que ficavam perambulando por ali em Kebebassa. Sua carne era até que boa, mas se tornava enjoativa quando se começava a comer muito dela todo dia.
Caçar era relativamente fácil com nossos equipamentos conseguidos, é claro, honesta e polidamente com os oficiais da OSSP, pois os compartimentos superiores da armadura, que ficavam rente aos ombros tinham balas que também eram atraídas por células de sistemas nervosos. Elas eram especialmente feitas para caçar animais ou coisas do tipo, pois assim como as balas das armas velhas, não iriam conseguir atingir um corpo humano, lógico, a não ser que estivessem muito perto.
Logo consegui capturar algumas graúnas e quando voltei, estavam de pé em volta do buraco Perseu e Atalanta, e Perseu ao me ver já gritou:
- Até que enfim! Já pegue isto e corra para o setor 74, mas vá pela estrada de terra,aquela que começa na parte baixa da cidade, sabe? – Disse Perseu, enquanto me entregava a máquina branca da Atalanta.
- Claro, até mesmo porque já comemos e sei exatamente tudo o que está acontecendo. Respondi com meu leve tom de ironia usual. – Não íamos todos para lá, juntos, pela entrada principal?
Perseu esboçou um sorriso.
- Ah, então... É que parece que alguns oficiais da OSSP estão atrás da Atalanta e deste aparelho, então pensei em separar as duas coisas e nosso grupo em dois times, para então nos encontrarmos depois, no setor 74, na casa do nosso aliado.
Perseu dizia "aliado nosso", mas na verdade era só ele que o tinha visto até agora.
- Atalanta, esta é a Sarisa, Sarisa, Atalanta. – disse Perseu apontando-nos com os braços, pois percebeu que ainda não tínhamos sido apresentadas.
- Você veio do centro? – perguntei. O centro era onde ficava a organização, mais ou menos no centro de Auriga, entre os setores 229 e 230. De modo que esta pergunta deixava uma deixa para "você fazia parte da organização?".
- Desculpe, eu era uma espécie de cobaia da OSSP e por isso pude ouvir de alguns planos que eles têm para a dominação das terras a leste de Auriga. Assim que tive oportunidade fugi de lá e quando soube que havia uma resistência, vim ao encontro de vocês, desculpe novamente por recorrer a vocês repentinamente desse jeito – disse ela, com a cabeça baixa e seu tom de voz quase desaparecendo. Atalanta parecia menos empolgada e um pouco mais à vontade para falar agora, mas só um pouco mais.
- Bom... Você descobriu que a memorável resistência não completa uma mesa de pôquer. – Brinquei.
- Mas então... Interveio Perseu – como eu falei, alguns oficiais da organização estão vindo para...
- Tá bom, tá bom – interrompi – Me dá isso aqui - E tomei a máquina das mãos dele.
- Nos encontramos na casa do "nosso aliado", então? – Fiz as aspas com as mãos.
Perseu riu.
- Vocês vão gostar dele eu acho.
- E então, os times serão eu e o Carlinho, e vocês dois, pelo jeito?
- Ah! E se por acaso algo acontecer conosco, o que importa é que você tem o código 11. Não deixe a OSSP botar as mãos nele. O Teachmor saberá te explicar o que ele é, e te dirá o que fazer com ele - Teachmor era o nome de nosso aliado secreto, que só Perseu conhecia.
Fiquei sorrindo para ele, esperando uma resposta à minha pergunta ignorada.
- Seu time é você apenas, garota. – Respondeu ele, após uma pausa. – Nós três iremos procurar lutar com a OSSP para ganhar algum tempo.
- Como assim? Cadê o Carlinho? Vocês conseguem lutar contra um batalhão da OSSP? – Perguntei mais para alertá-los da impossibilidade, caso não soubesse. É claro que eles não conseguiam. Ninguém conseguia.
- Então, é que como o código 11 é um aparelho confidencial, eles não podem mandar muitos oficiais para a operação, para não causar estardalhaço, então eles provavelmente vão mandar só um grupinho pequeno, e por isso talvez consigamos dar conta do recado...E o Carlinho está... – e Perseu apontou com a cabeça para uma moitinha do lado de uma das casas.
- Agora vá, antes que eles nos alcancem. – Disse ele enquanto eu olhava na direção apontada, antes que eu dissesse mais alguma coisa.
- Tá. Tchau! – e dali eu saí correndo em direção às escadarias que levavam à parte baixa de Kebebassa.
- Nada vai acontecer com vocês, Pepê! – Gritei quando estava já a uns 20 metros de distância. Perseu acenou, e a partir dali fiquei a cargo de mim mesma, pelo menos por algumas horas.
Nas próximas horas eu fiquei tentando achar a saída do sudeste de Kebebassa, que o Perseu tinha falado. Não era uma tarefa muito fácil, pois os prédios estavam todos desabados, e havia ainda veículos estragados entre outras tralhas que bloqueavam a passagem, era mais ou menos um labirinto. Não posso dizer que foi uma cena muito heróica ter que molhar as pernas naquelas águas imundas, ao andar pela valeta que a chuva formou no trilho do metrô, nem tampouco ter que me arrastar pelos túneis que havia debaixo das casas, construídos para prevenir enchentes, e que fediam de um modo insuportável. O fato de ter que fazer esforço braçal para tirar cimento decomposto do caminho com as próprias mãos para poder atravessar não foi muito mais honroso do que isto. Então acho que não é de muita produtividade citar o que estive fazendo até o momento em que topei com os oficiais da OSSP pela primeira vez.
"Ao menos se eu sentir fome eu tenho algumas graúnas mortas na minha bolsa" lembro de ter pensado. Usei o "se" para tentar disfarçar o fato de que eu não havia comido nada ainda até àquela hora.
"Nada pode dar errado, eles não vão saber que eu sou a Sarisa do evento do setor 69" pensei. Eu estava vestida como uma adolescente normal: Usava um par de botas cor de terra, que agora estavam ainda mais cor de terra, o que evidenciava que passei por Kebebassa. Usava um blaser por cima do vestidinho, ambos amarelos, que combinavam com a minha mochila de oncinha, e uma pulseira e colar de bolinhas – rosas. Eu adoro pulseiras rosas. Eu usava um corte de cabelo curto, se bem que já estava começando a ficar comprido de novo, e usava um arquinho para segurar a franja. E assim como Atalanta, penso que transmitia um ar de inocência juvenil pelo meu rosto.E não teria sido percebida não fosse um pequeno último detalhe que eu estava usando e que tanto me acostumei a usar que acabei esquecendo: eu tinha um modelo Ephens OE2B velho preso às minhas costas, uma espada leve, cuja tubulação ligava apenas ao sistema circulatório. Meu bracelete era também circulatório e expandia o impulso e a aceleração do golpe da minha velha Ephens. Ela tinha ainda um ursinho desenhado no cabo... Bonitinho.
- Lá está! Provavelmente é a Sarisa do evento do setor 69, apreendam ela! – Foi o que eu ouvi quando tinha acabado de avistar a saída sudoeste, a algumas quadras de distância.
Comecei a correr vigorosamente, e quando olhei para trás vi que apenas dois dos quatro peões que acompanhavam Weakbald estavam perto de mim. Se um dia você for confrontar oficiais da OSSP de menor posto, não precisa ter muito medo deles, pois os soldados e recrutas não são nada mais do que moradores de setores aleatoriamente convocados. Na maioria das vezes eles sabem tanto usar a espada quanto sabem ligar um computador ou usar a máquina de Euphenstein, isto é, não sabem.
Então para aproveitar a chance, me virei e vim de encontro a eles, esperando surpreendê-los com um golpe. Modéstia à parte, devido aos treinamentos do Perseu eu sabia manusear a OE2B melhor do que eles usavam aquele modelo de recruta deles. O modelo deles tinha um corte melhor, mas era mais pesado, era uma versão da OPH25 da Atalanta só que designada para um soldado, se chamava OPH21 ou 22, acho. E eles não possuíam braceletes, pois gastar com braceletes para soldados destreinados significava perda idiota de dinheiro para a organização.
Como nem eu nem eles sabíamos usar muito bem a espada, o elemento surpresa era essencial, e era com o que eu contava, pois devido a um implante feito por Perseu, meu bracelete ficava embaixo da pele do braço, rente à epiderme pela parte de trás, de modo que não podia ser visto a olho nu. Doía quando o bracelete funcionava, mas fazer o que? Assim, quando eles achavam que o impulso do meu corte ia ser um, ele era outro. E isso geralmente funcionava para essas lutas pequenas de um golpe só. E não deu outra: no meu primeiro golpe o soldado loiro mais novinho foi ferido no peito, enquanto o outro mais velho, de bigode, pulou para trás, hesitando.
Prossegui com mais um ataque violento, e o soldado bigodudo conseguiu defender o golpe com sua espada, mas a mudança de aceleração causada pelo meu bracelete causou impacto na mão dele, fazendo-o quase largar a espada. Ele instintivamente inclinava a cabeça para trás, enquanto me olhava quase de esguelha. Então desferi ainda mais um golpe, antes que minha espada retornasse por inteiro, para tentar tirar proveito da situação, e ele, acho que vendo que a física não o permitiria se defender com sucesso desta vez , empurrou seu corpo para trás, se jogando para o chão.
- Parem! – O velho Weakbald gritou, de trás, enquanto corria em nossa direção. - Vocês dois! Vão procurar aquela outra vadia! – disse ele, provavelmente percebendo que os soldados destreinados não conseguiriam desvendar o truque do meu bracelete em poucos segundos.
Então Weakbald veio correndo em minha direção sozinho, para tentar me "apreender" ele mesmo. Ele sim tinha sido treinado, e seu equipamento era diferente dos demais. O que significava que não podíamos lutar de igual para igual.
Aí que comecei a correr para valer. Pelo menos agora não tinha que nadar naquela vala imunda e nem tinha que ressecar minhas mãos tirando cimento do caminho, pois já estava perto da saída.
Me lembro de ter corrido por horas. Estava exausta, com fome, e o vento seco e o silêncio monótono do setor 74 estavam me fazendo delirar. Nos primeiros minutos eu consegui tomar uma distância boa de Weakbald (lógico, ele era velho e eu adolescente), e então para tomar proveito de que ele não estava me vendo, resolvi mudar meu ângulo de direção. Provavelmente não devo ter corrido mais que uns vinte minutos, pois eu não praticava muito a corrida, e sei que ficaria morta em pouco tempo mesmo que estivesse com a adrenalina da mais perigosa das situações. Mas para mim pareceram incansáveis horas de corrida monótona, seca e faminta. Eu era uma presa fácil exaustando suas energias até o fim para que o predador finalmente pudesse me alcançar e enfim devorar-me como bem entendesse. Não sei se o pôr do sol chegou mais cedo naquela tarde, mas eu já podia vê-lo quando eu estava correndo, e acho que meu ritmo começou a diminuir, pois quando parei de ofegar um pouco escutei a voz do velho sádico:
- Em nome da justiça de Auriga, ordeno que pare, senhorita.
Como à minha volta não havia mais nada além de montinhos de terra, de modo que não havia para onde correr, aceitei que não poderia mais correr naquele estado. Deveria guardar minhas forças finais para tentar lutar contra o velho brutamontes.
- Ainda não existe justiça – ofeguei – em Auriga. - Estava com as costas ligeiramente inclinadas, com as mãos nos joelhos, tomando fôlego.
- Posso saber onde conseguiu esta "O'irEnhancemen'?" perguntou se referindo á minha OE. O sotaque forçado dele para falar "O'irEnhancemen' " era no mínimo perturbador.
- Encontrei ela numa feira, fincada numa pedra, havia muitas pessoas em volta tentando tirar ela de lá, mas parece que fui só eu que consegui. A feira era perfeitamente legal e nada tinha a ver coma OSSP, claro. – Disse, em tom de ironia, fazendo referência a uma história antiga. Não sei se Weakbald captou a minha ironia.
- Porque me parou? – Emendei descaradamente - Eu estava correndo muito rápido?
- A senhorita acabou de desobedecer a uma ordem direta e atacou dois oficiais da organização que é a responsável pela proteção. Responsável pela sua proteção. Tamanha ingratidão – disse ele aumentando o tom de voz, como se importasse – e ainda por cima me pergunta por que eu parei você?
- Essa proteção inclui enviar soldados armados atrás dos civis? Custei a perceber que eram mesmo soldados. – Parei de ofegar e fiquei na posição de batalha que meu irmão me ensinou. Reta, em base, com a espada na mão direita, apontada meio para baixo, meio erguida.
- Você não engana ninguém,senhorita. Eu sei muito bem quem você é, e sei também como você vai acabar, Sarisa. Disse ele, ligando sua espada barulhenta. Depois que falou meu nome ele não pôde evitar de deixar a boca aberta, falhando em disfarçar uma risada muda, expressando a satisfação por saber que eu era a adolescente envolvida no evento do setor 69.
Sinceramente, como posso descrever o que senti quando ele ligou a espada? Eu fiquei congelada por uns instantes ao ver os seus equipamentos funcionando. Mais tarde eu aprenderia que aquele modelo era único, era um protótipo SAMA9, as tubulações que o capacete do kit tinha ligavam em células de órgãos internos, e necessitavam de informação genética para o funcionamento, assim o usuário deveria ser naturalmente propenso a usar o modelo. As tubulações apareciam nas mais variadas partes do corpo. Quando ele estava com a boca aberta, dava para ver os tubos fincados na gengiva, notava-se silhuetas de tubos que passavam por dentro da pele do pescoço, que davam um ligeiro tom metálico à sua voz. Parece que ele tinha que usar um olho artificial, pois o natural deveria ter sido corroído com as experiências primárias, até que ele estivesse adaptado ao modelo. Os tubos do capacete do kit já faziam parte da cabeça de Weakbald.
Quando Weakbald passeava a espada pelo ar, ela fazia um barulho infernal como se fosse uma furadeira de grande porte, tamanha era a potência de seu corte. A espada tinha pelo menos o dobro do comprimento da OPH25, e o bracelete do velho era um objeto não identificado, que estava fincado violentamente no seu braço, de modo que nunca mais poderia ser retirado, ele estava afundado na carne e suas veias e pele tinham renascido por cima dele. Nojento.
A armadura e auxiliar dorsal eram tão grandes que pareciam um Jet Pack, eram feitos para aguentar o peso incalculável do protótipo. Amarrados aos compartimentos estavam sua insígnia e a capa vermelha da organização. O Weakbald era um monstro.
"Eu fiz besteira" pensei comigo mesma. Deveria ter escondido o código 11 na terra enquanto estava suficientemente longe de Weakbald. Ou até mesmo escondido ele antes, embaixo de uma das casas abandonadas de Kebebassa. Mas ele ainda estava na minha bolsa, e agora Weakbald iria me matar e pegá-lo de mim. Era o fim. Eu não tinha esperança alguma de vencer aquilo numa luta de espadas, então pensei em correr mais um pouco e quando Weakbald não estivesse olhando, esconder a máquina fotográfica da garota de vestido branco, ou quem sabe até destruí-la. Se bem que não sabia para que ela servia, não sabia se a OSSP queria o aparelho destruído ou inteiro.
Eu estava à beira da morte, e ao invés da minha vida passar diante dos meus olhos eu pensava na melhor maneira de morrer ajudando a promissoríssima resistência de adolescentes. Patético.
Voltei a mim quando meu corpo, por instinto, pulou para trás, evitando uma meia-lua de direita que Weakbald desferiu, fazendo um barulho de não sei quantos mil decibéis, com um alcance ridículo. Ele parecia ter tentado me atacar estando a uns 15 metros de distância, e mesmo assim quase me acertou. Me virei e voltei à correr. Precisava tentar sobreviver, não havia tempo para pensar em qual seria o fim da câmera fotográfica de estimação da garota de vestido branco.
Para minha surpresa, dentre os compartimentos exageradamente gordos da armadura de Weakbald, havia mesmo um Jet Pack, e ele usou do impulso deste para pousar na minha frente, forçando-me a parar minha corrida repentinamente. Agora eu não poderia dar meia volta e tentar fugir de novo, pois ele atacaria com um golpe certeiro as minhas costas. Tentei revidar desesperadamente, enquanto ainda recuperava o equilíbrio que tinha perdido por causa de minha parada repentina.
Ele balançou a espada, e o som e o vento tiveram tal efeito psicológico que me fez desistir do ataque no meio deste, e apenas me encolher e fechar os olhos. Nem assim minha vida passou como um flash na minha cabeça. Acho que de certa forma eu sabia que me livraria de algum jeito. Desde que eu conheci Perseu essas coisas sempre aconteciam conosco, e de certa forma sempre nos livrávamos, e por isso acabei ficando mal-acostumada. Por mais que meu destino fosse certo, a morte parecia uma realidade distante para mim.
Por sorte a espada dele acertou a minha, que estava levantada. E minha espada não caiu pois eu a estava segurando com as duas mãos, eu a segurava igual a uma menininha assustada que se agarra junto a seu ursinho. A dor que o impacto causava no meu braço por causa do implante do bracelete era indescritível. Lembro de ter gritado, não pela dor, mas pelo susto.
Então percebendo que a espada dele levava muito mais tempo para se recuperar do balanço do que a minha, consegui por um milagre ignorar minha dor e tentei atacá-lo no meio tempo.
Não pense você que eu analisava a situação calmamente, como uma espadachim profissional, esperando pela minha oportunidade para replicar com bravura o ataque inimigo. Tal escolha era horrivelmente óbvia e se tornava automática após alguns dias de prática lutando com o Perseu e o Carlinho. Estava apenas agindo instintivamente. Na verdade eu estava tentando desesperadamente qualquer coisa, para poder atrasar o meu destino fatal.
Durante o meu ataque ele conseguiu a proesa de voltar com a SAMA9 do balanço, fazer uma conversão, contornar meu braço e desferir outra meia-lua de direita, batendo na minha espada. O impacto jogou minha OE2B velha longe, e me jogou para trás. Caí na lama, e rasguei meu vestido no bumbum. O conjunto dos sonidos da minha espada batendo na terra, a dele cortando o vento e de meu vestido rasgando em uníssono ecoa na minha cabeça agora, enquanto lhe conto esta história.
- A senhorita sabe, existe um ditado bem antigo, de antes da época de Mevegane, que diz assim: "A justiça tarda, mas não falha." – disse ele com aquele ar de sábio característico que todo senhor de idade acha que passa quando cita ditados. Ele provavelmente se referia à justiça distorcida que a organização de exploradores espalhava.Weakbald trazia agora a vitória certa em seus olhos. Ou pelo menos em seu olho bom.
Se o ditado ancião dizia assim mesmo não sei, mas se for, quem inventou sabia do que estava falando, pois foi ali que a justiça apareceu. Nós dois ouvimos os passos dela se aproximando cada vez mais até parar num montinho de terra atrás de Weakbald. Ela estava na minha frente de modo que me tampava o avermelhado pôr do sol no horizonte. O sol refletia em seus cabelos dourados, que esvoaçavam com o vento. Seus olhos também eram dourados, o que a fazia parecer com um ser celestial, e aliás era disso que eu estava falando no começo.
- A justiça chegou agora, Hercules. A sua justiça. – disse ela, continuando a sua primeira frase que eu não tinha ouvido não só pelo eco em minha cabeça, como também pelo encanto que a cena me proporcionava.
A espada dela era de um modelo pior que o OPH21, era uma SB, uma das primeiras espadas a serem inventadas com o intuito de substituir as inúteis armas de fogo da antiguidade. Mas o tom dela mostrava tamanha confidência, que mesmo jogada na lama, com minha espada a 5 metros de distância, vendo o monstro do Weakbald revestido com a tecnologia de ponta da OSSP na minha frente, tinha certeza de que estava salva agora. A capa rasgada da organização que a Vi usava simbolizava o remorso e repugnância que um ex-oficial revolucionário sentia por ter trabalhado para aquele bando de lobos, suprimindo os setores em prol de uma minoria corrupta.
O tom angelical e confidente da sua sentença não causou só efeito em mim, dava pra ver também uma mudança de expressão no rosto de Weakbald.
- Corona! - gritou o senhor de idade, com uma perceptível alteração no tom de voz. Ele já devia conhecer ela de algum lugar, até mesmo porque tal como ele, ela ainda trajava a capa da organização.
Ele não titubeou, rapidamente deu um impulso com seu Jet Pack em direção a ela, enquanto desferia um golpe diagonal que eu nunca tinha visto, que provavelmente visava maximizar a área de corte, forçando o oponente a efetuar uma defesa sólida.
A Vi desviou aquilo com apenas um movimento de uma mão... A esquerda. Era onde ela carregava a espada inicialmente. Girou a mão noventa graus, de modo que a espada se inclinou na posição certa para parar o golpe. Seu pequeno movimento passava uma impressão de descaso para com o estilo de luta agressivo de Weakbald.
Na próxima troca de golpes, o líder da operação apostou em executar mais ou menos o mesmo movimento, só que dessa vez segurou a espada com as duas mãos, para tirar proveito da força exuberantemente maior da SAMA9.
A Vi deveria ter sido uma estudante de anatomia na sua vida passada, pois ela sabia exatamente onde golpear Weakbald para danificar as conexões de seus sistemas internos com seus equipamentos. O golpe de Weakbald podia maximizar a área da corte, mas o fazia em relação a como o alvo estava posicionado no início do movimento. Para esquivar-se, ela apenas moveu seu corpo, ficando de lado enquanto esticou o braço e deu um pequeno impulso com a espada, tocando o compartimento auxiliar do braço de Weakbald de um modo que pareceu ser de leve.
Mas não pareceu igualmente de leve para o líder da operação. Pois ele urrou de dor e largou a espada. Ela deve ter pegado ele num nervo essencial para o funcionamento dos equipamentos, ou algo do tipo. Ela continuava intacta, assim como a sua expressão, enquanto a moral dele diminuía cada vez mais. Ao ser empurrado para trás com o impacto, e ter a espada derrubada, Weakbald apressou-se em ligar seu bracelete. Era por ocasiões desse tipo que os tubos de compatibilidade e funcionamento não eram ligados da espada ao capacete, ou ao corpo, no caso de Weakbald. Se fosse deste modo, a luta acabava se a espada caísse. Mas com os tubos fincados em lugares mais estáveis, o usuário poderia optar por tentar recuperar a espada e prosseguir lutando.
"O bracelete não vai adiantar se ela não deixar ele pegar a espada" pensei, e nisso ele fez uma finta, fingindo que ia pegar a espada no chão, e ela, como era de se esperar, aproximou-se para impedi-lo. Mas quando ela estava suficientemente perto, ao invés de prosseguir a pegar a espada, ele deu um pulo e a golpeou com o braço a seco mesmo, com o braço em que usava o bracelete fincado na carne.
Apesar de ter levado um soco a seco e estar de armadura, a Vi foi empurrada violentamente para trás, se desequilibrando com o impacto, assim como se tivesse levado um golpe de uma OE2, ou parecido! E o velho aproveitou esta chance para recuperar sua arma caída. A mão de Weakbald estava sangrando. Ele tinha dado um soco seco na armadura dela, e ela que tinha sido empurrada. Estranho.
Sei o que você deve estar pensando. Reconheço que deveria ter me levantado e ajudado a Vi, mas acontece que eu estava débil, estava tonta, cansada, perecendo de exaustão e fome, e psicologicamente danificada. Não me ocorreu outra escolha plausível no momento a não ser ficar olhando a luta dos dois.
A Vi me olhou calmamente, com um ar de caridade. Como se tivesse percebido que eu não iria ajudá-la e dito "não se preocupe, Sarisa, descanse enquanto eu cuido disso", então Weakbald,aproveitando sua distração, desferiu a sua meia-lua destra preferida, provocando o caos característico da SAMA9. Desta vez o impacto a jogou para longe, ela teve que dar umas três passadas para parar o impacto. Pelo visto aquele bracelete abrilhantava a força do golpe.
Nem por isso ela perdeu a sua expressão angelical. Fitou os movimentos de Weakbald como se agora soubesse o que fazer para vencê-lo. A próxima troca de golpes foi espetacular:Weakbald deu um impulso de Jet Pack com uma espécie de "in quartata" (movimento em que se esconde a linha de quarta, usado usualmente para contra-ataque), mas atacando com o ombro oposto, o qual tinha o compartimento propositalmente pontudo para este fim. Desta forma ele assegurava acertar o adversário. Mas ela conseguiu pular o ataque e desviá-lo por cima, aproveitando-se da sua posição elevada e do curvamento que Weakbald fez para desferir o seu golpe, e vendo isso, o velho cerrou os dentes e apressou-se a cavar transversalmente, calculando para que seu golpe a acertasse quando ela estivesse caindo.
A ex-oficial conseguiu perceber sua intenção em uma fração de segundo e inclinou o corpo no ar, de modo a evitar que a transversal pegasse em suas pernas, deixando-se ser atacada no compartimento do tronco da armadura ao invés disso, apostando num golpe só. E ela tinha que acertar este golpe, pois não voltaria ao chão de pé, estando naquela posição. Lembro de meu coração estar pulando naquela hora, se algo desse errado...
O movimento que ela fez com a SB começou num ângulo que Weakbald desviou, mas mudou bruscamente no ar, e volveu ao braço de Weakbald, arrancando um pedaço de carne deste junto com um compartimento de sua armadura, isto fez com que ele, mais uma vez, largasse a sua espada.
A fatia não tinha sido das mais superficiais, na verdade foi uma lasca grande. Dava para ver as tubulações e até mesmo os chips de dentro do braço do idoso, o velho abria a boca mas não conseguia emitir algum som, tamanha era a sua dor. Eu podia sentir a dor dele dali.
Meu anjo da guarda, ao aterrissar, simplesmente levantou-se, pegou sua espada e a apontou para Weakbald, que perecia no chão, agora partilhando de minha situação: Ele também estava caído na lama, com uma ponta de espada ameaçando dar cabo em sua vida.
- E agora, você vai me matar, Corona? – disse ele. – Me matar depois de tudo que fizemos por você?
Engraçado como são as pessoas. Quando ele estava ganhando de mim com facilidade, Weakbald era todo risos, citava ditados, e seu semblante era de vitória certa. Agora que ele estava numa posição precária, seu tom era de desespero. Divertido.
- Podemos negociar... SeHercules me der essa espada e armadura.
- Idiota, você não vai conseguir fazer o modelo funcionar sem a compatibilidade orgânica.
Ele se referia à informação genética dele mesmo, que era necessária para o funcionamento da SAMA9.
A Vi sorriu.
- Não me force a tomar também este equipamento, Hercules. – Respondeu.
O velho, percebendo que era melhor aceitar as condições e sair dali inteiro, assim o fez.
- Você está ferrada! Todos os batalhões da OSSP virão atrás de você. Sabe disso não é?
Isso com certeza aconteceria, pois os oficiais da OSSP não podem abandonar o posto com vida, pois eles podem vazar as informações importantes.
- Ainda dá tempo de voltar, Corona. Acabe com essa vagabunda e eu não vou falar que você fez essa merda.
A garota de cabelos dourados apenas continuou olhando para ele, com as duas espadas nas mãos.
Ele então saiu chutando a terra do chão, com o rabo entre as pernas.
- Obrigada... – disse eu, sem saber exatamente o que dizer.
Ela sorriu para mim.
- Sarisa, Né? Perseu espera no local onde vocês conheceram a Atalanta. Vamos? E me estendeu a mão, para me ajudar a levantar do brejinho.
Começamos então a nos dirigir para lá. Eu tinha várias perguntas para fazer: Quem era ela? Seria uma ex-líder de batalhão? Porque ela quis abandonar a organização? Estaria ela segura com isso? Porque ela me ajudou? Porque estava ajudando a gente? Mas antes que eu dissesse qualquer coisa, foi ela quem começou a falar:
- Estou com fome, e Sarisa também está? Parece tão cansada. Já comeu alguma coisa?
A simpática voz dela me apagava qualquer vontade de iniciar um interrogatório.
- Não... – meu estômago roncou. Não tinha comido nada o dia todo.
- Pena que não tenho nada para comer aqui... – Disse ela desapontada.
- Eu tenho algumas aves mortas... – Abri a bolsa, mas as aves estavam num estado péssimo, ensopadas em lama. Acho que a bolsa deve ter rasgado e algumas aves até não estavam mais lá. Não sei se a bolsa recebeu um golpe de espada ou isso aconteceu enquanto eu me rastejava nas sarjetas de Kebebassa. Mas a comida estava agora enlameada, as tripas das aves escorriam vazando da mochila, e fediam aos esgotos de Kebebassa.
Ela me olhou com uma cara de "Não vamos comer isso, Né?" Então nós duas olhamos ao mesmo tempo para a lasca do braço de Weakbald que estava fresca no chão.
Dependendo de em que época você está lendo isso, talvez ache menos incomum que optássemos pelas aves ao invés de carne humana, mas durante a dominação militar dos setores a antropofagia era até que normal. As pessoas não tinham muitas condições, entende?
Sentamos numa pedra, e a garota começou a usar o lança-chamas do compartimento do pulso para aquecer a carne.
- Errmm... Como é seu nome? Perguntei a ela.
- Na verdade... Não lembro de muita coisa. Acordei faz uma semana, e me disseram que eu era Coronel da organização. Chamavam-me de Corona lá.
- Você tem amnésia? – Perguntei, surpresa.
Ela apenas olhou para o chão, dando a entender que sim. Então, percebendo seu desconforto, apressei-me em trocar de assunto:
- Mas é melhor inventarmos um outro nome para você, para a sua localização não ser espalhada por aí não é?
- Perseu já fez um.
- É bem a cara dele. - Respondi num tom alegre. – Qual?
- Virtude.
Isso fazia bem mesmo o estilo do Perseu. Dar um adjetivo como nome a uma pessoa, sem se preocupar se isso soava bem ou se não.
- Ficou bom? – Ela indagou.
- Por quê? Já está assada? Deixe-me experimentar.
- Não... Perguntei se ficou bom esse nome – Respondeu ela, entre risos.
- Sim. Ficou bonito – Menti.
Virtude. Mais tarde eu perceberia que não podia haver adjetivo melhor que a descrevesse. Ela era uma coleção de todas as virtudes possíveis. Uma garota sensível, compreensiva e como eu, amante da justiça. Seu coração, ao captar os menores sentimentos negativos nas pessoas, a movia a tomar alguma providência, na esperança que esses sentimentos se esvaíssem. E ao mesmo tempo seu espírito era de um vigor inigualável, que a permitia manter a calma nas situações delicadas, assim como tomar as mais difíceis decisões de forma excelente, como nenhum mais de nós era capaz de fazer. E essas perícias todas que levariam a Virtude a tomar o posto de líder do Perseu no nosso grupo mais adiante.
- Posso te chamar de Vi? – Perguntei.
Ela deu um risinho.
- Pode me chamar como quiser.
Após termos comido, nós duas começamos a voltar para a parte de cima de Kebebassa. Em um dado momento lembro de ela ter perguntado:
- Sarisa está com ele aí?
- O que?
- O código 11.
- A câmera da garota, aquela que não funciona? – Disse eu, esperando uma espécie de aprovação para minha comparação infame.
Virtude ficou quieta um instante, e com uma expressão mais séria, após mais alguns passos, ela começou:
- Parece que a organização conseguiu um avanço nos modelos de braceletes que usam a informação genética. Com as amostras recolhidas das pessoas na formação de identidade eles acham que estão conseguindo criar réplicas daqueles braceletes do tipo que o alto escalão dos batalhões usa. - A formação de identidade era o dia em que os pais levavam os filhos recém-nascidos ao centro para terem os chips protetores implantados, aqueles que dentre outras serventias podiam desviar os projéteis, conforme eu já havia comentado. Nesse dia os bebês também tinham as amostras genéticas recolhidas, e recebiam o cartão identificador, que serviam para ajudar a organização no controle de infratores e coisas do tipo.
Virtude prosseguiu, enquanto andávamos, diminuindo ligeiramente nossa marcha:
- Mas tudo está em fase de teste ainda, então eles estão buscando algumas das informações antigas, inclusive algumas amostras das que já foram extintas, para tentar prosseguir com a experiência.
Eu estava mais prestando atenção no tom de voz dela do que ouvindo a história.
- E tem algumas amostras que o Guolegre decretou que são essenciais para o desenvolvimento...
Guolegre era o cabeça da organização, o posto máximo, o chefe supremo. Logo abaixo dele tinham também outros dois figurões: O ministro Stout, e o conselheiro Caragrasta.
- Bem que eu desconfiei que já tinha visto dessas maquininhas antes. Informações genéticas. Eles estão atrás dessa aqui?
- Aham.
- De quem é?
- Adivinha.
- Mevegane? – Chutei.
- Aham. – Disse a Vi, franzindo as sobrancelhas.
Parei repentinamente.
Se existe alguém que era responsável pelo massacre do Horologium, esse alguém era Mevegane. Eu não cheguei a conhecer Mevegane pessoalmente, mas ouvia falar dele nas aulas de história. Era um ser irredimível. Muito astuto, talvez o mais astuto da história. Foram poucos os líderes de movimentos idiotas que conseguiram mover frações do povo de modo a causar algum estrago significativo em Auriga, e dentre eles, provavelmente Mevegane foi o que causou mais estrago. Ainda bem que ele já não estava mais entre nós.
- Tá, mas como eles pretendem fazer alguém conectar o bracelete com um modelo? Vão ressuscitar os mortos agora? – Indaguei sadicamente, esperando que essa tecnologia ainda não existisse.
Virtude deu de ombros.
- Não sei.
- Então quer dizer que o código 11 que está na minha oncinha é na verdade...
- Sim, o DNA de Mevegane.
A Vi ficou mais séria após ter me dito aquilo, acho que ela já sabia a que par estavam as pesquisas da OSSP sobre Mevegane naquele momento, mas não "achei" isto na hora, então acreditei no "não sei" dela. Naquela época eu pensava que as armas baseadas na informação genética eram peças enclausuradas em fase de teste, nem me passava pela cabeça que a organização já sabia fazê-las funcionar normalmente.
Virtude. Ela havia acordado há pouco mais de uma semana, e neste pequeno tempo tinha já descoberto sobre pesquisas confidenciais da OSSP, tinha feito contato com Teachmor, tinha encontrado e se juntado à facção causadora do incidente do setor 69, tinha desviado o destino de equipamentos importantes da OSSP para que Teachmor pudesse estudá-los depois. (História que talvez valha a pena contar em outro instante), tinha recuperado o DNA de Mevegane e feito a operação de Weakbald falhar, e já tinha em mente um plano para impedir a organização de completar sua pesquisa imoral. Como ela conseguia isso?
Nosso grupo agora contava com cinco pessoas: Eu, a garota do vestido branco, o Perseu, o Carlinho e a Vi. Mas iríamos descobrir que a Vi contava por pelo menos mais umas mil. Quem sabe nós teríamos alguma chance?
Nas semanas seguintes a organização não ficou parada, assim como o velho tinha falado, iríamos sofrer vários ataques, eles viriam para tomar a informação de nossas mãos, e viriam atrás também da cabeça da oficial traidora de cabelos dourados. Mas a história deste período contarei em outra oportunidade.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro