Operação Orfanato
OPERAÇÂO ORFANATO
Narrado por: Virtude
É estranho pensar em escrever uma história. Eu, escrever uma história. Para se ter uma idéia da ironia, eu nem sei por que comecei a trabalhar na organização, ou melhor dizendo, não me lembro o porque. Minha memória boa é curta, eu lembro exatamente bem dos acontecimentos de até uma semana atrás. Antes disso, a vida parece-me como um passado frio e distante. Provavelmente é meu coração prevalecendo sobre minha razão, fazendo-me a gentileza de apagar os maus momentos de minha cabeça. E é justamente para forçar-me lembrar os momentos de agora em diante que começarei a escrever os acontecimentos importantes da minha vida, como este. De fato, penso que este foi um dia importante da minha vida.
Hoje posso dizer que minha rotina deu uma guinada razoável, se for colocar em poucas palavras, eu abandonei tudo o que tinha e virei fugitiva. Não parece plausível para uma pessoa normal. Mas como a última coisa que eu sou é normal, eu fiz isso sem conter nenhum ressentimento.
Hoje acordei, e como faço desde que me lembro, fui até o serviço. Fui até o orfanato.
O orfanato fica em algum lugar entre os setores 74 e 75, se for localizar no mapa. Mas não exatamente no meio deles. Ele fica numa pequena península, praticamente ao norte do setor 74, mas para se chegar à ele por terra deve-se atravessar ou um desses setores ou o outro. De modo que o termo "entre eles" é neste sentido. O orfanato apesar de estar na ponta da península, não tem vista para o mar, porque o mar é barrado por um cercadinho de montanhas bem casmurras que ousaram ficar ali na ponta, monopolizando o mar só para elas.
A unidade é uma estrutura larga e retangular, mas com apenas dois andares de altura. Um sanduíchezinho achatado. É bonito por fora, parecendo um orfanato de classe e bem cuidado, com as paredes cuidadosamente pintadas de branco e bem conservadas, e por dentro é no puro cimento, tosco e mal iluminado. Carece de janelas, e abriga guardas armados por toda a parte.
O nome "orfanato" é na verdade um disfarce, que passa a impressão que a unidade é um tipo de abrigo, onde a organização bondosamente pega crianças órfãs dos setores para criar, e em parte até que isto é verdade. Mas as crianças que chegam lá por indicação do governo, mais do que receber os cuidados devidos, ficam sujeitas a experiências, na maioria das vezes perigosas, que podem resultar em danos irreversíveis. Essas experiências são em sua maioria implantes de braceletes, espadas de compatibilidade e coisas do tipo. Em humanos não costuma dar certo, mas quando dá, nasce um herói de guerra. Quando não dá, a desventurada criança fica deficiente pelo resto da vida.
Não sei exatamente o que eu pensava sobre isto nos outros dias da minha apagada existência, mas raciocinando agora não parece coisa que um ser humano faça. Imagine só: Experimentos irreversíveis com crianças?
As crianças cobaias não são autorizadas a sair do orfanato. Uma vez que elas chegam lá, elas ficam lá até crescerem e se tornarem adultas. Não se pode visitá-las, não se pode entrar em contato com elas. Isso faz parte do contrato. Só quando adultas que as crianças podem sair de lá, mas são poucas que conseguem. Quando elas conseguem, elas vão trabalhar na OSSP, pois têm cargo garantido. A organização fornece tais cargos para que elas não saiam contando o que acontece com elas no orfanato. A lei da OSSP é a lei do silêncio.
Quem sabe o que acontece com as crianças que resolvem ignorar a proposta e se aventurar nos setores após ter saído do orfanato, aos dezoito. Imagino que haja buscas ilegais da parte da OSSP?
Embora escrevendo desta forma eu passe a impressão de que o orfanato é um lugar assustador, e ele é mesmo, infelizmente é lá que eu trabalho... Quer dizer, era lá que eu trabalhava até hoje. Eu era líder de esquadrão, mas como estamos em tempos de paz, só resta aos militares tomar conta de unidades secretas tais como esta, e este era meu dever naquele recinto. Liderar um esquadrão de segurança.
O trabalho dos guardas de fora é não deixar ninguém não relacionado à organização entrar, e o nosso trabalho lá dentro era não deixar ninguém relacionado sair.
O principal dos laboratórios da organização não fica ali no orfanato, mas tem um ali que é até relativamente famoso, conhecido por seus aparelhos direcionados à pesquisa de compatibilidade. E vez ou outra um item de realçada importância vem parar naquele laboratório. E era o caso de hoje. Eu, como líder de esquadrão, havia recebido a notícia da chegada de precioso objeto de estudo, a entrega tinha sido realizada de manhã, e dado isto, eu havia sido orientada a fortalecer a guarda naquele dia. Mas não me disseram o que era que ia ser estudado. Sempre assim, me colocam de fora dos acontecimentos.
Lá por uma hora da tarde, a minha cabeça estava zanzando de novo, e quando isto acontece, eu sinto a necessidade de me sentar em qualquer lugar que possa. Como meu posto era no corredor, deslizei meu corpo sobre a parede até cair no chão, sentada. A queda pareceu mais dura e não tanto proposital quanto realmente foi.
- Tenente? A senhora está bem? – Eu ouvia lá de longe, mas não reconhecia a voz, não absorvia a informação, pensava que eram os homens falando entre eles.
- Tenente? – A voz foi se aproximando, chegando mais perto. Estaria o tenente do meu lado por acaso? Aquela voz me perturbava, eu queria ficar no silêncio.
- Tenente? – E então vi um soldado da organização do meu lado, com um semblante preocupado. Então voltei a raciocinar. A tenente era eu, e a voz dirigia-se à mim.
Fiz um sinal com a mão, para ele me deixar em paz. Era um dos outros soldados que tinham que guardar aquele corredor no mesmo horário, de modo que era colega de trabalho. Sua alcunha era "Polaco". Um soldado não exatamente promissor em sua profissão, mas um rapaz esforçado, fiel e muito honesto. Ele era loiro e branquelo, com sardas no rosto. Seus dentes sobressaíam bastante quando sorria, assim chamavam ele de dentinho, coitado. Polaco sabia fazer até que bem o trabalho de segurança se nada de anormal acontecesse, mas não estaria verdadeiramente preparado se fosse o caso de ele ter que arcar com um imprevisto, e efetuar uma operação mais perigosa.
Eu ainda estava encostada, e minha cabeça ainda estava zanzando, e quando a minha cabeça roda desse jeito eu sinto uma sensação esquisita. Passam cenas na minha cabeça, cenas desconexas, dentre as quais eu consigo na maioria das vezes perceber um rosto conhecido. É uma sensação de saber o que está acontecendo em outro lugar. Às vezes são apenas memórias, às vezes isso é um dom que me permite saber o que outra pessoa está fazendo, às vezes eu simplesmente vejo o que alguém virá a fazer, como se estivesse bisbilhotando o futuro... Sei também que quando isto acontece, quer dizer que logo virei a esquecer de um bom pedaço de minha vida novamente, é um presságio de outra perda de memória recente, e por isso tenho que escrever isto rápido, antes que seja esse o caso.
Fechei os olhos, e dentro da minha cabeça enxerguei uma moça correndo. Uma moça de branco, a qual segurava um aparelho na mão. Estava correndo em um galpão, que carecia de iluminação. Reconheci o lugar, ficava no térreo da unidade na qual eu trabalhava.
É uma sensação um tanto difícil de explicar, mas acredite, quando sinto isso, é como se algo dentro de mim esteja falando comigo. Não sei colocar em palavras direito... Eu não ouço vozes nem nada do tipo, mas é como se eu soubesse o que tenho que fazer a respeito do que acontece na minha visão. Por exemplo, eu nunca tinha visto a garota da minha visão de hoje à tarde, mas eu sabia o que ela estava fazendo, sabia quais eram os seus pensamentos. Eu sabia o que era o aparelho que ela tinha na mão, e no momento em que o vi na minha cabeça eu sabia o que eu tinha que fazer com ele, e eu sabia que ela não sabia. Parece que vem muita informação na minha cabeça em muito pouco tempo.
Tudo o que eu fiz hoje, tudo que irei relatar a partir de agora, posso confessar que fiquei sabendo naquele momento, quando eu estava de cabeça baixa, enquanto o Polaco chegava para me ajudar. É como se um ser interior me dissesse o que eu preciso fazer e eu obedecesse. Prefiro assim, não gosto de ter que pensar nas decisões por mim mesma. Eu sou indecisa. Eu odeio o papel contrário, quando eu tenho que dar ordem a alguém. Não, prefiro eu receber e executar as ordens. Há quem me contradiga, mas eu nasci para ser do povo, e não da burguesia.
"Quatro horas" pensei comigo mesma, ou melhor, repeti com o pensamento que veio em minha cabeça. Às quatro horas eu deveria começar a fazer o que eu vou escrever que fiz em seguida.
Eu sei que é meio estranho você agir conforme dizem os outros "eus" que vêm em sua cabeça, na realidade, muito esquisito. Vários casos de pessoas que foram parar em hospitais psiquiátricos sofreram deste sintoma, mas desde que me lembro tenho feito isso, e parece funcionar perfeitamente para mim. Eu não tenho passado, não me lembro de nada da minha infância. Apenas lembro que eu trabalho ali na OSSP. Lembro o nome de algumas pessoas, de algumas coisas que elas fizeram ontem, ou antes de ontem. E não tenho nenhuma ambição, não sei bem ao certo quais os objetivos da organização, e nem me sinto afetada por eles. Sou apenas uma tenente fazendo meu trabalho sem objetivo ou visão. Por isso quando as coisas dentro de mim me dizem o que tenho que fazer é como se eu tivesse um objetivo por um instante, e como sempre minhas visões acabam estando certas, eu meio que creio nessas outras pessoas da minha cabeça.
Quando faltava uma meia hora para as quatro, eu dirigi-me até o corredor que ligava o nosso até o prédio onde as pobres crianças ficavam, que era o orfanato de verdade. O laboratório ficava do outro lado. A unidade consistia do laboratório, do orfanato que era apenas um pequeno pedaço, e tinha também a caserna, e outros estabelecimentos com fins militares. Entre aquele corredor e o local das crianças tem uma porta grande, de aço, que é bem barulhenta. Feita para as pequenas não passarem, mesmo. E só os guardas têm a chave. Sem contar que tem as outras portas no fim de um corredor e do outro, e nas escadarias. Algumas ficam abertas, outras fechadas, mas tem guardas por toda a parte. E câmeras também.
- Vou ao banheiro – Disse para o Polaco e para o outro rapaz que também ficava ali a partir das duas. Senti a necessidade de me explicar. Na verdade a tenente não deve explicações aos subordinados.
Cheguei até um cruzamento de corredores, que ficava depois de umas escadas. Como esperado, não tinha ninguém ali. Provavelmente os guardas estavam trocando de período ou senão estavam no banheiro mesmo. Digo "como esperado" porque meu ser interior havia previsto isso. Peguei minhas chaves e simplesmente destranquei cada uma das portas, mas as deixei encostadas, para que os guardas não percebessem quando voltassem, pelo menos até as quatro horas. Nem me importei que as câmeras estivessem me monitorando, pois eu sabia que ia sair dali depois de meia hora mesmo, e iria sair dali definitivamente.
Então subi as escadas, andei por um dos corredores, onde no fim tem a porta da qual escrevi mais em cima. Uns guardas me olharam estranho, mas não me perguntaram nada. Fui até o fim do corredor, destranquei a porta de aço. Os guardas me encararam. Então me adentrei na porta. – Se eu entrar eles não vão perguntar por que eu destranquei – Pensei comigo mesma. Então fui até um banheiro lá de dentro do orfanato mesmo, arrumei meu cabelo, e voltei. Mas ao invés de trancar a porta, apenas coloquei a chave na fechadura e fingi que girei a chave, assim ninguém desconfiou. Depois disso voltei para meu posto.
"Mais um pouco" Pensei comigo mesma. Esperei ser chegada a hora, e então o caos começou. Uma barulheira estava vindo do orfanato, as sirenes estavam tocando, e eram guardas correndo para todo lado.
- O que aconteceu? – Indaguei ingenuamente a um dos guardas quando este passou por mim.
- Parece que uma das crianças está fugindo com um artefato do laboratório.
Na verdade ela não era uma criança, era uma recém contratada da OSSP, dessas que saiu do orfanato, uma das poucas em que os experimentos haviam corrido bem. Mas quando ela soube no que consistiam os experimentos abandonou a razão e fez de tudo para impedir. Coitadinha. Ela provavelmente não tinha idéia de como estava reforçada a segurança naquele dia, por causa do item de realçada importância. Sorte dela que pelo menos as portas estavam destrancadas por algum motivo obscuro.
É fácil de adivinhar neste ponto, mas mesmo assim irei confirmar: Eu estava disposta a ajudar a garota a escapar. Ela era a garota do galpão com quem eu tinha "sonhado".
No meio do caos os responsáveis pelas câmeras de segurança provavelmente ainda não haveriam somado dois com dois e concluído que eu estava ajudando a fugitiva, e então certamente dariam a mim a ordem de ir procurá-la: de fato, um cabo do pelotão de Weakbald (Um subtenente que não trabalhava ali na unidade orfanato, mas o estava fazendo naquele dia específico) veio a mim e disse:
- Tenente, o coronel mandou dizer que um foragido está portando um código 11 e deu ordem para que o capturássemos.
- Estou sabendo, cabo – Olhei no seu crachá – Zolnir. Código 11 era uma meiga denominação para artefatos furtados.
- Creio que a tenente precisa saber o que está sendo portado. – Demandei ao cabo Zolnir. Minha face ainda estava inexpressiva, conforme sempre a uso, mas havia posto uma dose de arrogância na minha voz, conforme não gosto de fazer. Mas tal anomalia parece ser necessária para se intimidar os subordinados.
- Apenas um bem de menor importância, tenente. Estamos atrás é da fugitiva. – Zolnir bateu continência e saiu. Aquela foi uma pergunta casual para confirmar se minha visão estava correta. Na realidade eu sabia o que tinha lá dentro. Mas ele disse: "Não estavam atrás do artefato furtado"? Ele era de suma importância. Parecia que a OSSP estava mentindo até mesmo nas pequenas coisas...
Peguei meu rádio, o qual me conectava a todo meu esquadrão, e comecei a dar ordens aos meus soldados para que "o" capturassem. Tomei o cuidado de pronunciar o artigo masculino, para que a garota pudesse vir a enganá-los, se fosse o caso. Tecnicamente não se fazia distinção, pois podia ser que o sexo do foragido ainda não tivesse sido pronunciado, mas mesmo assim dava uma mensagem subliminar ao meu pelotão.
É claro que eu não poderia deixar de dar tal ordem dada a situação. Então assim como no rádio o coronel, o departamento de câmeras e o subtenente Weakbald iam me passando as coordenadas para passar a meus soldados, eu o ia fazendo, e ao mesmo tempo ia tentando achá-la por mim mesma, só que a diferença é que eu sabia onde iria encontrá-la.
Ao chegar ao pátio, eu e mais uns dois guardas avistamos a garota. Os guardas vieram de logo detrás dela, pela mesma porta pela qual ela veio para o pátio, e enquanto eu a cerquei pela frente.
Como disse, a garota era recém contratada. Deveria ter a idade de maioridade. E isto significava que ela havia treinado com a espada desde criança, e que o bracelete que ela carregava era de compatibilidade específica, quer dizer que ela provavelmente era uma espadachim habilidosa. E para completar, ela não estava carregando uma espada qualquer. Era um modelo típico de oficiais superiores, uma OOW44. Uma espada tão pesada, que não havia física que explicasse como ela a estava segurando. Talvez fosse obra do bracelete. Ela não tinha armadura, o que a permitia correr na velocidade usual, coisa que também não deveria acontecer por ela estar carregando a OOW, e isto indicava que não se esperava que dois meros soldados do pelotão do subtenente dessem conta dela. Então falei à eles:
- Podem voltar para dentro. Eu cuido disso.
Os guardas, que estavam apenas com suas OPH22's hesitaram, Mas viraram-se e voltaram porta adentro. Agora era só eu e ela.
Eu estava com meu traje de tenente. Uma armadura vermelha, simbolizando minha importância militar, um modelo OOW39, parecido com o da fugitiva, mas um pouco mais velho, meu capacete além de ter as tubulações necessárias oferecia proteção redobrada, até desnecessária. E estava usando quatro braceletes retiráveis. Dois em cada braço.
Não lembro o que foi que fiz para merecê-la, mas sei que minha fama de lutadora era formidável. E minha fama refletia no rosto da jovem. Ela estava apreensiva, arreliada. Perdera sua confiança que portava enquanto corria dos guardas, e agora segurava a espada com as duas mãos um pouco mais abaixo da cintura e tremia ligeiramente. Tentei quebrar o gelo fazendo uma pergunta:
- Estou curiosa. Como é seu nome? – Na verdade eu sabia já o nome dela também, por causa da visão.
Se tentei quebrar o gelo, não funcionou. Ela empalideceu. Era de se esperar que a oficial comandando o pelotão estivesse irritada. Irritada por apenas uma fugitiva ter enganado seus soldados e ido desde o interior do laboratório até o pátio de entrada. Então deveria fazer a voz soar rancorosa, em tom de grito, vociferar um insulto. Mas eu mantive minha voz calma, para que ela talvez percebesse que eu não estava contra ela. No entanto, não sei se minha voz soou fria demais, mas parece que teve efeito contrário. Deve ter soado que eu estava tão confiante a ponto de pensar que duelar com ela e com bicho-preguiça era a mesma coisa.
Ela então tomou fôlego e veio de encontro a mim, desferindo um golpe com sua espada tal que visava forçar-me a mostrá-la minha velocidade e técnica para defendê-lo. Estava me testando. Ela não usou o poder do bracelete. Pelo visto queria que eu usasse os meus primeiro.
Ela prosseguiu golpeando minha espada com a dela, tornando seu estilo de luta mais agressivo e menos razoável. Ela era habilidosa, mas se fosse para lutar contra a OSSP, iria precisar de umas aulinhas.
Apenas fui desviando seus golpes com minha espada, e não me lembro de ter chegado a usar meus braceletes. Até porque nem queria lutar mesmo.
- Você não sabe o que eles estão tentando fazer! – Gritou ela, com uma expressão de raiva no rosto, enquanto brandia a sua espada.
- Na verdade, Atalanta, eu sei. – O nome dela era Atalanta. Eu tinha aprendido seu nome quando aquele que vive dentro de mim me concedeu a visão. Mas ela não pareceu achar estranho. Provavelmente achava que eu havia ouvido seu nome no rádio.
- Então porque deixa eles continuarem? Sua carreira é tão importante assim? – Enquanto ela fazia aquelas perguntas eu a estava olhando inexpressivamente, como me era de habitual. Não é que seu rosto enfurecido não me comovesse, mas como eu me lembro apenas da minha última semana de vida, eu fico meio que com uma cara de tonta. Na verdade dava uma pena dela. Ela achava que eu estava cansando ela para depois lançar um golpe final. Não havia conseguido encontrar uma abertura que fosse para me golpear, e sabia que não conseguiria. Eu era melhor do que ela. E agora ela estava apelando para o psicológico. Mas eu precisava esperar ela se acalmar para contar a ela qual era a minha real intenção, se o fizesse no meio da luta agressiva, ela iria achar minha revelação sem sentido.
- Vocês militares são todos iguais! Você se esqueceu que um dia já pertenceu aos setores? Que sua família ainda mora lá? Isso não faz diferença para você? – Ela gritava enquanto golpeava irregular e ferozmente com sua espada.
E trocamos mais alguns golpes até que ela cansou. Ela olhou para mim, esperando que eu fosse vir de encontro a ela nesta hora, para dar o golpe mortal, ou atordoá-la, e levá-la para as garras do coronel. Antes eu falei:
- Na verdade, eu quero te ajudar, Atalanta.
A garota ficou confusa. Deve ter achado que eu a estava gozando. Mas eu estava com a espada abaixada, esperando ela tomar fôlego. "O que será que eu estava tramando?" Ela deve ter se perguntado.
- Como assim? – Ela perguntou. Provavelmente queria forçar um descanso para ela enquanto eu me ocupava respondendo.
- Eu também não quero que a pesquisa seja concluída, então vou deixar você sair com o aparelho. – Respondi. Prossegui com meu calmo entonamento:
- Aonde você pretende levar esse negócio?
Então ela se colocou em posição de luta novamente, hesitou por um momento, e então respondeu:
- Porque acha que vou confiar em você?
- Não estou, te atacando, estou?
- Você quer descobrir quem são meus contatos, para então me capturar e depois ir atrás deles. – Atalanta franziu o cenho, e pôs-se em uma postura de defesa. Segurava a espada com as duas mãos, um pouco mais abaixo do quadril, com isso se eu a atacasse ela poderia rapidamente defender-se. Contudo tal posição não é indicada para quem deseja atacar em seguida.
Então ela saltou pelo meu lado, enquanto golpeava com a espada à sua frente, de modo a me impedir de agarrá-la ou golpeá-la ou qualquer coisa que fosse durante o salto. Isto a permitiu ficar de frente para a guarita, e de costas para mim, e a permitiu ficar um pouco mais perto da saída do que eu. Havia feito isto para me contornar e tentar escapar enquanto eu estava com a espada abaixada.
Ela aproveitou que eu não havia revidado e nem estava fazendo nada, e começou a correr em direção à guarita.
- Eu não vou te dizer! – Ela gritou. Deve ter esperado que eu fosse atrás dela. Mas eu simplesmente girei a cabeça e fiquei a olhando dali. Dei mais uns segundos até ela sumir de minha vista e só então anunciei no rádio que ela havia me escapado. A destemida tenente Corona havia perdido para a foragida na batalha e havia a deixado escapar. Agora eu esperava que Atalanta pudesse escapar dos guardas da guarita e pular o muro em segurança. Esperava também que ela se lembrasse de livrar-se de seus equipamentos que estava usando, pois eles eram monitorados via satélite. Mas na minha visão eu a encontrava de novo lá fora sã e salva, então não estava temendo.
Dali a uns poucos minutos estavam reunidos no interior do prédio os dois pelotões que faziam a segurança: o meu e o de Weakbald. O diretor da unidade estava ali também, e o vice-gerente Conway. Estavam discutindo sobre a nossa próxima operação: Como o item que havia sido furtado não era para ser divulgado, não deveríamos fazer muito dele, de modo que deveríamos procurar a foragida apenas em grupos pequenos. E estávamos reunidos ali para decidir como que a operação se realizaria. Em dado momento Conway estava conversando com o diretor, e então Weakbald me cutucou no ombro e reclamou:
- Mas como assim, logo você deixou o foragido escapar? – Ele estava zangado, pois iria ter que iniciar uma operação de busca, sendo que havia sido informado que só teria que fazer uma guarda naquele dia. Isso significava que ele não poderia ir para casa até a foragida ser encontrada ou até a operação ser declarada finalizada.
- Fazer o que? Acontece. – Disse eu com meu tom pouco emocional.
- Mas não tem quase ninguém que vence você numa luta. Ela é tão boa assim? – perguntou ele num tom indignado. E expressou sua indignação levantando uma mão ao ar.
- Tecnicamente, subtenente, ela não me venceu. Apenas forçou uma volta e escapou. Se Atalanta estivesse lutando para me vencer já estaria presa agora. – Fiz essa última frase soar orgulhosa, para mostrar ao subtenente que eu estava um pouco chateada por tê-la deixado fugir.
Não sei dizer se subtenente Weakbald engoliu aquela história, mas se suspeitou de alguma coisa não ousou relatar aos superiores, e se foi esse o caso provavelmente foi porque queria ir para sua unidade o mais rápido possível.
No final ficou decidido que iríamos atrás de Atalanta em dois grupos de cinco: No primeiro grupo estaria eu, e os quatro melhores soldados de meu pelotão que estivessem ali presentes, e o análogo para o grupo de Weakbald.
Os soldados de Weakbald que estavam ali não eram grande coisa. Estavam apenas com uma armadura superficial e uma OPH22. Não se mandava os bons soldados para uma operação de proteção, então apenas os quatro soldados que eu enviasse poderiam ser escolhidos de modo a serem bons de verdade. Mas isso não seria problema, pois era eu quem os escolheria.
Sendo assim, saímos de lá apenas nós dez. Na entrada, os dois guardas da guarita encontravam-se abatidos, e a armadura e espada de um deles havia sido retirada. No chão também estavam os equipamentos que a garota estava usando. Isto indicava que não poderíamos segui-la via satélite, pois diferente dos equipamentos de nível mais alto, os dos guardas de guarita não eram monitorados. Se eu não quisesse responder por meus crimes eu deveria fazer o mesmo antes que o departamento de câmeras manifestasse qualquer intimação.
Suspeitávamos que Atalanta estivesse se dirigindo para o setor 74, pois aquele era o setor que ficava mais perto, sendo este localizado ao sul – na verdade quase sudoeste – do orfanato. Como já explicitei, nossa unidade ficava na ponta do continente, de modo que era coberta pelo mar dos lados, e por montanhas ao norte. Logo não restava à Atalanta muita opção. Ao sudoeste ficava o setor 74, e se ela resolvesse ir para sudeste, iria parar numa cidade-fantasma chamada Kebebassa.
Cuidar das entradas do setor 74 era fácil: Só havia uma. O setor era cercado por uma linda muralha alta, feita da melhor qualidade de pedra, sendo que o caminho para se contornar o setor sem passar por ele, para se dirigir aos setores 73 ou 72, por exemplo, era tremendamente pequeno. Era basicamente andar na areia fofa da praia. Então se Atalanta entrasse no setor 74, ou seria pela entrada, ou teria que pular a muralha. Como havia máquinas vigias nas muralhas, se fosse a segunda opção ficaríamos sabendo, e se ela resolvesse contornar o setor, também ficaríamos sabendo, e pelo mesmo motivo. Ela seria avistada pelas máquinas. Logo restava apenas um lugar para procurarmos: A entrada. Resolvemos então que meu grupo cuidaria de apresentar a descrição da foragida para os guardas da entrada do setor 74, para verificar se ela havia se adentrado, e se fosse o caso, perguntaríamos aos residentes onde ela estava.
Já a parte de Weakbald era mais difícil: Ele iria ter que cuidar do lado sudeste: Iria procurar por Kebebassa, pois poderia se que Atalanta tivesse se dirigido à Kebebassa para então ir aos setores de número mais alto. Kebebassa estava numa configuração péssima. Prédios desabados bloqueavam várias passagens. Então Weakbald e seus quatro companheiros iriam começar a ir para a entrada mais óbvia desde já, e no caminho receberiam informações dos satélites da OSSP para indicar-lhes as possíveis entradas.
Como já mencionei, meu coração havia me mostrado que eu iria encontrar Atalanta em Kebebassa, de modo que foi justamente por isso que fiz a escolha de não ir para lá. Permita-me explicar-lhe com mais carinho: Se eu tivesse cuidado da área sudeste, provavelmente Weakbald após descobrir minha farsa, o que não demoraria muito, viria de encontro à sudeste, e eu teria que me preocupar com um ataque por trás. Ao invés disso, deixei que ele fosse antes para o destino correto. Deste modo, antes que as unidades fossem avisadas de minha traição, eu poderia abater meus desavisados companheiros e começar a planejar eu mesma um ataque traseiro à Weakbald, para ganhar eu a vantagem.
Foi exatamente assim que procedi. Após nos separarmos esperei alguns minutos me dirigindo para o lado errado, até dar ao subtenente espaço suficiente para que ele não mais me avistasse ou ouvisse se eu começasse à segui-lo. E então falei, dirigindo minha cabeça ligeiramente para Polaco, que estava do meu lado:
- Vocês vão se dirigindo à entrada 74, eu vou pelo canto inferior – Disse eu, apontando para a praia, a qual contornaria o setor quando chegássemos neste. Polaco e os outros guardas me fizeram uma careta de estranhamento.
- Há mais um lugar que precisa ser checado –Justifiquei.
Sim, eu havia escolhido Polaco como um de meus melhores soldados. Estava disposta a abandonar a organização. Achaste mesmo que eu pegaria os quatro melhores? Os que menos correm eram-me na situação mais adequados.
Outro soldado mais gordinho começou:
- Mas, tenente, ficou decidido que... – Não deixei ele terminar a frase. Antes estiquei meu punho e dei-lhe um inesperado soco em cheio na face, no que este caiu no chão. O soco com o bracelete era muito mais forte que o usual. Sem contar que minhas luvas eram de ferro.
Os três guardas restantes demoraram-se a entender o que estava acontecendo, e então quando eles desembainharam suas espadas, isto é, as retiraram do suporte das costas, pois elas não tinham bainha, já era tarde demais.
Poucas trocas de golpes e os guardas estavam abatidos na areia. Senti o vento calmo soprar por aquela área deserta. Fiquei de pé ali por mais uns instantes, e então olhei para o desvalido Polaco, deitado ao chão. Retirei sua SB envelhecida, deixei com ele minha armadura e minha OOW39 e confesso que senti um pouco de remorso.
É estranho se livrar de tudo o que você custou a conquistar, por mais que eu me lembre só de cerca de uma semana da minha vida, senti um pouco de agonia. O que seria de mim dali adiante? Eu não tinha ninguém para quem voltar... Só para a garota de branco.
Contudo ao mesmo tempo senti a liberdade. Aquele cenário instigava a liberdade. Não se via nada à sua volta. Apenas terra suja, o céu escuro e amarelado de Auriga. O vento soprava tranquilamente sobre nossas orelhas, e seu sereno sussurro, somado à atmosfera isolada nos inspirava um pouco de confiança para fazer o que viesse à tona. E confesso que ver os guardas da OSSP abatidos enquanto eu estava de pé também me proporcionava uma certa confiança, coitados deles. Rasguei minha capa propositalmente como que em forma de protesto, suspirei, olhei para cima por uns instantes, e pensei: "Agora não tem mais volta, preciso fazer isso."
Só então resolvi começar a perseguir subtenente Weakbald.
Segui a ele e seus companheiros até que eles chegaram à entrada de Kebebassa. Ela era uma cidade da geração anterior, digamos assim. As cidades de cerca de 50 anos atrás, antes de serem vorazmente machucadas pelo Horologium, possuíam prédios em toda a parte, tampando qualquer vestígio de visão dos arredores. Os prédios eram feios, os modelos de carros voadores eram barulhentos, os meios de transporte terrestres o eram ainda mais. E as pistas terrestres muitas vezes eram compostas de dois andares, de modo que o pé da cidade ficava coberto nas sombras. O estado de Kebebassa agora a deixava ainda mais horrorosa. Sem luzes, prédios desabados, veículos estragados por toda a parte. Poças naturais haviam crescido por causa dos acidentes de relevo provocado pelos desabamentos, e a água nas poças não passava a melhor das impressões.
Em Kebebassa o grupo deles necessitava de diminuir o passo, para passar por sob os túneis entulhados, desviar dos veículos tombados, e coisas do tipo. Também eu precisava diminuir meu passo, pois ninguém é de ferro, não é?
Resolvi então desviar da rota deles e ir direto para onde Atalanta e os outros dois garotos da minha visão estavam. Quando senti a dor de cabeça, havia visto dois rapazes na minha visão. Não havia ouvido os nomes deles. Um deles era de médio porte, cabelos escuros e pele clara, possuía uma feição honesta. Dava a impressão de ser um rapaz ao mesmo tempo simples e interessante. Provavelmente deveria ser um visionário, morador de setor. O outro era ainda mais claro e com cabelos ainda mais escuros. E era um pouco mais velho. Mas não muito mais velho, deveria ter o que? Uns quarenta... ambos estavam imundos na minha visão, digo, em questão de vestes. O que sugere que eles estavam viajando juntos há dias, sem se dar o luxo de pausar a jornada e passar em algum setor. Logo suspeitei que pertencessem há uma facção fugitiva. Na minha visão eu conversava com eles, e enquanto o fazia, segurava o código 11 na minha mão. Ou o segurava, ou o outro que estava em meu bolso já naquele momento. Eu carregava um item parecido, um que eu havia pegado do laboratório depois que recebi minha revelação. Mas este não era de igual importância, provavelmente nem seria percebido. Mas como me foi revelado que eu devia pegá-lo, eu o fiz.
Fui indo em direção ao lugar onde eu os encontraria, que ficava mais ou menos perto da entrada de Kebebassa - ou saída, dependendo do ponto de vista. - Fui-me indo para lá, tentando não desacelerar o passo, pois teria que passar um tempo tentando convencer-lhes de que não estava trabalhando para a OSSP antes que o grupo de Weakbald chegasse.
Confesso que estava um pouco receosa. Não saberia eu como enfrentar Atalanta e os dois rapazes. "Espero que eles me aceitem" Pensei.
Quando os avistei, fiquei parada por pelo menos um minuto os observando, ao invés de ir direto de encontro a eles. Se encontravam numa pracinha abandonada com o piso de pedras, a qual ficava em um plano mais alto que as ruas de barro, e eu estava olhando-os de um beco que ficava ali perto, apenas com a ponta da cabeça à mostra, se eles olhassem na minha direção. Eles estavam de pé conversando, e uma fogueira queimava perto deles. A fogueira estava sem comida. A garota e o rapaz jovem estavam discutindo sobre fazer uma emboscada para os soldados da OSSP. Pelo visto eles sabiam que havíamos enviado poucos. A idéia da emboscada deles até que era boa. Os soldados deveriam estar em Kebebassa no momento, e pela lógica pensariam que Atalanta estaria sozinha caminhando em direção à saída para então ir até o setor 75, no entanto eles na verdade haviam entregado o código 11 para outra moça do grupo deles, a qual havia dado meia volta e se dirigido por outro caminho até a entrada, em direção ao setor 74, desta forma despistaria os soldados que estavam ali, e também despistaria o meu grupo, pois este chegaria ao setor 74 adiantado demais, isto é, chegaria se eu não os tivesse abatido. Assim, com este plano, mesmo se falhassem em lutar contra os soldados, não perderiam o código 11.
Mas a menos que os outros dois rapazes fossem melhores que Atalanta com a OPH25, seria difícil derrotar Weakbald naquela situação. O garoto mais jovem estava com uma armadura de soldado do modelo antigo, a qual até resistia uns ataques secos, mas provavelmente não aguentaria ataques com adicionais químicos, e sua espada apesar de ser melhor que a OPH da garota – Uma Ephens DRK. Espada grossa, boa para defesa, e com boa mobilidade – Não seria páreo para aquela motosserra high tech que o Weakbald chamava de espada. A espada do mais velho era ainda pior: Uma SB5. Ganhava da SB3 que eu havia trocado com o simpático soldado gordinho pela minha OOW39, mas enfim... Era ruim mesmo assim. Sorte que os quatro soldados que acompanhavam Weakbald eram especializados em segurança e não em batalha.
Finalmente reuni um pouco de coragem e apareci de fininho. Tive que me segurar para não rir da expressão deles. Os três se assustaram e como posso dizer? Pularam sincronizadamente? Eles não poderiam deixar de notar minha capa rasgada e que havia trocado meus equipamentos de alta categoria por... Uma SB3 usada. Logo com sorte poderiam ter deduzido que eu havia abandonado a organização, o que me pouparia o esforço de ficar explicando.
- É ela! A oficial que estava me perseguindo no orfanato! – Atalanta disse com uma ligeira tremedeira na voz. Os três já desembainharam suas espadas. Eles não conseguiram perceber os detalhes antes de dar chance à desconfiança. Respondi a primeira coisa que veio á minha cabeça:
- O.. Oi?
O garoto mais novo posicionou-se um pouco mais a frente, de modo a proteger os demais.
- Na verdade eu não vim aqui para lutar, sabe... – Disse eu. Não estava carregando a minha SB na mão. Ergui minhas mãos para o alto, de modo a indicar que realmente estava falando a verdade.
- O que é isto, então? Uma trégua? – Perguntou o garoto, ainda em posição de defesa.
- Francamente. Acha que a organização iria querer trégua com menos de meia dúzia de terroristas? E olhe meu estado. Já nem tenho mais o uniforme da organização. – Tive que abandonar minha timidez e usar um tom menos doce para me fazer esclarecer. Acabei apelando para que eles notassem minha capa rasgada, não deveria tê-lo feito, pois assim eles poderiam vir a achar minha troca de lado muito forçada.
Ainda com a dúvida estampada no rosto, os três foram lentamente baixando as armas. Prossegui:
- Eu... Eu vim para ajudar vocês a esconder o código 11. Assim como vocês, não quero que a organização termine a pesquisa. – Disse, com um pouco de acanhamento. Mas então tornei a tentar a psicologia reversa, mudando meu tom de voz para um mais autoritário:
- Mas se não quiserem minha ajuda, tudo bem. Simplesmente vou pegar o código 11 e esconde-lo por mim mesma. – Cruzei meus braços e aguardei por uma resposta. O garoto retrucou, com o ar característico de líder de facção revoltosa:
- Pois eu acho que você quer saber os nossos planos para...
- Para então matá-los e depois ir atrás dos seus outros contatos não é mesmo? – Remedei eu olhando para cima enquanto fazia uma cara de desdém. – Pois é, a Atalanta já mencionou isso... Bom, tenho pelo menos umas três provas de que isto é verdade... Primeiro: Os contatos da Atalanta são vocês, e logo eu já deveria tê-los atacado e não o fiz. Eu sei que você é o Perseu, responsável pelo tumulto causado nos setores 68 e 69, há cerca de semana e meia atrás, e logo não é provável que o líder de vosso grupo seja um morador de um outro setor, pois se assim fosse, não seria Perseu o responsável pelo tumulto, e sim o líder representante. E mesmo se por milagre o pouco provável seja verdade, não há dúvida de que capturar o responsável aqui presente seja de maior valor do que procurar o verdadeiro líder. Pelo menos para uma oficial de médio posto, pois tal captura contaria pontos para uma promoção. Segundo: é verdade que eu poderia ter deixado Atalanta escapar quando a avistei no pátio, justamente pelo motivo que vós estais alegando, mas não poderia ser que eu soubesse de antemão de sua fuga para chegar a deixar as portas interiores abertas, seria?
- Você... Foi você quem abriu as portas? – Perguntou Atalanta. Já estava com a espada encostando no chão.
- Você com certeza fala bastante, oficial. – Disse Perseu enquanto colocava sua espada novamente às suas costas, antes que eu respondesse. Eu na verdade não sabia exatamente que ele era o Perseu dos boatos do setor 68 e 69, boato este que provavelmente valha a pena contar se minha memória permitir, mas aquela descrição era inconfundível. Um rapaz nem alto nem baixo, nem forte nem fraco, pele clara e cabelos escuros, jovem, simples, puro e presunçoso. Sem contar que possuía justamente a DRK e a armadura descritas no arquivo, e só ele compraria briga parecida com a OSSP a troco de nada. Puro chute.
-Ex-oficial. Agora sou uma fugitiva, como vocês.
- Ex-oficial, que seja. Como é seu nome?
- Bom... Me chamavam de Corona lá dentro. – Nem sei se este é realmente meu nome, então sempre hesitava ao responder esta pergunta, creio que pelo tom eles devem ainda mais ter pensado que eu estava contando uma série meticulosa de mentiras, mas nada podia ser feito acerca disto.
- Pois bem, Corona. Como somos um grupo ilegal, se quiséssemos realmente que você entrasse na equipe, deveríamos te chamar por um pseudônimo, ou caso contrário os boatos de seu paradeiro se espalhariam com facilidade.
- Pseudônimo? Parece divertido. – Retruquei, sorrindo. - Escolha um para mim, senhor líder. Meu sorriso que não uso de costume entregava minha ironia na reverência.
- O normal é você escolher o seu próprio pseudônimo. – Disse ele rispidamente.
- Não sou muito boa nessas coisas. Me diga você o seu para eu ter uma base. – Estávamos retrucando-nos fiadamente, e estávamos completamente ignorando os outros dois presentes.
- Meu pseudônimo é Perseu.
Encaramo-nos. Não sabia dizer se isto era verdade ou não, se o fosse era um pseudônimo bem-sucedido. Pois os boatos dos setores 68 e 69 eram sobre Perseu, e referiam-se à ele como se fosse o nome dele, se ele mesmo possuísse um nome, ninguém o sabia.
- Quer saber? Vou chamar Atalanta de Dalila, e irei me referir à você como Virtude.
- Que seja. – Disse eu, exagerando na indiferença. Na verdade eu não havia achado muito comum meu nome para que pudesse enganar as multidões como fazia o dele. Mas enfim, não era para inventar nomes que eu estava ali. Prossegui:
- E então, irão aceitar a Virtude no clube?
- Só porque inventei um nome para você ainda não quer dizer que a acredito... Me diga, Virtude. Posso saber qual é o terceiro motivo? – Desafiou-me.
- Claro. O código 11, ora. – Olhei para trás, por cima do ombro, e prossegui: – Se eu quisesse saber quais eram vossos planos para o código 11 deveria ir atrás de quem está com eles, atrás da outra garota, não é? – Eu sabia que o código estava com ela pois lembrava ainda da minha revelação que tive no começo da tarde.
Um anjo do espanto passou pelas faces de Perseu e Atalanta.
- Então você sabe da Sarisa? Você viu ela sair? – Perguntou Perseu, quase atropelando as palavras.
Suspirei. Eles estavam o tempo todo ganhando tempo para que a Sarisa corresse enquanto perdíamos tempo trocando falas. Ainda achavam que eu queria enganá-los.
- Então vocês ainda não acreditam em mim não é? Bom... Vou lhes dizer uma coisa: O subtenente Weakbald está atrás da garota agora, e se não fizermos nada ele vai conseguir capturar o código 11. Então vou fazer o seguinte: irei até lá, derrotarei o subtenente e ao invés de me gabar para a organização, vou voltar aqui, vou trazer o dito cujo em suas mãos, e assim vocês vão acreditar em mim.
Sem esperar resposta me virei e comecei a andar calmamente na direção da qual eu tinha vindo.
- Espere! Vamos com você! – Gritou Perseu quando eu já estava um pouco longe.
- Mas daí não poderei optar por voltar e lhe entregar o código ou entregá-lo a meus superiores, poderei? – Respondi sem me virar para trás. Acenei com a mão direita, ainda sem olhar, e então apressei o passo. Mais de longe gritei para eles:
- Encontro vocês aqui daqui à uma hora!
Uma das coisas que aprendi em meu treinamento foi a sumir repentinamente. Os túneis de Kebebassa eram ótimos lugares para se fazer isso. As pessoas nunca costumam olhar para cima. Olham para todos os lados, perguntando-se onde está aquele que estava na sua frente a tão pouco tempo, e então vendo em seu horizonte uma gama de lugares possíveis acabam escolhendo algum deles. Mas nunca lhes ocorre olhar verticalmente, não lhes ocorre que aquele que lhes escapou está parado observando-os de cima ao invés de estar correndo.
Quando Perseu, Atalanta e o outro amigo deles mais velho entraram no túnel pelo qual eu vim foi justamente isso que aconteceu. Olharam para os lados, perguntaram-se onde eu estaria, e no fim decidiram se separar e procurar pelos três lados. Se pendurar no teto e não fazer nenhum barulho requer muita habilidade e confidência. Confidência de que o inimigo não vai procurá-lo ali. Ainda bem que eu possuía esse tipo de habilidade. Se bem que se eles me encontrassem ali em cima eu apenas falaria "Buu!" E então os deixaria me seguir. Eles não me atacariam. Mas já usei este tipo de fuga em situações mais desesperadoras.
Esperei um pouco mais de tempo e então fui me dirigindo à saída sudoeste, que era onde eu encontraria a garota do código 11, de acordo com minha visão. Sarisa era o nome dela, conforme Perseu havia dito. Os três não chegariam a me encontrar até eu salvá-la. Me pergunto porque? Se eles queriam me seguir, deveriam ter se dirigido para onde Sarisa estava, e eles sabiam onde ela estava, pois provavelmente o time deles havia combinado tudo. Será que eles iriam esperar pacientemente por mim no local marcado? Era difícil, pois se eles realmente desconfiassem de mim suspeitariam que eu iria chamar soldados para cercá-los no local marcado após passada a hora combinada. Contudo, de acordo com minha revelação era isso que eles fariam.
Sem me preocupar mais muito com isso, fui direto ao que interessava. Já havia contactado as pessoas que tinha que contactar, e agora bastava derrotar Weakbald para que a operação orfanato falhasse por completo, e então nós todos poderíamos nos dirigir a um lugar remoto para programar nossas próximas atividades.
Tive que andar praticamente tudo que já havia andado, só que pela saída de baixo ao invés da saída óbvia da esquerda, pois era lá que Sarisa se encontrava. O estado da cidade não ajudava muito, o ritmo tinha de ser lento. Mas se Weakbald estava atrás dela significava que ele também estava passando por ali, e eu provavelmente não estava mais devagar do que ele.
Saí de Kebebassa e voltei ao deserto de terra que a cercava. Olhar para o horizonte me deu uma certa preguiça, mas tive de superá-la e continuar avançando. Andei mais um tanto. Talvez uns dois quilômetros? E então avistei de longe Weakbald e provavelmente Sarisa lutando. Estavam apenas os dois, os guardas do subtenente não estavam ali. Será que haviam sido derrotados? Se a garota fosse tão boa quanto Atalanta era certo que sim. Como nenhum dos dois estava me enxergando, pois eles estavam em uma duna que ficava mais baixa, fiquei observando a luta deles um pouco. Gosto de ver as espadas lutarem. Especialmente se os usuários são promissores.
Quando eu comecei a ver, Weakbald havia balançado o modelo dele, e a garota estava com os olhos fechados, se agarrando com as duas mãos na sua espada, ao invés de tentar pular para trás. Não sei se foi de propósito, mas ela defendeu o golpe do subtenente mantendo a espada levantada, pois a estava segurando com as duas mãos. Segurar com apenas uma delas não compensaria a força do modelo dele. Era um protótipo SAMA9, duas vezes maior e mais pesado que uma OOW. Weakbald era necessário para poder usá-la, pois sua arma necessitava de sua informação genética. O líder de esquadrão havia sido cobaia como muitos outros militares, com a diferença de que sua operação foi um sucesso, e permitia a ele usar aquele bracelete e espada únicos em suas lutas. Poucos militares conseguiam isso. Em geral dava-se postos altos às operações bem sucedidas quase que instantaneamente, e acredito que este era o caso dele, pois nunca tinha o visto como sargento por exemplo.
Já a garota estava com... Bem... Estava com roupas de garota, pouco cabíveis à situação, e tinha na mão uma Ephens OE2B, uma espada mais leve, sinceramente designada para terroristas ou fugitivos provavelmente, pois nenhum soldado precisa usar espada tão leve para lhe garantir tanta agilidade.
Sarisa deve ter achado que por ser enorme, a espada de Weakbald deveria ter um balanço excessivo, e por isso arriscou um golpe antes que ele recuperasse a posição de sua espada, no entanto o oficial contornou, fez a conversão com a mão devida e desferiu um golpe de direita, deixando a garota no chão. Pelo visto ela não era das mais experientes. Era óbvio que Weakbald sabia manusear aquela espada tão rápido quanto qualquer soldado graças à sua informação genética. Se assim não fosse não haveria o porquê de ele carregar aquela espada ao invés de uma mais leve.
Uma vez vendo Sarisa derrubada no chão, resolvi descer até lá e ajudá-la, antes que o pior acontecesse. Pulei duna abaixo, e quando me aproximei, o subtenente estava olhando para Sarisa sentada no chão em posição debilitada, enquanto terminava uma frase que dirigia para ela:
- A justiça tarda, mas não falha.
Aproveitei a deixa para introduzir-me e fazê-lo virar-se para trás. Comecei a falar, com meu tom de voz característico. Quando eu falo procuro deixar a voz embaixo da garganta, de modo que nem é voz de peito nem de cabeça, e o sonido sai interessante. Uma vez gravei minha voz em diferentes modalidades e gostei mais dessa.
- E é justamente isso que ocorreu agora, Hercules. Ela pode ter se demorado um pouco... – Nisto Weakbald olhou para trás, conforme planejado. Provavelmente a partir de agora ignoraria Sarisa sentada ao chão. O primeiro nome de Weakbald era Hercules. Um nome que ele mesmo havia se dado, em homenagem à força que o sucesso dos experimentos nele realizados o proporcionavam.
- Contudo a justiça chegou agora, Hercules. A sua justiça. – Continuei. Eu estava segurando a minha SB velha na mão direita, apontada para baixo, e estava a alguns poucos metros dele. Se já não tivessem avisado de minha posição revoltosa via rádio, agora ao olhar-me de capa rasgada e equipamentos não monitorados roubados, Weakbald certamente adivinharia que eu estava lutando agora para o lado oposto. Minha fama de formidável espadachim assombrou um pouco o subtenente, pois mesmo estando em vantagem no quesito equipamentos, ele mudou de expressão ao gritar meu nome:
- Corona! – Não estava mais com o tom de vencedor que dirigia à impotente garota jogada ao chão.
Hercules apostou num ataque surpresa usando o impulso de um Jet Pack de pequeno porte que quem o conhece sabe que ele sempre carrega consigo. Na verdade Hercules tem uma diversidade de truques na manga, tanto eletrônicos quanto técnicas corporais que seu bracelete e espada o permitem utilizar. Uma delas foi a que ele usou naquele momento: Desferiu um golpe certeiro com sua espada que atravessava diagonalmente um corpo parado. O tamanho da espada, bem como a força do bracelete, forçariam o atacado a ter que pular para trás para desviar, no entanto o Jet Pack compensaria e ele acabaria sendo atingido de qualquer forma. Hercules chamava tal movimento do não muito modesto nome de "Pulo do guerreiro hercúleo". Mas eu também tenho uns truques na manga, e esses Hercules não conhece, ao contrário de mim, que conheço muito bem os dele.
Pude desviar o ataque com minha SB velha, pegando ela no ponto certo, claro que não foi apenas isso, tem mais um segredo que evitarei escrever aqui para caso Perseu e os outros resolvam ler este manuscrito sem minha permissão, mas o que importa é que a espada dele foi parada pela minha. Weakbald, contudo, não se deu por vencido. Segurou sua SAMA9 com as duas mãos e efetuou novamente seu salto hercúleo, mas agora ele estava muito perto. Dar o salto agora seria um movimento previsível, bastava pular para o lado que se desviava do seu ataque, no entanto não foi isso que fiz. Apenas esquivei-me de seu golpe girando o corpo, e então toquei um nervo seu com a parte cortante de minha espada. Mirei no nervo que ficava embaixo do compartimento auxiliar do braço. Embora o compartimento possuísse ferro suficiente para fornecer-lhe uma boa proteção, dependendo da força aplicada, o corte da SB venceria o ferro e proporcionaria um corte. Não é a espada que é forte, mas o usuário. É o jeito que você dá a batida que faz a diferença. Movimentos curtos e rápidos em geral fazem com que o golpe com AA espada careça de força, mas não se você concentrar sua força no pulso, como em um "jab", por exemplo. Acho que é esta a definição, você dá um "jab" com a espada na mão.
Hercules deu um grito de dor e o arranhão bem localizado em seu braço o fez largar sua espada, então ele rapidamente ligou seu bracelete, bracelete este que não estava usando durante a luta toda. Infelizmente para ele eu já sabia também o que o bracelete fazia: Ele injetava enzimas no corpo de Weakbald que faziam seus músculos incharem aos poucos. Desta forma ele não somente tinha mais força para segurar e golpear melhor com sua espada desproporcional como também evitava ser atingido gravemente, em órgãos internos por exemplo. Enquanto o bracelete estava ligado às enzimas eram adicionadas pouco a pouco. O corpo não acostuma as adicionar muito de uma vez só, ele precisa treinar seu corpo para agüentá-las. E por isso ele o estava ligando só agora. Depois de um tempo com o bracelete desligado as enzimas morrem e o corpo volta ao normal, e assim não traz nenhum efeito colateral ao usuário. Por isso que Hercules carregava o bracelete dele fincado em sua carne, caso contrário as enzimas não penetrariam no seu corpo.
Pensei comigo mesma: "Agora ele vai fingir que vai pegar a espada para me atrair para lá, e me dar um golpe a seco, pois eu estou sem armadura" Na verdade eu estava com uma peça da armadura do soldado gordinho, mas não contava, em nada se assemelhava com a que descartei. "Mas ele não sabe do meu segredo, um golpe a seco não irá causar-me dano algum. Então vou fingir que caí em sua finta e acabar com isso rapidamente." Raciocinei.
E então, Weakbald executou o movimento previsível. Esticou a mão à SAMA9 caída, e quando o fez, saltei em direção a ele, como se estivesse tentando impedi-lo de pegar a sua arma. Então ele saltou e me deu um soco.
Seu soco foi tão forte que me empurrou para trás, e me afastou uns bons centímetros, fazendo com que ele pudesse recuperar sua espada. A mão dele tinha ficado toda sangrando, mas pelo menos ele havia recuperado a arma. Como será que as enzimas o haviam feito evoluir tanto em tão pouco tempo? O bracelete dele não estava como eu lembrava. Se bem que eu lembro apenas vagamente... De qualquer modo parecia que Weakbald estava treinando demasiadamente, o que não é o estilo dele... Ou ainda não havia cessado suas experiências pessoais no laboratório central.
Distraí-me olhando para Sarisa, que ainda estava sentada no chão. Sarisa era uma garota bem jovem e bonita. O que havia de mais belo nela era seu semblante, ela era uma criança com esperança de mudar o mundo, e sua esperança era genuína. O brilho e vigor da nova geração estavam em seu rosto. Ela provavelmente estava cansada... Exausta para dizer a verdade. Nem havia conseguido se levantar, mas seu rosto naturalmente se recusava a exibir o cansaço. Parecia ser uma garota interessante.
Peguei-me pensando em Sarisa no meio da luta, já não estava mais olhando para o subtenente, então esperei que ele me desse o próximo golpe que eu apenas me defenderia. A menos que ele estivesse lutando muito mal, já não havia mais tempo de pegar a vantagem depois de tão grandioso período de distração.
Weakbald aproveitou meu momento de sossego para avançar como um leão feroz. Primeiro desferiu sua direita característica, que parecia ser o único movimento que sabia. Defendi-me, mas o bracelete dele ainda estava adicionando suas substâncias trapaceiras, e então o golpe saiu bem mais forte do que deveria, e me empurrou cerca de dois passos para trás.
Tornei a atentar-me para ele, grata por ele ter desperdiçado sua chance em golpe tão pouco eficaz. Mas agora eu tinha retomado o foco. Eu havia sido jogada para uma posição mais alta, Hercules estava com o braço sangrando e encontrava-se um pouco danificado psicologicamente, e eu ainda não havia sido atingida. O que estou escrevendo agora foi o que passou pela minha cabeça naquela fração de segundo. Gosto de avaliar a situação das minhas lutas. Faço isto muitas vezes durante elas.
Weakbald veio em outro salto, propulsionado pelo seu mecanismo auxiliar, mas agora visando atacar com o ombro. Segurava a espada de modo a defender-se de qualquer contra-ataque. Pelo menos qualquer contra-ataque que eu reproduzisse enquanto ele estivesse no ar, mas não previu o que o corpo dele faria depois. O corpo dele iria se soltar todo, é claro, antes de ele empunhar a espada em posição de luta. Ou ele simplesmente iria continuar se defendendo com o corpo inclinado e o ombro em frente à cabeça, congelado? Claro que não.
Então pulei rapidamente, para atiçá-lo a cavar transversalmente, de modo a tocar a espada no meu corpo. Se ele o fizesse a luta estaria ganha, pois me derrubaria com a força exorbitante de sua espada, e a menos que eu tivesse muita sorte, ele me atacaria e acabaria comigo no chão, logo em seguida.
Mas o motivo de tal movimento aparentemente suicida não foi deixá-lo me golpear, eu iria na verdade evitá-lo. Ele havia acabado de pular com sua ombrada, e se golpeasse transversalmente no meio do salto, seu corpo demoraria ainda mais para se re-equilibrar. Então eu aproveitaria o momento de instabilidade para atacá-lo de modo certeiro ali do ar mesmo. Mesmo que falhasse, ainda arranjaria tempo para me levantar, pois os movimentos de Weakbald estavam muito exagerados e como eu disse, ele demoraria demais para se recuperar.
Ainda enquanto eu pulava, inclinei meu corpo para desviar do único golpe possível da situação, o ataque transversal. E foi o ataque que ele fez. Hercules era um lutador desses que não previa nossas previsões. Não é interessante lutar contra oponentes assim, por melhores que eles sejam. Os lutadores bons são aqueles que percebem nossas intenções nas frações de segundo que estão disponíveis e executam seus movimentos de modo a impedir essas intenções, não apenas aceitam nossos convites, sem pensar nas consequências.
No ar, comecei a atacar com minha SB o corpo de Weakbald, quando ele estava no fim de seu movimento, na posição em que seu corpo demoraria mais. Para quem entende de física, é o momento em que a aceleração é nula, e espera-se a conservação de energia fornecer a aceleração para o movimento de volta. Não se pode mudar a posição bruscamente ali, naquele momento, diferentemente do que permite meu bracelete inferior esquerdo: Ele é um bracelete de oficial superior que muda a direção do golpe da espada, independente de qual seja a direção do braço do usuário. Tais braceletes são patenteados e podem ser reconhecidos de longe por subtenentes da organização, ou pelo menos deveriam ser reconhecidos. Mas pelo visto ou Weakbald não sabia ou havia esquecido. Que pena para ele, pois se eu usasse tal bracelete dada a sua posição, isto lhe custaria a batalha.
Dada minha consideração pelo subtenente, como ex-oficial da organização, não quis finalizar Weakbald ali. Ao invés disso, mudei a direção de meu golpe para seu braço, para que o fizesse derrubar sua arma novamente. Assim como eu estava demasiadamente perto dele, isto significaria minha vitória. O rasgo em seu braço acabou sendo um pouco fundo demais, mas nada que o tempo não curasse. No final nós dois acabamos caindo, eu por causa do meu salto irregular e ele por meu golpe mecanicamente desviado.
Se perguntar para a Sarisa foi um movimento maravilhoso, espetacular. Mas na verdade não passou de uma conseqüência do erro de Weakbald. Ele aceitou erroneamente o convite, e eu executei o plano que tinha formulado pouco antes. Simples assim. Se perguntar para a Sarisa aquela luta toda foi digna de ser gravada, mas na verdade não acho que foi uma das melhores. Pelo contrário, eu estava enferrujada. Inclusive me distraí no meio da batalha. Mas para quem teve sua cabeça poupada graças à minha vitória, a perspectiva deve ser outra.
Levantei-me e apontei a espada para o oficial, caído no chão..
- E agora? Você vai me matar, Corona? Me matar depois de tudo que fizemos por você? – perguntou o subtenente aos urros.
- Podemos negociar, se Hercules me der essa espada e armadura. – Os equipamentos dele também não eram monitorados. Eles funcionavam apenas com o DNA dele, mas nada que Teachmor não pudesse dar um jeito. Não fazia diferença matar Weakbald ali ou não, pois os guardas que eu havia deixado no deserto já sabiam de minha traição, de modo que certamente a organização me caçaria. Então eu estava evitando causar mortes desnecessárias.
Deixe-me rapidamente contar sobre Teachmor. Ele é um ex-cientista da organização, que saiu dela antes de a Auriga ser dominada. Hoje em dia não se permite mais aos cientistas saírem da organização, pois os segredos malévolos dos laboratórios podem ser espalhados. Legalmente eles podem, mas depois de alguns dias um "acidente" acaba acontecendo com eles.
Mas Teachmor sabia bastante sobre as pesquisas, pelo menos sobre o que era o alvo delas na época em que ele saiu, e ele tem uma gama de instrumentos que guarda consigo clandestinamente no setor 74. Como disse, minha memória boa é de cerca de uma semana atrás, e foi há uma semana que comecei a fazer contato com Teachmor, eu estava desviando alguns equipamentos que sobravam dos laboratórios para a oficina clandestina dele. As minhas visões começaram muito antes de hoje, de modo que eu já era uma traíra da organização antes do acontecimento de hoje, de certa forma.
Provavelmente os rebeldes conheciam Teachmor e iriam levar o código 11 para eles, mas ele nada poderia fazer com ele. E eu sabia onde deveríamos ir em seguida para que pudéssemos cancelar os planos da organização com sucesso, mas não custava passar no setor 74, já que estávamos perto, e deixar a arma com Teachmor, para o caso de ele descobrir como fazer uso desta.
- Idiota, você não vai conseguir fazer o modelo funcionar sem a compatibilidade orgânica. – Respondeu grosseiramente Weakbald. Sorrindo, argumentei:
- Não me force a tomar também este equipamento, Hercules.
O subtenente então viu-se forçado a atender à meus termos, e me foi entregando seus itens. À medida que me foi alcançando-os, tentava convencer-me a não trair a organização:
- Você está ferrada! Todos os batalhões da OSSP virão atrás de você. Ainda dá tempo de voltar, Corona. Acabe com essa vagabunda e eu não vou falar que você fez isso. – O vocabulário que Weakbald usava não buscava exatamente agradar as damas.
Mas sabia tanto ele quanto eu que aquelas palavras eram da boca para fora, não dava mais para voltar neste momento. Eu havia assinado meu nome na lista negra da OSSP, e deveria passar o resto da minha vida arcando com as consequências disto. Depois disso ele se virou e saiu.
A garota da Ephens levantou-se de seu recinto e me agradeceu. Então fui direto ao ponto:
- Sarisa não é? Perseu a espera no local onde vocês conheceram Atalanta, vamos? – E estendi-lhe a mão, convidando-a a voltar em minha companhia.
Percebi que ela talvez estivesse com fome, então perguntei a ela se estava mesmo. Se fosse o caso teríamos que nos desviar um pouco do caminho e caçar comida, pois não era bom deixar a garota ferida com fome andando por quilômetros naquele deserto seco.
- Eu tenho algumas aves... – Começou Sarisa, mas as aves dela estavam em péssimo estado. Estavam podres, mofadas, sujas de lama. De quando eram aquelas aves eu não sei. Mas é de se estranhar que uma garota as carregue em sua bolsa por muito tempo, por causa do cheiro principalmente. Decidimos com um olhar que não iríamos come-las, e então a garota as jogou ali mesmo.
Então como não havia mais muito o que comer por ali a não ser grama, acabamos assando um pedaço da carne do subtenente, o qual eu havia arrancado com meu último golpe. Carne humana não pode ser chamada exatamente de comida, mas melhor do que capim, pelo menos. A lasca não era muito grande, mas serviria para alimentar a garota até lá. Eu, para falar a verdade não estava com muita fome.
Após comermos, já estava escuro, e a uma hora que eu havia prometido para os outros três já tinha se estendido em quase três. Fomos então nos dirigindo para lá de novo. Pelo menos Sarisa confiava em mim. É claro, ela tinha me visto derrotar o subtenente com seus próprios olhos. Eu esperava que ela fosse uma boa testemunha para me ajudar a adentrar no grupo dos malfeitores.
Puxei assunto, enquanto caminhávamos as duas, lado a lado:
- Está com ele aí?
- O que?
- O código 11.
- A câmera da garota, aquela que não funciona? – Perguntou Sarisa esboçando um sorriso. A embalagem do código 11 fazia-a parecer uma câmera fotográfica. Ou Atalanta não a havia explicado para que o código 11 servia, ou ela estava fazendo graça. De qualquer modo resolvi contar para ela para que servia o artefato que ela carregava consigo:
- Parece que a organização conseguiu um avanço nos modelos de braceletes que usam a informação genética. Com as amostras recolhidas das pessoas na formação de identidade eles acham que estão conseguindo criar réplicas daqueles braceletes do tipo que o alto escalão dos batalhões usa. Mas tudo está em fase de teste ainda, então eles estão buscando algumas das informações antigas, inclusive algumas amostras das que já foram extintas, para tentar prosseguir com a experiência. E tem algumas amostras que o Guolegre decretou que são essenciais para o desenvolvimento...
Enquanto eu ia chegando ao ponto com o meu pequeno discurso, nosso passo ia diminuindo cada vez mais, até que paramos. Sarisa indagou com o tom de voz mais baixo. - estava um pouco preocupada, eu presumo.
- Bem que eu desconfiei que já tinha visto dessas maquininhas antes. Informações genéticas. Eles estão atrás dessa aqui?
- Aham. – Confirmei com a garganta. Por algum motivo eu não gosto da palavra "Sim".
- De quem é?
- Adivinha.
- Mevegane?
- Aham.
- Tá, mas como eles pretendem fazer alguém conectar o bracelete com um modelo? Vão ressuscitar os mortos agora? – Sarisa não sabia como era desenvolta a tecnologia da organização. Poderia até ser que não se pudesse reviver seres humanos que já haviam morrido, mas vampiros... Os vampiros tinham sido criados pelas mãos dos seres humanos, foram criados à base de produtos sem alma, matéria sem vida, não haveria razão para que os vampiros não pudessem ser ressucitados. E embora muitos não o soubessem o próprio Mevegane era um vampiro, e um muito perigoso por sinal. Mas resolvi omitir esta informação, pelo menos até que todo o pessoal estivesse reunido. Dei de ombros e respondi:
- Não sei.
- Então quer dizer que o código 11 que está na minha oncinha é na verdade...
- Exatamente, o DNA de Mevegane. – A bolsa de Sarisa tinha o fofo formato de uma oncinha, de modo que ela se referia à essa como tal.
Era já de noite, ouviam-se os grilos, e viam-se os vaga-lumes, e nós nos víamos também um ao outro, pois a fogueira deles ainda queimava.
- Aqui está. – Estendi o código 11 para o Perseu. Sarisa estava a salvo, do meu lado. Não haveria porque eles duvidarem de mim agora.
Perseu tomou de minhas mãos a caixinha de DNA, colocou a mão no queixo, fazendo uma careta de inspeção, e então disse:
- Ainda não descarta a possibilidade de você ser uma espiã da OSSP, que está aqui para aprender sobre nossos planos, e que quando os souber, está autorizada a matar-nos e tomar o código 11 novamente.
- ...
- No entanto... vamos confiar em você, por hora.
O amigo deles, mais velho finalmente pronunciou-se, enquanto vinha a meu encontro e ao de Sarisa:
- Deixe, Perseu. A garota só quer ajudar.
- É o que veremos. – Retrucou Perseu. – Você está bem? – Dirigiu ele à Sarisa, que meneou afirmativamente.
Eles estavam assando carne de cavalo na mesma fogueira de antes, e haviam encontrado um baldinho que usaram para fazer um cozido com alguns legumes de terra. Devem ter tido tempo de sobra. Pelo visto esperaram mesmo eu voltar com a garota. Menos mal. Significava que já estavam confiando em mim antes de eu voltar, de certa forma. A refeição estava quase pronta quando eu e ela havíamos acabado de chegar. Assentei-me num dos pedaços de cimento que estavam em volta da fogueira, simulando um banco, e então disse:
- Perseu ainda não me respondeu: Aonde pretendem levar o código 11?
Perseu hesitou por um segundo, me encarando. E então resolveu responder:
- Para um aliado nosso, que mora no setor 74, era para lá que estávamos indo antes de você e a Atalanta chegarem.
- Ah, iriam lá mesmo sem o DNA em mãos?
Perseu não gostou do meu tom, deve ter pensado que eu duvidava de sua resposta. Então respondeu rispidamente:
- Sim, nós temos outros assuntos a tratar lá também. Agora mataremos dois coelhos com uma cajadada só. E como você sabe que o código 11 é o DNA de Mevegane?
- Eu trabalhava lá não? – Disse vagamente. Então coloquei a mão no bolso da minha capa e peguei a outra amostra de DNA que eu havia pegado do laboratório, conforme meu outro eu havia me indicado.
- O que é isto? – Perguntou Perseu.
- DNA.
Sim, era uma resposta óbvia. O envolcro era exatamente igual ao do código 11. Eu não posso dizer que sou muito fã de irritar as pessoas despropositadamente, mas neste dia eu estava impossível. Acho que foi a primeira impressão que Perseu me passou. Parecia que nós iríamos arrumar intrigas desnecessárias um com o outro nos próximos dias.
Para minha surpresa Perseu estava pouco interessado na amostra que eu tinha em mãos, e então não interrogou-me mais sobre ela naquele momento.
- Prazer, senhora ex-oficial. Meu nome é Mantel Carlo. – Apresentou-se polidamente o rapaz mais velho, ele havia se aproximado e estava de pé ao meu lado, com a mão estendida. Sarisa também havia encontrado um assento em torno da fogueira, e Atalanta estava cuidando da comida. Cumprimentei o único integrante da equipe que ainda não conhecia, e então indaguei:
- E Mantel, de onde é?
- Eu sou apenas mais um morador de setor desiludido com a nossa situação. – Disse ele, e sorriu-me. Minha impressão sobre ele foi que ele era desses tipos que mais ouvem do que falam. Curiosos tipos, esses.
- E Mantel, é um pseudônimo também?
- Não. Este é meu nome de verdade. E você? Era moradora de setor também?
Eu já não estava com muitos pontos ali no meio. Se eu dissesse que não lembrava do meu passado para eles, provavelmente pensariam que eu estava tentando omitir o máximo de informações para que eles não me pegassem. Então rapidamente inventei alguma coisa:
- Sim. Eu morava no sul... Daí meus pais morreram e eu fui levada para o orfanato. Depois acabaram me contratando. – Era a história que eu estava cansada de ver se repetir no meu local de trabalho.
Olhei para o céu. Estava bastante limpo. Dava para ver as estrelas, as luas, os planetas. Até dava para esquecer que havíamos acabado de travar batalha contra a OSSP, o que significava que nossa vida não teria mais momentos de paz para aproveitar um céu limpo, de agora em diante. Perguntei-me se há paz nos demais planetas.
- Perseu. – Disse eu repentinamente, com a cara séria, e olhando para meu colo. – Porque a organização quer usar o DNA de Mevegane? A Atalanta te contou isso?
- Sim. Eles querem usá-lo para ressuscitar o desgraçado. Vê se pode. Acham que vão poder controlar ele?
- Porque não? Ele é um vampiro afinal de contas. – Estava olhando casualmente para o nada, brincando com a amostra que estava na minha mão, jogava a para cima e tornava a pegá-la.
- Mas eles não controlavam totalmente os vampiros antes. Eles têm como fazer isso agora?
Eu estava tentando puxar o assunto certo, mas eles estavam desviando. Então simplesmente ignorei este comentário, cerrei meus olhos e fui direto ao ponto. Pronunciei-me suficientemente alto para Atalanta também ouvir.
- Me diga, se eles querem usar este DNA para ressuscitar Mevegane, porque simplesmente não destruímos esta amostra?
O silêncio pairou por um instante sobre o acampamento. Eles não haviam pensado nisto pelo visto. Então Sarisa arriscou com uma indagação:
- Porque esta não é a única amostra, e então não faria diferença?
- Se fosse isso, o fato de eu e Atalanta termos largado nossos cargos teria sido inútil.
- Então não sei. – Disse ela. – Por quê?
Inclinei meu corpo ligeiramente para a frente e então continuei:
- Vocês não acham estranho que o DNA de Mevegane, que foi usado para criar as máquinas de Euphenstein seja usado agora para outro propósito? A compatibilidade genética só deveria fornecer um tipo de habilidade para ser utilizado aos equipamentos, não deveria? – E então Perseu matou a charada:
- Quer dizer que eles vão usar outro DNA para reviver Mevegane?
- Exatamente. Disse eu. Este aqui. – E então todos olharam para a minha mão.
- Perdão, de quem é esta amostra? – Indagou Mantel.
- De um capacho da organização. O nome dele parece que é Aurico. E descobriram que ressuscita-se almas viventes com a informação genética dele. Claro, tem toda uma gama de contras, e processos e requerimentos. Mas usar isto em vampiros reduz os efeitos colaterais.
- Ótimo, vamos destruir este, então. – Retrucou Perseu.
- Agora o que Sarisa disse se aplica, não fará diferença. Aurico é um capacho da organização, então ele sempre estará disponível para eles recolherem mais uma amostra.
Perseu então finalmente adentrou-se na roda, tomando o assento ao lado de Sarisa, que estava mais ou menos de frente para mim. Ele perguntou:
- Então... Porque eles vão usar o DNA de Mevegane?
Tomei um pouco de ar, e então expliquei:
- Mevegane, como devem saber vocês, está congelado. Morto, mas congelado, para não ter seu corpo deteriorado, e ele se encontra em algum lugar no prédio central da organização. Se eles quiserem revivê-lo, terão que usar a informação de Aurico antes de descongelá-lo, pois caso contrário o corpo se quebraria no processo, pois o congelamento foi mal feito. É preciso que o vampiro já esteja vivo dentro do gelo, para que possa agüentar o tranco com sua força descomunal, coisa que o cadáver não possui. E para que possam controlar o cadáver, conforme estávamos comentando antes, devem fazê-lo com ele morto. Se ele estiver já vivo, irá mover-se por conta própria e acabará sendo como era no passado, o que é além de inútil, perigoso. Só que... Para efetuar o controle, necessita-se de um pouco de DNA de quem se deseja controlar.
- Por isso a amostra? – Deduziu Perseu.
- Exato. Sem a amostra eles não podem reviver o cadáver, se o fizerem ele agirá por conta própria. A menos, claro que eles descobrissem outra relíquia genética milagrosa.
- E porque você pegou essa amostra do Aurico, se ele está lá, não é também inútil? – Disse Perseu.
- Não será mais, a partir do momento em que ele não estiver mais lá. – Disse eu, erguendo levemente meu indicador para ele.
- Ah, entendo! – Exclamou Mantel. – E você deseja então nossa ajuda para efetuar uma operação de resgate para tomar esse tal de Aurico como refém.
- Este é um dos meus planos futuros. – Concordei.
- Mesmo assim... – Falou Perseu – Ainda não vejo porque não destruímos ambas amostras. Não terão chance de ressuscitar Mevegane sem o DNA dele, pois será perigoso, e depois que pegarmos o rapaz como refém, é melhor que não exista nenhuma outra amostra reserva.
- Errado e errado. – Respondi. – O fato de ser perigoso não impede a organização de tentar. Acredito que até já estejam cogitando reviver ele para depois controlá-lo usando outros meios, o fato de termos a amostra em mãos, no entanto, torna mais fácil para eles virem atrás de nós do que arriscar, então é melhor guardarmos a amostra intacta para balançar na frente deles. Isto conservará Mevegane no seu casulo. Por outro lado, não se pode negar que o DNA de Aurico é bastante útil, embora estejam querendo utilizá-lo para os fins errados. Então na hipótese de que o pior acontecesse com o coitado durante nossa operação, se o DNA estivesse destruído, não se poderia mais fazer nada com ele. Sendo assim, eu voto por carregarmos as duas amostras intactas conosco.
O pessoal demorou-se um pouco para concordar. Estavam todos em silêncio, digerindo a informação e refletindo sobre ela. Sarisa foi a primeira a falar:
- Eu não sabia que já podiam reviver os mortos com a tecnologia...
Então comemos a carne e os legumes, e bebemos água. Não havia nada mais além de água para beber ali, os setores estavam muito longe. E enquanto comíamos não conversávamos mais sobre nada de grande importância.
Após nossa refeição, como já estava muito escuro, decidimos que iríamos dormir por ali mesmo. Perseu carregava barracas e sacos de dormir infláveis nos compartimentos do braço de sua armadura. O bom das barracas infláveis é que graças à embalagem a vácuo elas quase que não ocupam espaço. Armamos nossa barraca no interior de um prédio abandonado que estava ali perto, mas não perto demasiadamente, pois queríamos evitar ser encontrados durante a noite, e os vestígios de fogueira poderiam chamar a atenção.
- Ninguém aqui ronca não é? – Perguntou Perseu às duas novatas, em tom de brincadeira.
- Elas são damas, Perseu. É claro que não roncam. – Disse Mantel.
O prédio era escuro, assim como era tudo por ali. Havia destroços no interior do mesmo. O chão só estava seco porque tínhamos subido até o quarto andar, porque não ficava nem muito embaixo e nem muito em cima. Não ouvia-se nada dali. Nem os sapos, nem os grilos, nem o sussurro do vento. E só podíamos ver se ligássemos nossas lanternas, ou qualquer outro aparelho que fizesse luz. Provavelmente ao acordarmos, aquele lugar ainda assim estaria escuro.
Como estávamos abrigados num prédio, não encontramos necessidade em montar as barracas, de modo que apenas estávamos deitados em nossos sacos de dormir. Isto é, Mantel e Perseu o estavam. Atalanta estava já dormindo, e Sarisa não sei onde estava.
Eu estava perto da janela, de pé. Não era costume meu dormir todo dia, apenas necessito de umas poucas horas semanais de sono. Deve ser uma doença que possuo. Fiquei um bom tempo lá, pensando comigo mesma, até os outros se acomodarem. Pensei que ninguém havia percebido que eu havia preparado meu saco de dormir, mas não estava deitada nele. Então num dado momento Perseu aproximou-se.
- Não consegue dormir? – Indagou. Já não era tão rival meu, a julgar pela doçura em sua voz. Mas pensei no momento que ele estava preocupado se eu não havia saído para chamar alguém da organização para apreendê-los.
- Nunca consigo. – Respondi.
Ele parou e ficou ao meu lado, olhando pela janela, assim como eu estava fazendo. Não que houvesse realmente muito o que observar.
- Eu consigo enxergar um pouco no escuro. – Expliquei-me. Ele nada respondeu. E após um intervalo, foi direto ao ponto:
- Fiquei na dúvida agora. O que devemos fazer em seguida? Pensei que iríamos nos encontrar com um aliado nosso do setor 74, mas agora que você me disse sobre Aurico, isto me pareceu mais urgente...
- Não é de praxe, o líder tomar tais decisões? – Perguntei em tom provocativo, meio que esperando que ele recuperasse sua postura anterior, pelo desacato.
- Um líder não é um líder se não ouvir as opiniões de seus subordinados.
- Então você é realmente o líder...
A brisa entrava pela janela fresca e suave. Não sei quanto a Perseu, mas eu gostava de senti-la, principalmente de madrugada. Gosto de ficar parada, sentido apenas o vento bater em meu rosto. Perco horas fazendo isso, e é nessas horas que as melhores idéias vêm em minha cabeça.
- Já conversou com os outros? Disse eu, ainda com as mãos apoiadas no parapeito da janela.
Perseu suspirou.
- Atalanta diz que devemos ir até o setor antes, e deixar nossas amostras com o nosso contato...
- Teachmor. – Resmunguei.
- Sim, você conhece ele, pelo visto. E então depois poderíamos nos mover de lá mais seguramente para os demais fins. Aurico não vai sair de lá.
Cruzei meus braços e então disse:
- Idéia interessante. Mas o problema é se eles nos seguirem até lá, e acabarem descobrindo sobre Teachmor.
- Pois é.
- E patologicamente, eu não consigo sentir que minhas coisas estão seguras até que elas estejam comigo. – Disse, categoricamente.
- Entendo. Isso é um mal de criança crescida no orfanato... Insegurança, sabe... – Ele me olhou de esguelha, como que esperando uma reação negativa.
Pensei se deveria dizer o que eu iria dizer, ou se deveria esperar por depois, mas resolvi fazê-lo naquele instante:
- Na verdade, eu meio que... Não lembro muita coisa. Lembro-me apenas de uma semana para cá, e o resto é tudo... Branco. Apenas flashes. – Foi meio difícil falar, mas acabou saindo. Não que ele tenha entendido muita coisa também. Mas para mim foi importante. Agora ele sabia que eu tinha memória curta e também com aquele comentário eu havia desmentido a mentirinha que havia contado para o Mantel mais cedo.
- Ah, entendo. – Ele foi mais passivo do que pensei. Não deve mesmo ter entendido muita coisa da minha confissão. Após uma breve pausa ele retomou o assunto:
- Mantel, por outro lado acha que devemos carregar as amostras conosco, e se for para encontrar Teachmor, que não seja para entregar a ele as amostras. Ainda não sabe se prefere ir atrás de Aurico antes ou depois, e Sarisa não parece saber o que quer.
- E Perseu? O que quer?
Ele fez que ia responder, mas calou-se, pensou e depois respondeu:
- Na verdade, tem mais um aliado nosso que está desaparecido, o qual o ajudamos no evento do setor 69, e eu esperava que ele nos ajudasse quando fôssemos "adquirir" o DNA de Aurico, pois quanto mais mãos ajudando melhor, sabe.
- Enfim, veio só para me convencer a fazer a aquisição depois, então.
- Como se fosse isso. – Perseu sorriu. Dei de ombros e disse em tom neutro:
- Por mim tudo, bem. Mas discordo que ele não vai sair de lá. Se eles se derem conta que eu peguei a amostra dele emprestada, irão somar dois com dois e vão aumentar a segurança, provavelmente. Quanto a Teachmor, estou concordando com Mantel, por enquanto. Espero que o líder resolva fazer o mesmo.
Perseu balançou a cabeça negativamente, e falou:
- É perigoso. O que vai acontecer se formos interceptados? Teremos que começar do zero.
- Se isso acontecer não teremos como começar do zero porque seremos presos e condenados, Perseu. – Disse eu monotonamente, com os olhos virados para cima. – E aliás é perigoso de qualquer forma. Devemos optar pela forma mais lógica, eu diria. E se Teachmor estiver se vendendo, por exemplo?
Perseu afirmou com a cabeça, e então pronunciou-se.
- Bom, veremos o que faremos a respeito. Mas eu desejo pelo menos mostrar as amostras para ele, de qualquer forma... Bom, eu vou dormir, não saia daí. – Disse ele, brincando.
Segui-o com os olhos até ele voltar para o "quarto", que na verdade era o hall do andar, e fiquei ali por um tempo. No fim ficou decidido então que iríamos até Teachmor no nosso próximo movimento. Depois de mais uns minutos ali, resolvi subir uns andares, até que no sexto achei um gabinete com algumas coisas ainda intactas dentro da gaveta.
Era um gabinete de gerente ou algo assim. Estava, claro todo empoeirado, e dentro da gaveta da escrivaninha havia dentre outras coisas uma lâmpada de emergência, uma agenda grossa, com numerosas páginas em branco, e algumas canetas à tinteiro.
Surpreendi-me com a lâmpada, pois esta ainda funcionava. E a agenda estava em bom estado, de modo que a adotei como meu diário pessoal. É importante para mim possuir diários, pois ele pode me ajudar a relembrar os acontecimentos que não estão presentes na minha cabeça. Quando eu trabalhava na OSSP eu vivia mudando de diário, pois os meus sempre sumiam, ou senão coisas muito estranhas apareciam escritas nas minhas memórias, e então eu não acreditava nelas e achava que alguém estava imitando minha letra e escrevendo lá de propósito. Mas agora que eu saí de lá, éramos apenas cinco pessoas, então eu poderia ficar com o mesmo por um bom tempo.
E então, aproveitei minha falta de sono e a lâmpada para começar a escrever. Comecei escrevendo sobre o dia que eu tive, desde a minha dor de cabeça até a noite, e estou terminando agora. Quando amanhecer, vou ver qual será a reação do pessoal, será que eles irão querer ler meu diário? Será que irão respeitá-lo? Qualquer coisa mantive o motivo de minha vitória sobre Weakbald em segredo. Francamente, espero que dê certo desta vez. Bom... Não tenho mais nada a acrescentar no dia de hoje, apenas espero poder completar estas páginas.
Declaro este dia por encerrado, e até amanhã.
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