o Andarilho
O ANDARILHO
Narrado por: Mevegane
"Porcos!" Eu pensava comigo mesma.
Judiavam de nós quando os desobedecíamos. Aproveitavam que nada podíamos fazer, que estávamos de mãos atadas. Para quem iríamos dizer que estávamos sendo abusados? Para quem contaríamos que nada tínhamos feito de errado? Não tínhamos a quem recorrer. Eles simplesmente pegavam seus chicotes elétricos e nos açoitavam, e o faziam por puro prazer. Açoitavam-nos até cansar e suar. Seu suor vinha carregado de seu ódio pestilento e a maldade transbordava de seus olhos arregalados. Eles se divertiam com isso.
O porco pode vir a se alimentar de toda espécie existente de produtos comestíveis, inclusive animais. Inclusive outros porcos. Um porco ao sentir fome pode vir a devorar um cachorro vivo. Pense nisso: vivo. Se não houver cachorros ao seu lado, ele pode ainda sentir a vontade de devorar um outro porco, o seu irmão, por exemplo.
De modo que esse é o melhor cabível adjetivo para eles: "porcos", pois assim como devoram alimentos os porcos, eles são seres que destroem toda espécie de natureza existente ao seu redor, inclusive animais, inclusive seres racionais, inclusive outros seres humanos.
Assim como os porcos sentem fome, eles sentem a necessidade de destruição. Não se contentam com o equilíbrio, sempre têm de estar estragando, quebrando alguma coisa. E não havendo muito em sua volta ao que destruir, podem vir a destruir outros povos, ou até mesmo destruir a si próprios.
"Porcos". Era só o que eu podia pensar, tudo o que eu poderia fazer era ficar ali parada, vendo o outro garoto ser açoitado, o garoto que de nada tinha culpa. A cena de suas costas sendo rasgadas, açoite a açoite ficava gravada em minha mente, e cada sonido de agonia que ele produzia chegava aos meus ouvidos convertendo-se em uma pequena parcela de ódio.
Carregava meu ódio na minha cabeça, pois nada podia fazer com ele. Não poderia correr até lá, abater o açoitador e salvar o garoto. Eles me matariam. Assim era nosso povo: de mãos atadas, destinado a se curvar diante dos suínos humanos por toda a eternidade. Tínhamos pernas mas não podíamos correr dali, tínhamos asas mas não podíamos voar, éramos vivos e pacíficos mas não poderíamos viver em paz.
Nossa raça estava morta, e isso, mais do que tudo, era culpa de nós mesmos, pois deveríamos ter sido unidos desde o começo.
Eu estava parada de pé na rua de barro, perto das instalações onde os condenados trabalhavam. As instalações viriam a ser prédios voltados à pesquisa bélica, que visava formar uma organização que teria o poder de controlar os humanos de Auriga. Quem comandava as operações de construção, bem como suportava as pesquisas locais era o gerente de fábrica local: Íslido Euphenstein, um renomado cientista, responsável por algumas das mais controversas invenções já criadas. As instalações estavam sendo construídas em cima da montanha, e certamente o faziam deste modo, para que após a formação da organização, a localização lutasse contra os numerosos exércitos revoltosos. A montanha era alta, contudo seu pico era vasto e reto, permitindo o posicionamento das construções. Apenas as colocávamos lá, onde as plantas indicavam. Não possuíamos ruas pavimentadas, calçada ou nada do tipo. No entanto elas eram dispostas tal como casas eram dispostas, lado a lado e espaçadas, passando a impressão de que os trechos que as separavam eram ruas de barro, o barro que formava a montanha.
- O que está fazendo, Oscora, Volte ao seu quarto! – Um dos humanos por mim responsáveis gritou.
A mim eles não ousariam castigar, não a mim, que era a favorita do gerente de fábrica encarregado. Nós éramos muitíssimo mais fortes que eles, só perderíamos numa briga porque eles tinham toda a rígida blindagem e gama de armamentos que eles vinham equipados, e uma das visões da doente pesquisa de Íslido era aprender a usufruir de conveniente forma a exímia força dos vampiros. Vampiros. Era como nos chamavam. Ironicamente quem era que nos sugava eram eles. Nós usávamos nosso sangue, suor e lágrimas para construir as instalações para eles a preço de nada. De modo que eram os humanos quem sugavam o sangue dos vampiros.
E por isso, Íslido havia separado potenciais cobaias para engatilhar o avanço da sua pesquisa, e eu era uma destas. Manuseava a SB tão bem que ninguém ousaria me desafiar num duelo de espadas, mesmo ainda sendo uma criança de13 anos.
Meu dever de dali a pouco era ir ao campo de treinamento para aperfeiçoar a minha luta, e então deveria dirigir-me à sala de pesquisa, o pior de meus pesadelos.
Mais alguns minutos e fui dirigida ao campo de batalha, um pátio feito de um material isolante elétrico que era basicamente borracha e plástico, mas era duro como o cimento. Chamava-se tal material de BCE. As novas instalações seriam todas construídas de BCE, para evitar desastres elétricos. O prédio da doentia pesquisa era feito para permitir a brisa entrar. Altas eram suas salas, com as janelas destas dispostas uma sim, uma não nas paredes, as quais tinham forma de ziguezague, para que quando o sol estivesse do lado de fora da parede, não castigasse o interior do prédio.
O salão tinha as janelas lá no alto, e deveria ter pelo menos uns 15 metros de altura. Havia uma arena improvisada no meio do salão, construída em um patamar mais baixo, e ao redor da arena, colunas octogonais suportavam a estrutura do pátio. Ali era o meu ambiente de trabalho. Nós vampiros selecionados deveríamos nos massacrar dia após dia lutando um contra o outro, para o bem da ciência.
Um "urra" à ciência.
Meu azarado oponente daquele dia era famoso, pois era o filho de Tanar. Tanar era um simpático e muito querido vampiro, e sua simpatia conseguia provocar o sorriso dos condenados mesmo estando naquela situação, conversar com ele tornava os vampiros vivos novamente, era como se os condenados esquecessem-se de sua cruel realidade por um instante E o filho dele, pelo visto irradiaria o mesmo sentimento, pois seu espírito era imitação do de seu pai.
O garoto, tal como o pai, era alto para sua idade, era esbelto e tinha a pele escurecida. Seus cabelos eram brancos como os do pai, e os olhos de um tom esverdeado. Não carregava em seu rosto nenhum traço de malícia. Um rosto puro como o de uma criança. Era o Tanar mais jovem.
- Meu nome é Kibou, e o seu? – Perguntou, quando foi trazido ao pátio, antes que começássemos a duelar.
Não era de costume falar com os outros vampiros antes do duelo. Não havia razão. Só iria fortalecer os laços do ressentimento. O estúpido nome dele não poderia significar menos para mim.
- Que nome bonito. – Respondi – Me chamo Oscora.
- Comecem! – Interrompeu o bruto ser humano responsável.
Kibou pendia para a direita para segurar a espada, de modo que ficava ligeiramente virado de lado. Com isso visava proteger sua frente, e segurando a arma na mão destra, facilitava a investida, também acrescendo aceleração no impacto do seu ataque.
Posição débil. Se eu usasse uma espada leve - e as SB's que nos eram emprestadas eram leves - poderia facilmente cavar aberturas às suas costas. Tirei minha SB das costas e a pus na mão direita, mas a deixei apontada para baixo, enquanto a segurava com os dedos para fora, queria estudar o golpe dele primeiro.
Kibou veio se aproximando de mim cada vez mais. Estávamos os dois andando em trajetos circulares, um esperando o outro tomar a iniciativa. Ele desferiu uma direita, que desviei pulando para o lado oposto. Apenas me ajudou a descobrir como era a velocidade de seus movimentos, estava trabalhando para mim.
Parei de andar em círculos ou em qualquer trajeto, fiquei esperando ele chegar perto. O cérebro dele, desconfiado, não o permitiu se aproximar de mim, antes ele ficou me fitando com uma expressão de estranheza no rosto.
Ele olhou para trás, buscando a aprovação do responsável, e de supetão, veio de encontro a mim, buscando desferir uma diagonal coma direita, de cima a baixo. Meus movimentos com uma espada leve tão rápido são, que Kibou não conseguiu perceber. Fiz duas conversões imperceptíveis com a espada no ar e golpeei-o em cheio no seu ponto débil: a armadura às suas costas. Ele só ouviu o barulho. Foi empurrado ainda carregando a expressão de indagação em sua face, suas costas se dobraram.
Nem assim ele mudou de posição, antes veio a mim esperando entender o meu movimento desta vez. Tudo no que pensou foi em repetir o que tinha feito na troca anterior. Claro, que repeti eu, também, só que desta vez mais forte. Kibou caiu no chão.
A diferença de técnica estava clara. Não gastarei mais papel narrando o que aconteceu no treino daquele dia. Resultado: Kibou foi marcado diversas vezes com a insígnia da SB nas costas, e eu saí ilesa.
Então foi a vez do pior: a sala de pesquisa. A sala de pesquisa era um anexo do campo de batalha, que tinha uns 30 metros quadrados, e abrigava os últimos equipamentos da pesquisa de Íslido, que serviam para altear as natas habilidades dos vampiros, primordialmente físicas. As máquinas eram reservadas apenas a especiais casos, não se dava o luxo de colocar todos os vampiros para usar a sala.
Como minhas perícias eram muito mais acentuadas que as dos demais vampiros, eu era objeto de estudo, Íslido estava pesquisando meios de se atribuir características genéticas dos vampiros aos braceletes mais novos, que dependiam da compatibilidade, e ao mesmo tempo queria fortalecer ainda mais minhas habilidades físicas.
Os vampiros, tais como os humanos, fortaleciam seu físico com o treino dos músculos, carregando a diferença de que suportavam treino muito pior, e podiam vir a ficar muito mais fortes em muito menos tempo. E para então, Íslido tinha uma máquina que usava descargas elétricas para fazer os músculos vibrarem a uma velocidade ajustável, para que me pudesse fortalecer ainda mais rápido. Primeiro me colocavam de pé dentro da máquina, que tinha uma forma ovalada, e era feita para acomodar um usuário disposto em pé. Prendia-me com os cintos, e então o instrutor ligava os canais de ferro nos meus músculos - sim, fincava-os. Eu tinha vários buracos no meu corpo. – Meu cérebro já havia associado o momento da conexão com a dor, a alavanca que permitia a passagem da corrente nas ligas de ferro nem precisava ser acionada para que meu corpo começasse a suar frio. Aquele era o suor do desespero. Eu sabia que iria ter que agüentar a pior das dores, todos meus músculos trabalhando numa velocidade sobrehumana ao mesmo tempo, a dor era indescritível, imagine que toda a dor que um ser humano sente ao se malhar numa academia durante meses fosse somada e concentrada em todos os pontos de seu corpo em um só segundo. Quando a alavanca era puxada, essa dor era imediata, eu nem gritava. O sangue descia da cabeça, e ia para todas as partes do corpo, os sentidos se esvaíam, a visão cambaleava, o corpo formigava todo, e meus membros ficavam inúteis, de modo que eu não podia fechar a boca ou pronunciar som algum. Tudo que eu ouvia era o zunido que a máquina fazia, que parecia ficar umas cem vezes mais alto. Perdia-se a noção do tempo. Não sabia quanto tempo durava a sessão, parecia uma eternidade, meus pensamentos divagavam e sonhavam com o momento em que a dor iria parar. Era interessante que o aparelho que era ligado à têmpora não permitia o corpo desmaiar, eu tinha de agüentar a dor acordada, até hoje não sei se aquilo era sadismo ou necessário para o fortalecimento físico. No fim da sessão meu corpo estava suando sangue, sintoma causado pelo trabalho exercido pelos músculos. Mais tarde quando me tornei estudiosa das pesquisas de Íslido, aprendi que a sessão durava cerca de quatro segundos. Quatro segundos! Pareciam dias, horas, não sei o que pareciam.
Após meu corpo estar inutilizado pelo resto do dia, era hora da tortura emocional. Na mesma sala, eu era deitada pelo instrutor em uma gaveta que ficava em um aparelho grande de forma retangular. Após deitada, ele conectava um capacete neural à minha cabeça, e então quando a gaveta se fechava eu tinha que enfrentar os meus medos. Aquele aparelho mostrava flashes de meu passado, mostrava quando fui separada de meus pais, os momentos em que fui açoitada quando ainda era pequena, a sala de pesquisa, e coisas assim. Também parecia uma eternidade. Meu corpo ficava semi-consciente. Dava a impressão que eu podia tirar o aparelho da cabeça, abrir a gaveta e sair, o corpo queria fazer isso, mas o cérebro não respondia. O único jeito de sair dali era quando o instrutor desligasse o aparelho e me arrancasse de lá à força. Mais tarde aprendi que o aparelho não decifrava os medos dos vampiros, na verdade Íslido criava os medos dos vampiros, dando ordem aos instrutores de açoitar-nos de maneira traumatizante em determinados momentos de nossas vidas, e estes eram gravados para cada vampiro separadamente, de modo que tudo o que o aparelho fazia era reproduzir tais gravações.
O objetivo deste aparelho era contribuir para a pesquisa dos braceletes mais novos, era necessário aos vampiros relembrar suas piores desventuras para que o medidor de compatibilidade pudesse gravar os dados do vampiro usuário no bracelete de modo eficiente. Tal como as experiências ruins nos eram únicas, assim seriam as características dos braceletes de compatibilidade. De modo que apenas o usuário poderia acioná-lo, entender e usufruir de suas características. E era comprovado que fazê-lo era muito mais fácil estando em situação psicológica desesperadora.
Quando eu saía da sala, meu dia acabava, eu não sentia vontade de fazer mais nada. Tamanha era-me a humilhação que qualquer manifestação de revolta era idiótica. Saía de lá como um rejeitado cão cabisbaixo, ganindo, com o rabo entre as pernas. Pasme, os instrutores ainda me faziam trabalhar na construção após o treino, só me davam uma hora até meus músculos descansarem.
Naquele dia, nesses minutos de descanso, quando eu saí do campo de batalha, vi Kibou sentado de costas na baixa mureta que separava a rua da calçada da entrada do pátio. Ele virou a cabeça e olhou por detrás do ombro, e acenou quando me viu. Mesmo contra a vontade, acabei indo até ele.
- Oi, boa luta que você fez antes, Oscora né? – perguntou ele em tom alegre.
- Sim, e você é quem mesmo? – Eu lembrava que o nome dele era Kibou, mas fiz a pergunta para enfatizar minha indiferença. Queria ser dispensada da conversa o mais rápido possível.
- Kibou. Eu sou o filho do Tanar. Conhece?
- Hum. - respondi, com um barulho leve. Tal resposta não esclarecia muita coisa.
- Tenho cinquenta minutos de descanso. – disse Kibou enquanto saltava da mureta e posicionava-se de pé. - Quer ir comigo até a muralha? - E sem esperar resposta foi indo em direção a ela.
Se eu não tivesse acabado de sair da sala de pesquisa, eu provavelmente teria inventado uma resposta grosseira e ficado por ali até chegar a hora do trabalho, mas como não estava raciocinando bem meu cérebro me levou a segui-lo até a muralha.
A muralha era o limite do sítio de construções, era também era construída de BCE. Tinha uns 8 metros e ficava na ponta do pico Madomanko, pico onde estávamos situados. Esta montanha era mais de três mil metros alta, e era íngreme de modo que um ser vivo não podia subi-lo pelos seus próprios esforços, e quanto mais descê-lo. E por isso estávamos presos ali. Mesmo que subíssemos e descêssemos a muralha, não conseguiríamos descer o pico. Lógico, a muralha era guardada por guardas humanos, mas o ponto para o qual Kibou estava nos dirigindo era um ponto cego, o qual eu já conhecia. Ficava perto de um prédio abandonado, que tinha sido a velha sala de cirurgias. Não havia nenhum guarda lá, e nem precisava. O pico ali era basicamente reto depois da muralha.
Muitas madrugadas eu varei por ali, eu gostava de subir a muralha e ficar apreciando a vista. Tinha treinado meus olhos de vampiro a enxergar no escuro. A madrugada era o momento em que nós tínhamos algum descanso, mas não éramos permitidos a sair de nossos aposentos, foi graças a meu conhecimento acentuado das rotas de rondas que nunca fui pega saindo do meu.
Meu organismo não necessitava de horas de sono diárias tal como os humanos, eu podia passar uma semana sem dormir, e usava a madrugada para sentar-me na muralha e desfrutar da pouca liberdade que ainda existia. Aquela vista me lembrava que existia mais na Auriga além de Madomanko, lugares onde as pessoas não eram açoitadas e torturadas gratuitamente, e bastava olhar para baixo para sentir como bastava um salto para ser libertada. Mas minhas asas geneticamente falhadas nunca me encorajaram a dar tal salto. O salto da liberdade.
Kibou, para a minha surpresa fez o mesmo que eu, subiu a muralha, e ficou olhando a vista, e então, após um momento de hesitação, fiz o mesmo, assentando-me a seu lado.
Ficamos sentados em silêncio por alguns momentos, olhando as cinzentas nuvens passearem rapidamente pelo amarronzado céu de Auriga, sentindo a brisa da liberdade soprar pelas nossas costas. De repente Kibou cortou o silêncio:
- Um dia eu vou sair daqui. Eu vou subir aqui e então descer o pico até a base, e me esconder no mato. Vou despistar os humanos, e vou ter uma vida nova na cidade.
- Que cidade? – perguntei. Não tinha cidade ali perto.
- Qualquer uma. Deve ter uma aqui por perto. - Kibou respondia mantendo seu sorriso simples, olhando para frente.
- E como vai fazer para descer? É impossível. - Minha voz ainda estava fraca por causa da sessão.
Kibou esboçou um sorriso mais acentuado.
- Não sei, vou usar minhas asas. Vou treinar elas.
Parei de olhar para ele, e me virei para frente, virei-me para aquele hórrido céu novamente.
- Eu até já pensei no nome que eu gostaria de usar lá embaixo. - começou ele - Hein, se você fosse escolher um nome para você, assim como os humanos fazem, qual seria? Já pensou nisso?
Era lógico que eu não havia pensado. Era inútil. Os humanos nos dão os nossos nomes quando nascemos, e nos chamam por aqueles nomes, e se ousarmos agir como humanos e nos darmos nossos próprios, somos castigados. Um nome não faz diferença, mesmo que seu nome tenha um significado não quer dizer que a característica da palavra será intrínseca sua. Os vampiros são muito mais que isso. Os vampiros são o conjunto de suas ações, de seus pensamentos, são seu exterior e interior. Qual seria meu nome seu eu pudesse me dar um? Nunca havia me importado com isso. Isso era dispensável.
Olhei de esguelha para o muro do prédio velho, que estava em péssimas condições, rachado e imundo. Na rápida olhada percebi uma pichação, provavelmente feita por uma das crianças filhas dos instrutores humanos. Não consegui captar a pichação inteira, só algumas sílabas: me...v e g...a ne, e a sujeira ocupava os demais espaços. Então respondi esta primeira palavra que vi à Kibou, como se já tivesse pensado alguma vez sobre o assunto.
- Mevegane.
- Mevegane? Soa interessante. O que significa?
- Não sei, só achei legal. – respondi, tornando a olhar para seu rosto. Ele ainda passava aquela impressão de inocência e honestidade enquanto mostrava seu riso branco em meo a seu rosto escuro.
- Eu queria me chamar Samayoi. Sabe o que significa?
- O que?
- Andarilho. E é isso que eu vou ser quando chegar lá embaixo. Vou vagar pelo mundo sem rumo, explorar toda a Auriga.
Este era o objetivo de garoto de Kibou, e provavelmente se eu conversasse com a maioria dos demais vampiros que estavam presos em Madomanko, eles diriam que possuíam sonho parecido. Era o efeito que nos proporcionava a ação de olharmos muralha abaixo, poder enxergar as terras de Auriga que não são controladas pelos instrutores, terras que os vampiros nunca chegaram a alcançar, e poder vê-las tão de perto, isso nos passava uma falsa esperança.
- Hein, como você consegue usar tão bem a espada sendo ainda adolescente? – perguntou-me de repente Kibou, ou Samayoi, como preferir.
- Não sei, genética acho. – Eu era um dos principais objetos de estudo de Íslido por causa da minha sorte em ter nascido avantajada em vários sentidos.
- Você precisa me ensinar a mexer com a espada, então podemos fugir juntos. – Kibou tinha franzido a sobrancelha e mostrado um sorriso mais vigoroso. Estava mesmo decidido a fugir. Pensar na possibilidade de sair dali era o que mantia seu espírito fortalecido.
- O que acha? - Emendou ele.
- Do que?
- Fugir juntos. – E então ele simplesmente saltou a muralha para o lado de fora, caindo em terra, se apoiando-se no pequeno espaço de chão apenas com os calcanhares. Ele ainda usava as botas de metal, usadas para o treino.
- Você está louco? – Falei, subindo o tom da voz. Você vai cair e morrer lá embaixo.
Kibou estendeu a mão esquerda para trás, na minha direção, e fez um sinal com a mão.
- Venha. – Disse ele.
Eu ainda não estava acreditando na palhaçada dele. Eu havia tentado fazer aquele trajeto uma vez, de madrugada. Eu usava botas de escalada que roubei de um guarda, e ainda levava alguns equipamentos para me dar apoio na descida. Quase desmaiava só de olhar para baixo, e não devo ter chegado a descer vinte metros. Estava de boca semi-aberta, sem saber exatamente como reagir.
- O que foi? Você não é homem suficiente para pular? – Disse ele em tom de brincadeira.
Aquele que nunca tiver avistado um vampiro, talvez não compreenda que um vampiro homem e um vampiro mulher são seres quase indistinguíveis. Para descobrir o sexo um vampiro deve fazer um teste de DNA no laboratório. Existem homens e mulheres de voz fina, de voz grossa, sem seios, com seios. Para um ser humano saber seu sexo, basta olhar para baixo. Já um vampiro sem teste de DNA pode se referir a si mesmo como ela ou ele em diferentes épocas, e isso não será de forma alguma designado estranho.
- Você é homem ou mulher? – Emendou. Eu na verdade até tinha feito o teste, pois era objeto particular de pesquisa, mas como condenada não ficava sabendo do resultado.
-Mulher. – Decidi. E até hoje gosto de me referir a mim como ela.
Pulei a muralha para o lado de fora, tal como ele, mas a minha intenção era agarrar o imbecil e levá-lo de volta à instalação.
Quando olhei o desgostoso rosto dele, mirado para baixo, parece que ele tinha notado o quão fora infeliz em sua precipitação, estava com os lábios cerrados, e lutava para se equilibrar em seus calcanhares. Para minha surpresa ele ainda não havia desistido, antes ele deu uma olhadela para o lado esquerdo e disse-me:
- Vamos tentar ir dando passinhos para o lado até achar uma parte mais larga para fazermos a descida.
Era eu quem estava na esquerda dele, de modo que para que ele pudesse por em prática sua brilhante idéia, dependia de que eu o fizesse primeiro. Meu cérebro me surpreendeu com sua imprudência acatando a sugestão dele, e então começamos a andar de lado, do lado de fora da muralha.
Cerca de vinte minutos depois, mais para frente encontramos uma parte em que havia um patamar natural na terra, de modo que ali, duas pessoas podiam andar lado a lado, e ainda sobrava um pouco de espaço. Algumas moitas ousavam nascer sobre o patamar, fornecendo-nos algum esconderijo caso fôssemos avistados pelos guardas, e de fato fomos.
- Fugitivo! Depressa, corram até ele! – Ouvia-se os gritos dos guardas. Eles haviam visto apenas Kibou, pois eu estava andando agachada, rente às moitas.
Três guardas rapidamente saltaram a muralha e começaram a correr de encontro a nós. Apesar de já termos entregado nossas espadas emprestadas para o instrutor no campo de batalha, tanto eu quanto Kibou ainda estávamos usando o uniforme completo do treinamento, de modo que podíamos agüentar um ou outro golpe de espada. Mas as espadas dos guardas não eram as mesmas SB's velhas que nos entregavam para o treino, eram espadas mais grossas e pesadas, cujo modelo se chamava OPH4. Aos guardas eram dados braceletes que usavam ondas de rádio que serviam para captar os movimentos bruscos que os guardas faziam no ataque, e adicionar correntes elétricas ao golpe da espada. Íslido aproveitava-se do fato de que os vampiros tinham certa aversão psicológica à corrente elétrica para fazer desta nossa fraqueza na captura.
Péssima escolha de modelo para aquela situação. A falta de espaço condenava o movimento do golpe, de modo que nossos corpos treinados só necessitavam esperar o tempo do assalto para nos virarmos, agarrarmos o braço investidor e tomarmos a espada deles, contragolpeando-o com a perna ou até mesmo com a outra mão, dependendo da posição. Os guardas estavam ali nos subestimando. Devido a seu costume de açoitar os vampiros deixaram-se levar a acreditar que eram mais fortes que eles. Estavam dependendo do físico, eles tinham em mão somente a OPH4, pois seus apetrechos de disciplina eram demasiado pesados para serem carregados em tão pouco tempo muralha abaixo. Para se ter uma idéia do que significava um ser humano depender do físico numa troca de golpes contra um vampiro, posso afirmar que se um de nós segurasse o braço que investisse o golpe da espada, e golpeasse com a outra mão, mesmo de armadura o guarda poderia fazer o movimento adequado da defesa, que o golpe da mão certamente o levaria ao chão. E foi o que aconteceu.
Para começar, não passou pela cabeça dos guardas que nós estávamos mais devagar que eles, mesmo nossos corpos sendo treinados todos os dias. Corremos mais lentos que eles propositalmente, pensando em executar este plano que acabei de explicar. Pelo menos foi o que eu fiz. Talvez os guardas não imaginassem que tínhamos algo em mente, pois estávamos sendo perseguidos e deveríamos estar desesperados. Mas um de meus costumes é pensar em planos para derrubar as pessoas mais próximas, seja em que tempo for, sempre estou preparada para lutar caso seja o caso de algum ser humano à minha volta me atacar, e caso todos os demais forem seus capangas. Penso em meios de me esquivar enquanto trabalho, enquanto tomo café ou quando pessoas passam por mim na rua, de modo que tal plano era trivial. Provavelmente também o era para Kibou, pois desacelerou junto comigo visando executar exatamente o mesmo movimento.
Quando os dois guardas que vinham na frente (não cabiam três lado a lado) chegaram, e atacaram, nossos ouvidos de vampiro nos permitiram saber o momento certo para parar, virar-nos, agarrar o braço investidor e contragolpear, tomando a espada, e para tal não precisamos olhar para trás antes de nos virar. De modo que ficamos nós dois com os modelos dos guardas e um deles caiu no chão. O outro que estava mais perto do penhasco deu o salto da liberdade forçadamente.
O guarda de trás, esperto, parou e começou a recuar, enquanto dava a notícia de fuga para os demais guardas cujo rádio recebia transmissão de seu canal.
- Rápido, do lado de fora da muralha, atrás do velho prédio da heráldica o Kibou está fugindo e...
Antes que terminasse a frase, pulei de encontro a ele, e desferi um golpe seco com a OPH4, da esquerda par a direita, de modo que faria força para o corpo do guarda cair penhasco abaixo. Ele nem conseguiu reagir, o rádio e seu corpo separaram-se nos ares de Madomanko. Se tudo estivesse bem, eles ainda não sabiam que eu tinha fugido, apenas sabiam sobre Kibou.
Aproveitei rapidamente que Kibou estava parado olhando o corpo do guarda humano cair, e ultrapassei-o, continuando a correr, enquanto gritei:
- Rápido! – Como se o estivesse convidando a vir atrás de mim. Na verdade eu queria era ficar na frente dele para que os guardas vissem apenas ele correndo, e então no momento certo eu ficaria escondida atrás da moita, e após a captura dele eu voltaria para a instalação como se nada tivesse acontecido, pois ainda estava no meu período de descanso.
Isto era o mais sábio a ser feito, pois por mais que houvesse aquele patamar de terra para corrermos, ainda era impossível descer o penhasco. O pedaço de terra sobrando apenas fazia parte do pico, era a muralha que tinha sido construída um pouco mais para trás. O patamar não iria se estender até a parte íngreme para facilitar a fuga.
Aos poucos, o espaço que sobrava foi ficando mais curto, de repente só cabia um vampiro correndo. Eu ainda estava na frente de Kibou. Ouvimos os guardas chegando detrás, estavam com veículos e apropriadamente armados desta vez. Olhei para um pedaço de terra mais alto encostado na muralha, e aproveitando que a muralha era mais baixa naquele local, apressei-me em pegar um apoio e subir a muralha para o lado de dentro.
- Oscora! – Gritou Kibou, enquanto corria.
- Não vai dar! – Gritei de cima da muralha, e então deixei meu corpo deslizar muralha abaixo, preparando-me para agarrar-me com a ponta das mãos, de modo a poder ver o que estava acontecendo do lado de fora sem ser vista.
Vi os guardas se aproximando de Kibou com aqueles veículos dos humanos, que voavam a alguns centímetros do chão, eram uma espécie de moto aérea. Não tinham rodas, tinham um guidão e suportavam apenas o motorista. E quando eles estavam chegando perto, e quando o patamar estava ficando mais estreito, Kibou apenas arrancou o seu colete, liberando as suas costas, abriu os braços, e deixou o corpo cair. Saltou de encontro à brisa fria de Madomanko, deixou a ilusão de a liberdade o enganar. Não sei se ele tinha mesmo treinado as suas asas, mas não deu para ver onde ele havia caído. Os guardas voltaram imediatamente, ouvi-os dizendo que iriam procurar o corpo depois.
Voltei para a construção e fiz o meu trabalho como se não soubesse de nada do ocorrido, conforme o previsto. Trabalhei nas instalações, ajudei a carregar as pedras, agüentei ver os rebeldes vampiros serem açoitados, mas durante todo o resto da noite, uma parte de mim ficou aborrecida com a queda de Kibou.
Naquela madrugada os guardas ainda não haviam procurado o corpo dele, então como eu não precisava do sono, usei da minha acentuada erudição em sair de fininho do aposento para chegar até o lado de fora da muralha, atrás da heráldica, para procurá-lo.
Estava chovendo abundantemente. Os humanos não implantavam os chips em nós vampiros, pois não precisávamos de proteção, então nós realmente sentíamos os pingos escorrerem pelo nosso corpo. O excesso de água dificultava minha locomoção, minha visão, deixava a terra escorregadia, enferrujava aos poucos a minha armadura de treino.
Aquele idiota. Me fazendo andar na chuva deste jeito.
Era isso que me fazia odiar os vampiros, eles eram egoístas. Se eles tivessem se unido, e feito uma revolta decente, se tivessem dado algumas vidas de sacrifício, poderiam ter sido libertados dos algozes humanos. Mas não, eles gastavam seus vívidos esforços em tentativas frustradas de fugas como aquela que eu havia acabado de testemunhar, havia diversos casos de vampiros que tinham decidido bater em alguns guardas, quebrá-los em pedaços, estando em meio à construção, onde os instrutores tinham todo o suporte e equipamento em abundância. Por que não conversar e organizar? Por que agir sós? Nós éramos claramente superiores a eles, bastava um ataque organizado direcionado a tomar os equipamentos de disciplina, e eles eram história.
Já outros vampiros se rendiam humildemente aos humanos, aceitando o açoite. Eram como cavalos que acostumavam a ser chicoteados para carregar a carroça, não esperavam outro tratamento, não visavam se libertar. Simplesmente aceitavam a meã vida que levavam, deixavam os humanos sugarem o seu sangue.
Desta forma eu tinha tanta raiva dos humanos como dos vampiros. Sentia-me superior a ambos, e acreditava que podia me livrar de ambos, para tal só precisaria ter uma posição mais elevada ali em Madomanko.
Após saberem que o guarda transmissor da notícia havia sido morto, foi dada a ordem de execução de Kibou, e os vampiros também eram orientados a auxiliar na execução, se este aparecesse no seu distrito de trabalho. Executar tais tarefas acarretava em prêmios para os vampiros, e sendo os vampiros objetos particulares de pesquisa, como era meu caso, tais privilégios eram ampliados.
Os humanos acreditavam que Kibou já estava morto e que seu corpo jazia algures nos íngremes barrancos de pedra de Madomanko, mas meu instinto de vampiro me dizia que ele estava vivo, machucado, esperando a morte o alcançar, e bastava eu alcançá-lo e tomar o lugar desta para que eu ganhasse algum crédito dos humanos. Quanto mais confiança eu ganhasse, mais seria fácil de eu sair de Madomanko por mim mesma.
Doía saber que eu teria de ir contra um ser da minha espécie, mas ninguém mandava ele ser tão burro. Se ele era tão habilidoso assim, novamente me pergunto: Porque não conversar e armar alguma coisa? Porque esta idiótica fuga repentina?
Acreditava eu que estava caminhando na torrencial chuva para encontrá-lo com a finalidade de dar cabo nele e receber unidades de confiança, mas ao mesmo tempo algo me incomodava, algo me pesava por dentro, me dizia que não deveria tê-lo deixado sozinho. Uma parte de mim me preocupava com ele.
Cheguei ao ponto onde o havia visto saltar, então me agachei, e com a ajuda das mãos comecei a descer cautelosamente. Minha espada roubada estava amarrada às minhas costas. Ao mesmo tempo em que descia comecei a pensar em diversas coisas comigo mesma. "E se ele tivesse conseguido fugir?" Eu não me perdoaria, martirizar-me-ia por não tê-lo dado crédito e por ter voltado para a sela. Não suportaria o fato de alguém ter escapado antes de mim. "E se ele tivesse caído?" Apenas não conseguiria achar seu corpo, e isso seria mais uma prova de que é impossível escapar de Madomanko. Seria realmente impossível escapar dali? "E se eu abandonasse a busca e tentasse descer o pico?" Mas naquela chuva? Com certeza escorregaria. "E se as asas realmente pudessem ser treinadas de modo a poder funcionar?" Porque Kibou teria tocado no assunto se assim não fosse? Será que ele tinha pesquisado? Será que ele tinha realmente treinado as asas?
De repente minha bota escorregou e meu corpo foi levado uns três metros para baixo, e o susto carregou minha alma mais de três mil. Meu coração estava saltando fora do corpo. Eu havia segurado numa planta rasteira, que graças a um milagre estava suportando meu peso. Olhava para baixo e não via como apoiar meu corpo decentemente. Olhei por cima do ombro, e não enxerguei modo fácil de voltar onde estava. A água tentava me empurrar penhasco abaixo.
Aquele idiota. E pensar que estava me arriscando de tal modo por culpa dele.
Parei e raciocinei um pouco. Como o corpo dele não estava ali, provavelmente estaria mais abaixo. Como não havia maneira de subir de novo, o único modo era descer e continuar a busca. Se eu deixasse o corpo cair aconteceria das duas uma: Na primeira possibilidade eu conseguiria achar outro espaço logo mais abaixo onde poderia me agarrar com facilidade, ou talvez até mesmo outro patamar, e se assim fosse, com sorte acharia Kibou, ou se não o fizesse poderia andar mais um pouco de lado, até achar rochas cavadas o suficiente que me permitissem escalar o pico para cima até a muralha. Na segunda possibilidade eu cairia para todo o sempre, dependendo de minhas asas funcionarem para me salvar. Não acreditava que as asas fossem funcionar, eu nunca as havia utilizado, os humanos as deixavam impotentes. Se elas por um milagre funcionassem eu não precisaria de mais nenhum plano para deixar Madomanko, e se não fosse o caso nada teria a se perder. Significava que eu com a minha aclamada superioridade só tinha conseguido chegar até ali, que era incapaz de sair por mim mesma da menor das situações de crise. E se assim fosse, provavelmente não teria utilidade continuar viva, pois era impossível que conseguisse inventar um jeito de escapar da garra dos algozes humanos sendo que eu não conseguia por mim mesma nem escalar dez metros de montanha novamente até a muralha.
Sem mais pensar muito comecei a deslizar meu corpo de costas, esperando que fosse a primeira opção.
Para minha sorte, logo mais embaixo havia outro patamar natural, no qual eu podia me equilibrar com os calcanhares. O patamar ficava um pouco mais grosso na direita, de modo que comecei a dar passos laterais para tal direção. Tal pedaço de terra era da mesma natureza que aquele no qual eu e Kibou havíamos corrido dos guardas, e da mesma forma começava a servir de casa a algumas moitas.
Já estava começando a andar normalmente, pois a terra já era larga o suficiente para caber uma pessoa. Vez ou outra as pedras molhadas faziam minha perna escorregar, mas meu treino me permitia compensar o corpo para me equilibrar corretamente. Logo avistei Kibou.
Seu corpo estava encostado numa moita, encharcado, sujo de barro. Ele estava enfiado entre duas pedras, sua perna estava machucada, estava desacordado.
A raiva começou a tomar conta de mim. Não sei se era porque eu havia acabado de quase me matar para ter uma chance de resgatar o corpo falido daquele imbecil, talvez fosse a raiva que eu nutria pela falta de união da minha raça, talvez fosse o ódio que eu tinha dos humanos, que nos faziam ter que arriscar nossos corpos daquele jeito para tentar sentir o sopro da liberdade, então pensei em fazer o que eu havia vindo para fazer. Saquei minha espada sem acordar Kibou.
Seria uma morte agradável, ele não chegaria a sentir que estava morto. Tinha saltado o salto da liberdade, provavelmente teria fechado os olhos antes de fazê-lo, e quando abrisse os olhos a encontraria.
Seria uma morte agradável e indolor, pois eu desferiria apenas um golpe. Golpearia sua cabeça mesmo, numa estocada. Seria uma ferida feia, mas era necessário que eu o matasse daquele jeito se quisesse fazê-lo sem o permitir sentir a agonia. O corpo dele não ligaria em ficar com um buraco na cabeça, a alma dele já teria deixado o corpo após eu estocá-lo.
Minha mão começou a tremer. Eu já havia matado antes. Eu na verdade havia me especializado nisso, saía de madrugada e matava um ou dois guardas humanos, e apagava meus rastros. Nunca ouvi notícias de alguém pesquisando a morte deles, ou se preocupando com tal. Eu fazia isto para treinar, e usava a mesma desculpa de derrotada: Se eu fosse pega significava que eu com minha aclamada superioridade só tinha conseguido chegar até ali. Fazer o que? Eu era uma vampira adolescente de treze anos.
Aliás, acabei de narrar que tinha empurrado guardas penhasco abaixo, de modo que não deves guardar dúvidas de que eu já era experiente em matar algozes e outros seres humanos. Mas agora matar um vampiro era diferente. Um vampiro era sangue do meu sangue, era a minha espécie. Era por quem eu voltaria para libertar, depois que tivesse vivido fora de Madomanko e juntado um bom exército. Não cheirava certo ter que dar cabo da vida de um ser de minha própria espécie.
Aproximei-me lentamente de seu corpo até chegar na sua frente. Senti um frio na espinha.
Seria uma morte agradável, indolor e merecida. Depois de tudo que eu tive que fazer para chegar até ali. Porque raios ele tinha que tentar fugir daquele jeito? Porque me disse para vir junto? Eu nem sabia ao certo se conseguiria voltar lá em cima, ainda mais carregando seu corpo para depois mostrar aos instrutores. Eu estava me sentindo uma idiota por ter saltado esperando encontrar um espaço da montanha para meu corpo se equilibrar, eu tinha arriscado a minha vida, a minha vida que eu não trocaria pela de ninguém, para tentar procurar o corpo de um vampirozinho criança que mal sabe raciocinar direito. Um vampiro que tinha feito isso comigo mesma, com o meu orgulho, um vampiro como esse teria uma morte merecida.
Apenas fitei o corpo de Kibou à minha frente. A chuva escorria das pedras até a sua cabeça. A chuva castigava a nós dois. Apesar de eu não poder afirmar que eu tinha gostado daquele rapaz, eu devo dizer que algo nele despertou a minha curiosidade. Não tinha sido à toa que eu o tinha seguido até a muralha, e tentado fugir com ele. Foi como se o seu forte espírito tivesse revigorado o meu anseio pela liberdade.
"Este foi o primeiro vampiro com o qual conversei" Pensei comigo mesma, e havia sido mesmo. Eu não tinha aprendido a me comunicar quando meus pais foram tomados de mim, e desde então apenas tinha obedecido aos humanos, guardando meus rancores e pensamentos comigo mesma.
"E será ele também o primeiro vampiro que eu matei". Franzi minhas sobrancelhas e segurei minha espada com mais força, com mais decisão.
E então Kibou acordou.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro