Lâmina da Refrigeração
A LÂMINA DA REFRIGERAÇÂO
Narrado por: Sarisa
Olá. Sarisa de novo. Sentiram minha falta? Deixem-me contar-lhes hoje o que aconteceu logo depois da noite em que a Vi me salvou das garras de aço do mágico maluco.
Era de manhãzinha. Não sei se acordamos naquele horário porque estávamos acostumados, se ouvimos os pássaros piando ali fora, ou se um de nós acordou e foi fazendo barulho para acordar o próximo, como um efeito dominó, mas o fato é que acordamos meio cedo. Havia acabado de clarear o dia.
Mas para nós estava ainda escuro, porque o lugar que escolhemos precisava de janelas, portas, ar e tudo o mais. Era o quarto andar de um prédio abandonado, todo soterrado por grandes pedregulhos. Não havia nada lá a não ser nossos utensílios de sono, era como um estacionamento vazio, só que no meio do prédio. Nós não conseguíamos ver ao certo seu interior nem mesmo àquela hora da matina. Isto de certa forma era bom, pois nem quero imaginar os tipos diferentes de insetos que comportava aquele lugar pávido.
Acordei, bocejei, me espreguicei, e deitei de novo, para continuar a dormir. Com isso ouvi Perseu dizer:
- Cutuque ela de novo, por favor.
E então abri os olhos e disse, meio que por instinto:
- Não.
- Você tem que levantar, Sarisa. Queremos chegar ao setor 74 antes que as pessoas comecem a perambular pela rua. Estamos sendo procurados, sabe.
Neste momento perdi meu sono. Apenas fiquei ouvindo os quatro arrumarem suas coisas esperando minha cabeça começar a se acostumar com a realidade de novo, antes de levantar eu mesma e começar a arrumar as minhas. Antes disso ouvi Perseu comentar:
- Ela sempre é assim meio preguiçosa... – Ele devia estar falando com a Vi ou com a Atalanta. Porque será essa mania de esclarecer as más impressões aos recém chegados? Semear a discórdia ou algo do tipo? Não que eu realmente me importe com isso, apenas um questionamento.
Levantei e comecei a cantarolar enquanto arrumava minhas coisas para a viagem. Estava dobrando todas minhas roupas para que elas também coubessem na oncinha. Já tinha dobrado meu colchão e saco de dormir, e organizado todo meu estojo de maquiagem. Hidratante, cremes facial e para os olhos, estojinho de batons e vidrinhos de loções, cada coisa posicionada no seu lugar específico dentro do estojo. Todas elas eram tinham a tecnologia de dobra supercompacta e superconveniente que foi desenvolvida há uns quarenta anos atrás. Era perfeito para que nós levássemos nossas coisas em uma pequena bolsa ou malinha, ou até mesmo nos compartimentos das armaduras, conforme Perseu fazia. Não sei como ele fazia todas as coisas dele caberem dentro dos braços.
Era uma caminhada curta de umas duas horas provavelmente. Mas teríamos que tomar o cuidado para não sermos vistos, em especial pelos guardas da guarita de entrada do setor.
- Não temos comida? – perguntei. Meu estômago estava roncando levemente.
- Não, Sarisa. – Respondeu Perseu de má vontade. Ele não estava realmente com muita paciência para me aguentar naquele dia. Ou estava tentando ser engraçadinho para as outras meninas. Paciência.
Alguns minutos depois, após estarmos todos prontos, estávamos alinhados na pracinha onde havíamos comido os legumes de Atalanta na noite anterior, tomando coragem para andar até o setor 74, local onde o amigo de Perseu estava. Estava uma manhã clara e agradável lá fora. A brisa nos refrescava e compensava o sol que batia em Kebebassa, e os cantos da natureza quebrando o silêncio da cidade fantasma preenchiam-nos com alegria e nos faziam esquecer da situação na qual nos encontrávamos.
- Chegando lá temos que comprar algo que nos cubra o rosto como roupas com capuz ou chapéu. É bom vocês darem uma diferenciada no penteado também. – Disse Perseu às damas ali presentes.
- Como se ninguém fosse notar nossas espadas e armaduras. – Observou Atalanta, se virando para ele. Perseu sorriu de leve.
- Teremos que dar um jeito nisso também. Acho que podemos colocá-las numa carroça e fingir que estamos carregando alguma coisa.
- Esse truque nunca fica velho, não é? – Completei. Um friozinho me veio na barriga só de pensar em alguma coisa dar errado. Isso era viver com Vinar, Mantel e Perseu, o medo dos planos errados fazia parte do dia a dia.
Sem que antes percebêssemos estávamos seguindo Perseu, que já estava se dirigindo à saída sudeste num ritmo folgado. Enquanto andávamos, ele ia comentando:
- Teachmor vai estar lá com algumas coisas que foram desviadas pela organização, então iremos poder talvez usar algumas delas.
- Ora, temos um informante na organização? – Perguntou Carlinho. – Quem seria? – Perseu não respondeu de imediato.
- Vinar? – Arrisquei.
- Talvez seja ele, mesmo. – Disse Perseu em tom pensativo, coçando de leve o cavanhaque com o indicador. Mantel espantou-se.
- Ora, você também não sabe? – Exclamei surpresa.
- Não tem importância. Teachmor sabe, e teremos a resposta daqui a pouco.
Todos silenciaram por um instante. Ficamos ouvindo os múltiplos passos na areia. Até que a Vi quebrou o silêncio:
- Na verdade eu... Desviei algumas coisas para Teachmor quando ainda estava na organização...
Nossos passos foram amenizando. Perseu comentou, movendo os olhos na direção dela, à esquerda dele.
- Pois, é. Agora tudo faz sentido. Porque quando estávamos tentando livrar a barra de Vinar no setor 68, parecia que tinha mais alguém de dentro da OSSP abrindo as portas para nós. Quer dizer que já faz tempo que você vem lutando contra a organização?
Vinar era outro amigo nosso que no momento estava numa operação de espionagem, tentando colher algumas informações sobre como fazer a compatibilidade funcionar corretamente. Era uma pesquisa das mais recentes, que tinha como sede o centro de pesquisa, um pouco mais ao sul do setor 64. E por isso que havíamos nos separado após o incidente. Vinar deveria nos encontrar em uma semana, nos aposentos de Teachmor, claro, caso não houvesse imprevistos.
Como já devo ter dito, pretendo contar sobre o incidente 68 em algum momento que não agora, mas para esclarecer esta separação, vou resumir um pouco do ocorrido: Perseu havia conhecido Vinar como bastardo no centro de pesquisa. Ele (o Vinar) fazia parte de um grupo de cobaias que tinham conseguido manobrar as manipulações genéticas de certa forma, tinham conseguido fugir e tinham virado aldeões morando nos confins de uma montanha, a fim de não serem descobertos. Chamam essa montanha agora de "Cadeia do Ocaso", ou às vezes, menos poeticamente, de setor 58.
Mas após descobrir o esconderijo, a OSSP fez uma emboscada para conseguir capturar essas pessoas de novo, não tanto porque fossem fugitivas, mas para por novamente as mãos sobre as cobaias que tiveram sucesso na manipulação. Se não fosse por isso, eles seriam aldeões até hoje e a organização faria vista grossa.
Depois de mais um tempo preso, Perseu ajudou Vinar a escapar, e eles acabaram então tendo conhecimento de uma máquina estimuladora que ajuda os seres humanos a dominar os aparelhos de compatibilidade. Só que a organização não está usando esse aparelho nas crianças do orfanato e nem nos experimentos humanos do centro de pesquisa, e Vinar está tentando descobrir o porquê. A idéia é tomarmos emprestados alguns utilitários que nos permitam trabalhar com a nossa compatibilidade com segurança, pois tanto Perseu quanto Vinar têm já a sua espada de compatibilidade e não podem usá-la por não saber como. Ao invés disso Perseu usa uma Ephens DRK combinada a um uniforme de soldado ultrapassado, e Vinar tem uma DRK2 e um modelo novo. É... Estava na hora de trocarmos nossos equipamentos.
- É... Já faz um tempinho. – retrucou Virtude entre tímidos risos. Virtude estava mais retraída naquele dia.
- E os itens que tomamos emprestado... Vão para Teachmor? – Comentou fortuitamente Mantel Carlo, que estava o mais à direita. "Tomar emprestado" era já um jargão nosso.
Escutamos o vento soprar entre nossa conversa antes de Perseu responder com outra pergunta:
- Os nossos?
- Não. Os que Virtude desviou.
A Vi tentava desviar os olhos de nossos rostos com esses comentários. Olhava os pássaros, a areia, a paisagem...
- Sim. Eu entreguei-os para ele também. – Disse ela em tom mais casual do que mostrava seu rosto.
Perseu, ainda liderando o passo disse evitando olhar para a Vi para deixá-la mais confortável:
- Que bom. Assim poderemos trocar nossos equipamentos todos quando chegarmos lá. – Ele tentou fazer a conversa parecer casual, para que a Vi não se sentisse muito como oficial corrupta. A idéia de tomar emprestado já era natural para nós três membros de sangue da facção, mas Virtude ainda corava de leve quando se tocava nesse assunto. Atalanta então estava andando cabisbaixa, sem saber ao certo onde enfiar a cara.
Quer dizer que a ex-oficial está carregando sua aguçada experiência política para o nosso lado, agora? – disse eu, num tom de brincadeira. Perseu e Atalanta também sorriram para ela, esperando a resposta.
- É. Pois é... – Disse ela, sem saber o que responder. Sorriu também e ficou vermelha. E então teve alguns segundos de silêncio constrangedor. As novas recrutas ainda não estavam exatamente á vontade, mas acabariam se acostumando. Bom, pelo menos ela não soltou um "não quero mais tocar no assunto", o que permitiu ao Perseu ainda ousar cutucar mais um pouco:
- Mas agora estou curioso, como foi que você fez para mexer os pauzinhos para nos ajudar naquela hora? Digo... Os equipamentos estavam todos lá na hora certa, esperando pela gente. E depois que saímos também...
Nos próximos minutos de caminhada ela ficou relatando para gente como que ela tinha conseguido, e isso foi bom porque ela foi se soltando um pouco mais, sem se apegar muito à culpa. Não era bom sentir culpa por ter roubado da organização que sobrevive roubando da gente. Na verdade estávamos apenas pegando nossas próprias coisas de volta, apenas isso. Aquela pergunta de Perseu foi uma das poucas coisas que ele falou que foram bem colocadas.
No entanto não é proveitoso que eu transcreva aqui os relatos da garota pura de olhos dourados, pois é preciso se saber como foi que ocorreu o incidente no setor 68 para se ter uma base. Então vamos deixar esse relato para depois e pular para a próxima parte:
Chegamos à entrada do setor 74. Não era nada maravilhoso, e nem tinha um cartaz de boas vindas nem nada parecido. Apenas era um grande cercado de pedras no meio do deserto. As pedras cercavam o setor desde uma beira da praia até a outra, reservando pouquíssimo espaço para se atravessá-la sem poder passar pela cidade. As pedras formavam uma espécie de cercado, sendo os muros bem altos, com cerca de cinco ou seis metros. Os muros eram bem concisos, bem feitos. Apesar de já serem meio antigos e terem sofrido bastante com o vandalismo, ainda não se tinha nenhuma parte com um buraco onde se pudesse esgueirar adentro. Havia câmeras de vigilância penduradas aos redores da muralha, e tanto na porta de entrada quanto na de saída tinha uma guarita com um guardinha local, que não especificamente trabalhava para a organização, mas respondia para ela. Seria difícil passarmos por ali despercebidos.
O portão de entrada estava aberto, então passamos os cinco pela guarita sem dar a menor satisfação. Certamente a OSSP teria pendurado nossas caras nos postes para que as pessoas ganhassem algum prêmio por nos encontrar, e o guardinha deveria estar de olho duplamente aberto para não deixar-nos adentrar, mas não foi assim que ocorreu. O guarda era um rapaz novo, sonolento - acabado, para ser mais exata - e com cara de entediado, e deveria estar tão entediado que nem teve o trabalho de tirar a mão do queixo e olhar de relance na nossa cara quando atravessamos a fronteira.
A visão interior do setor 74 era terrível: A poeira que se levantava com as passadas dos residentes pairava no ar, e a impressão era de um lixão enorme, com um amontoado de mendigos arranjando-se para ter um lugar onde ficar. O setor era construído – Se é que essa palavra pode ser dita – em cima dos resquícios de uma cidade pré-guerra, de quando as cidades ainda eram evoluídas e as pessoas instruídas. Havia vários prédios altos, construções, ruas asfaltadas, tudo puído, amontoado e em estado de ferrugem. As casas das pessoas eram cabanas de madeira trancafiadas ou de alguma forma encaixadas em cima dessas construções decadentes. Não se usava mais as máquinas pesadas, e nem se tinha aonde colocá-las, então simplesmente ficava tudo aglomerado de qualquer maneira e exposto ao relento.
Os moradores de setor não tinham nenhum auxílio da OSSP a não ser a proteção. Não possuíam auxílio médico, moradia, nem nada do tipo. Apenas tinham que arranjar suas vidas ali, e se quisessem remover os pedaços de concreto que dominavam o local, teriam que tirá-los de lá com as próprias mãos. A organização passava de vez em quando lá apenas para coletar os impostos, e verificar se havia alguma anomalia. Era proibido fundar sociedades em lugares que não tivessem a denominação de setor, que não estivessem desfrutando da segurança oferecida pela OSSP. Tinha outras poucas leis que eram estabelecidas para controle, sobre as quais os infratores recebiam punição diretamente dos oficiais da organização. Coisas perfeitamente simples, como "é proibido matar, assaltar, ou etecetera." Afora isso, todo o resto era permitido. Prostituição, clubes de azar, brigas pequenas, todas essas coisas era o setor que deveria cuidar por ele mesmo. Em outras palavras, as terras de Auriga eram governadas pelo caos, pela lei do mais forte, a lei do mais esperto. O interior dos setores eram os lugares mais perigosos que existiam, pelo menos para uma pessoa desarmada.
Roupas, regalias como variedade de mobília, veículos, essas coisas já não pertenciam mais à população. As fábricas tinham sido atacadas e cessado a produção há muito tempo atrás. As pessoas produziam suas próprias vestes, cultivavam ou caçavam sua própria comida, e aqueles que não podiam, pagavam por isso para as que podiam, por preço a combinar, como um escambo. Sobrevivia apenas aquele que podia oferecer alguma coisa em troca. Dito isso, é de se esperar que os residentes tivessem uma aparência uniforme, maltrapilha, e fosse mal instruída, tal como de camumbembes, e não era diferente disso. Aonde eu tinha conseguido as minhas roupas diferenciadas? Ora, eu era terrorista viajante e tinha uma espada, era a elite da sociedade.
Andamos apenas uns oitocentos metros no interior do 74, e foi o suficiente para fatigar o mais disposto dos andarilhos. A poluição e a poeira enteiravam a atmosfera, e deixavam o ar rarefeito. Uma diferença enorme se comparado à sensação da agradável brisa e sopro do vento que estávamos sentindo lá fora.
Entramos todos juntos numa das poucas lojas de roupas, que ficava numa cabaninha de pau a pique, meio grandinha, se comparada às residências locais. Os fregueses ficaram nos olhando de maneira estranha. Nós tínhamos realmente acatado a idéia da carroça para esconder as espadas, mas provavelmente nos encaravam por estarmos ainda usando armaduras, braceletes, e sobretudo por estarmos limpos.
A loja consistia de vários mesões, com um empilhado de mudas tecidas manualmente em cada um. As pessoas então iam escolhendo, e depois pagavam ao dono da loja, que ficava observando. O interior da loja era iluminado a candelabros, e não tinha provador nem nada do tipo. O freguês apenas tinha que acertar o seu tamanho na primeira comprada.
Dos fundos, ao avistar-nos, o dono da loja veio à nosso encontro, e se dirigiu à Perseu:
- Em que posso ajudá-los?
Era a Vi que estava no meio da formação, e sua capa da OSSP deveria ter passado a impressão que ela estava liderando-nos, mas o dono da loja foi falar com Perseu mesmo assim.
- Precisamos de umas capas com capuzes, eu creio.
Os fregueses da loja nos fitavam e tentavam captar alguma coisa da breve conversa, que era realizada em tom baixo. Não era comum que o dono da loja se oferecesse para ajudar os fregueses. Só era natural prestar auxílio à oficiais, ou membros da nobreza.
- Entendo, oficial. – Disse o dono da loja mais alto do que necessário – Siga-me até a parte de trás, sim?
E então dirigimo-nos até um pedacinho da loja que ficava em um cômodo separado, atrás de umas cortinas.
- E então? – perguntou Perseu.
- A porta está aberta. Vocês vão pegar uma roupa que eu trouxer, e então se dirigirão para lá um de cada vez, com intervalos de cinco ou dez minutos cada um, e não todos juntos, de uma vez só, como entraram aqui, tudo bem?
- Sim senhor. – Revidou Perseu categoricamente.
- Ótimo. Vou buscar as roupas. – Disse o dono da loja em tom misterioso e deixou-nos ali naquela salinha, passando novamente pelas cortinas.
Ficou claro que aquele era Teachmor. Nós não podíamos entrar nos aposentos dele correndo o risco de sermos avistados, por isso tínhamos que arrumar algum disfarce e andar em grupos separados, para que as pessoas negassem ter nos visto, quando fossem interrogadas pelos integrantes da OSSP.
Ele voltou com nossas vestes adicionais, e procedemos conforme ele instruiu, e então dentro de mais ou menos meia hora estávamos todos no interior dos aposentos de Teachmor. Quando ele abriu a porta, esgueirou-se para dentro e a fechou, Perseu então abriu um sorriso largo, e abriu os braços:
- Grande teachmor!
- Meu jovem companheiro, como está? – Perguntou Teachmor indo de encontro ao abraço do líder da facção. Teachmor usava um tom completamente diferente do sombrio que havia nos dirigido no interior da loja.
- Está tudo muito bem, eu presumo. Recebeu todas as minhas notícias?
- Por suposto. E estes: Seriam Vinar e a jovem Atalanta? – Falou ele olhando em direção à Atalanta e Carlinho. Emendou, então, fitando a jovem de cabelos dourados: - E o que você está fazendo aqui? Tudo bem? – Sorriu.
Eu intervim com o que parece ser uma indagação não exatamente propícia:
- Está tudo bem deixar a loja às custas dos fregueses?
Teachmor respondeu abanando uma mão, sem perder o ar solidário:
- Minha auxiliar está lá, não se preocupe. Não que exatamente precisemos do dinheiro arrecadado pela loja. – piscou um olho para mim ao terminar esta frase.
- Mas entrem. Vamos sair do corredor. – Disse ele enquanto saía do Hall em direção à sala, e nos convidava a segui-lo com um gesto.
A casa dele era diferente das outras por fora, por não ser de madeira, mas sim consistir na verdade de um aproveitamento de uma das construções da cidade soterrada. Não havia muitos abrigos assim, pois faltava conhecimento aos moradores para cuidar da manutenção da mobília high-tech: As portas automáticas, as luzes cinéticas, entre outros apetrechos complicados de se utilizar, sem contar com os rasgos e buracos que haviam se formado nas paredes, chão e teto, para os quais se precisaria de peças exatamente iguais para poder substituí-las com decência. E o modo como era feito o chão naquela época era bem diferente de um assoalho de madeira. Era puro concreto, de mais de um metro, e a base feita de BCE. As fábricas de BCE eram limitadas a servir o centro de pesquisa e os sub-laboratórios da OSSP, por haver apenas duas restantes após o Horologium.
No entanto conhecimento para arcar com esses detalhes era o que não faltava à Teachmor, pelo que Perseu havia nos contado, e por isso ele podia se dar o luxo de possuir uma casa das épocas de ouro.
Teachmor não parecia ser tão velho quanto Perseu tinha nos dito que ele parecia. Parecia mais ou menos da idade de Carlinho. Só um pouco mais velho, aliás. Ele tinha o cabelo branco, e Carlinho não, talvez apenas por isso. Teachmor carregava a inteligência na sua feição. Não que ele usasse óculos, de armação grossa, tivesse um penteado esquisito ou algo parecido, mas seus olhos emanavam a sabedoria de um modo de dar inveja a todo ancião. Afora isso ele era um dono de loja comum por fora: Tinha o corpo mirrado, se vestia com roupas de pano como morador de setor, e tentava cobrir os cabelos brancos com o capuz da capa.
Sua residência, por outro lado não era nada comum ou parecida com as casas dos residentes. Só na sala onde nos encontrávamos havia aparelhos que causariam pelo menos prisão perpétua a quem os possuísse. A sala era dois degraus abaixo do hall, e era ampla, contrastando com a impressão estreita que o corredor passava. Havia ventilador elétrico, lâmpadas cinéticas, sofás de alta qualidade dispostos à esquerda, um aparelho projetor de trinta anos atrás, também elétrico à frente dos sofás, e a sala se terminava na sala de estar, do lado direito, apenas comportando umas poucas máquinas proibidas entre ela e a sala. Havia encostada na parede uma copiadora de dinheiro. O dinheiro que os setores usavam era uma moedinha simbólica de troca, que era fabricada pela própria OSSP que havia sido inventada apenas para que os moradores pudessem ter um modo fácil de carregar e trocar seus pertences. E a menos da fábrica de moedas da OSSP, ninguém possuía uma maquininha daquela, que fazia tais moedinhas usando ferro e latão. Pena de fraude: cerca de quinze anos de reclusão. Devido aos danos que o Horologium causou às usinas elétricas, e usinas de energia de outros portes, apenas estabelecimentos públicos podiam usufruir livremente de energia elétrica. Pena para quem fosse achado com um projetor particular dentro de casa: Uma multa exorbitante, ou dependendo do caso, até 2 anos de prisão.
Perto da máquina de fabricar moedas, em um compartimentozinho afundado na parede, havia um espaço reservado para mais artefatos proibidos, que consistiam justo no que estávamos procurando: Armas e braceletes, dentre outros utensílios bélicos que foram claro, honestíssimamente concedidos à Teachmor pela organização. Encontrava-se ali na sala, aliás, a oficial responsável. Tudo isso apenas na sala. Imagine o que havia no quarto de Teachmor, ou senão no seu laboratório.
Sei que você deve estar morrendo de curiosidade para saber quais eram as armas que havia ali, mas após nossa conversa tem uma hora em que nos levantamos do sofá, e vamos até ali para trocar nossos equipamentos, então guardarei para este momento a descrição delas.
Sentamos no sofá, e então gastamos um tempo apresentando-nos, conversando sobre a viagem, e outras banalidades do tipo, ficando mais à vontade, até que houve uma hora em que Teachmor percebeu que havíamos andado meio deserto e resolveu preparar um café e trazer para nós ali na sala. Como a cozinha era ali do lado, ele e Perseu não pararam de trocar frivolidades verbais, mesmo separados pela distância da cozinha à sala. Quando teachmor finalmente chegou de novo à sala, carregando a bandeja, Perseu então tocou nos assuntos importantes. Tirou do bolso o DNA de Mevegane:
- Já viu isso, teachmor? – Perguntou com um tom de voz mais baixo, instigando curiosidade.
O dono da loja olhou a amostra e sem perguntar presumiu o que ela fosse corretamente. Até aonde ia a informação de Teachmor?
- Sei, a organização está pretendendo usar este então. No começo você achou que era para reviver o próprio, mas aí nossa garota aqui – Apontou de leve para a Vi – Nos informou que não, que é apenas para controle.
A Vi ficou um pouco perturbada:
- Mas como? Da onde você tem essa informação se eu estava o tempo todo com Perseu desde que falei isso para ele?
Perseu riu.
- Não subestime a velocidade dos boatos, Virtude. – Ensinou.
-Não me diga... Será que vocês têm um aparelho de comunicação à distância ou algo assim?
Teachmor então confirmou levemente com a cabeça e disse:
- Não há porque esconder. É um aparelho naval que fora usado pelo exército de Tekin durante o período de guerras amenas. Alcança uns bons 1000 quilômetros, senão mais.
Perseu estava ouvindo Teachmor falar com uma cara de quem comeu e não gostou. Quiçá ele ainda não confiasse na Vi?
- Me deixe pegar o aparelho para mostrá-la. – Disse Teachmor levantando um dedo, e depois o corpo, para ir até o quarto ou até onde seja lá que ele estivesse para pegar o comunicador.
Perseu conseguiu fazê-lo sentar novamente, apesar da tentativa com um gesto impaciente de mão.
- Mais importante que isso, Teachmor. Viemos ouvir sua opinião sobre o plano da organização para a amostra.
- Ah sim. – Respondeu ele em voz interessada, apressando-se a sentar novamente. – O que a garota me diz que vão fazer combinando as duas amostras? – Esperou a resposta da Vi.
- Teachmor já deve ter recebido esta informação também, imagino.
O velho deu um sorriso simpático.
- Quero ouvir de você.
- Como eu disse. – Disse ela olhando para baixo, como se estivesse escolhendo as palavras para começar – Eles pretendem usar a amostra de Aurico para a ressurreição enquanto Mevegane ainda está no gelo, para então após acordado e à salvo, aplicar a dose de DNA dele misturado à alguma compatibilidade de controle para fazer dele um soldado vampiro da OSSP.
- Uau, essa sim foi uma versão compacta. – Admitiu Carlinho, que estivera sentado só olhando, na maior parte do tempo.
Teachmor pensou por um tempo, considerando, e então a próxima palavra foi num tom típico de velho sabido, que não quer dar o braço a torcer.
- É... – Ele até inclinou um pouco a cabeça. Se usasse óculos o teria ajeitado. – Se for esse o caso, perigamos que a organização resolva deixar o último passo de lado e apelar para um controle mais... Ousado, arriscado. Não existe só uma possibilidade.
- Está sugerindo que deveríamos devolver a amostra? – Indagou a Vi levantando uma sobrancelha, e o fez por cortesia, pois tal opção era... Bom, nem preciso dizer o que era.
- Claro que não, contudo tenham em mente que tal possibilidade ainda existe, mas agora essa de roubar o DNA de Aurico foi um ótimo movimento. Eles não poderão ressuscitar ninguém sem essa, quero dizer, se o próprio Aurico não estivesse no centro de pesquisa para fornecer uma amostra extra.
- Já pensamos nisso. – Desdenhou Virtude com um olhar reprovador. – E, aliás, eu queria tirar esta possibilidade deles o mais rápido possível, mas Perseu insistiu em vir até aqui tomar um cafezinho.
Virtude já estava bem mais à vontade para tirar um pouco de sarro de Perseu. Quando será que eles tinham se tornado tão amigos em tão pouco tempo?
Perseu deu de ombros e justificou-se:
- Precisamos de algumas coisas daqui, se quisermos concretizar tal feito.
- Não posso deixar de lembrar-lhes que mesmo que sucedam, a organização não tardará em arranjar outros meios de conseguir a ressurreição. – Comentou o velho conselheiro. A ex-oficial respondeu:
- Eu sei, mas por hora é muito mais fácil conseguir a amostra com a gente, eu calculo... Ou calculo que eles calculem. E penso que eles pensam assim sobre a amostra que temos em mãos agora, de Mevegane.
- Certamente. – Concordou Teachmor oralmente e com a cabeça branca. Olhou para Carlinho– Por isso é bom agirmos rápido. Falando nisso, se aquele sentado ali no canto é Mantel Carlo, onde está o nosso amigo cobaia?
- Vinar está pesquisando compatibilidade, por outros métodos. – Disse Perseu.
- Entendo. Será de grande serventia. Vocês não sabem o que tenho arranjado para uso de consaguinidade ali naquela coleção.
Olhei para o buraquinho com armas que estava na parede. A Vi disse, divertida:
- Eu também trouxe a lâmina do hercúleo. Poderíamos usá-la, se esse tal de Vinar realmente descobrisse alguma coisa. Será que a tecnologia já existe?
Perseu levantou-se e foi até onde as armas estavam dispostas. Começou a cavocar nelas, tentando trazer todas para a salsa, para que pudéssemos dar uma olhada nelas enquanto conversávamos, enquanto o fazia foi dizendo:
- Mas não foi apenas para concordar com o grandioso plano da ex-oficial que viemos, vim mais para discutir qual será o fim dos aparelhos. Deixaremo-nos aqui?
Ouve um silêncio enquanto Perseu transportava as armas e braceletes para a mesinha de centro. Teachmor foi o primeiro a falar:
- Isso é uma faca de dois gumes... Se vocês levarem, estarão sujeitos à perder as amostras nas batalhas, lógico. Mas se deixarem aqui talvez seja pior... Se um guarda passar por aqui vai tomar de mim as amostras e ficaremos sem reação.
- Nem mencione de brincadeira sobre um guarda passar por aqui. – Respondeu o líder de cabelos negros. – Mas você tem razão, e eu já tinha pensado nesse impasse. Mas imaginei que você teria uma solução.
- Existe algo que se não é solução, já é alguma coisa. – Disse o velho, tamborilando os dedos na perna. Perseu e a Vi se remexeram para ouvir a "solução" com mais atenção.
- Podemos carregar duas amostras de outros organismos em caixas similares. Vocês levam duas consigo, e eu deixo duas aqui, meio à mostra.
- E as verdadeiras?
- Vocês decidem. Posso arranjar um esconderijo decente para elas aqui, ou cavar mais fundo em vossos compartimentos para escondê-las. De qualquer forma ao menos a organização será enganada uma vez, se for o caso de interceptarem-nos.
- Por mais segurança ainda – Interveio Virtude – Vamos deixar uma aqui e outra levar conosco. Já que a organização precisa das duas. Precisará. – Corrigiu-se.
Todos menearam de acordo.
De repente as armas que Perseu viera buscar estavam já todas dispostas na mesa. Ao todo eram dez armas, onze contando com a lâmina do hercúleo que a Vi tinha trazido da sua última vitória.
Teachmor começou a apresentar sua coleção com gosto, como uma velha mostrando um álbum de retratos da família para uma pessoa mais jovem.
- Primeiro temos duas OOW's. – Tomou uma delas nos braços – Espadas muito pesadas, destinadas a oficiais de alto nível, até mesmo porque requer muita habilidade para manuseá-las com decência. E é uma espada de carregar na mão, não nas costas. Senão seria cansativo. Não recomendo para as moças, de qualquer forma.
- Você está subestimando as moças. – Retrucou Atalanta.
- É verdade, esta possui um bracelete que a deixa mais forte. –Interveio Carlinho. Não sei se Atalanta gostou muito de ouvir por tabela que só conseguia carregar suas armas devido ao bracelete.
- Isto é interessante. – Disse Teachmor antes que ela revidasse – Um bracelete de que tipo? Auxiliar musculatório?
- Não. É um que peguei na organização, ele além de servir como auxiliar, também dá aceleração ao movimento da arma, é cardíaco e não musculatório.
- Sei. Duas funções em uma. Modelo caro esse. Tenho alguns desses aqui comigo também. – Teachmor apontou com a cabeça para a montanha de aço em cima da mesa. Virtude perguntou, voltando ao assunto das OOW:
- Elas são de que edição?
- Estas são 36. – Respondeu Teachmor, e ela deu um risinho.
- Quase iguais a que eu tinha antes de abandonar por causa do rastreamento. Acho que vou querer uma delas.
- Espere! – Disse Teachmor – Ainda temos várias outras opções... Bom, tenho três dessas OPH28, seminovas, sei que são bem piores que uma OOW, mas são boas de carregar. E como tenho três pode até servir de espada reserva, quem sabe?
Observamos Teachmor remexer as espadas, fazendo umas brindarem com as outras, até conseguir catar debaixo do monte a que ele queria.
- Ephens. Ou Ephenss, qual o plural de Ephens? Duas delas. Esse modelo é V3, meio genérico, mas são espadas boas como as OPH mais novas. Não muito pesadas, não muito lentas, não muito quebradiças, mas também não pouco de cada coisa... E vem com auxiliares combinatórios respiratório, circular e nervoso, mas tem que trazer junto consigo para funcionar, claro. Eu diria que também são ótimas para se carregar nas costas para o caso de sua espada quebrar ou cair durante a luta.
Perseu tomou uma delas no braço para dar uma olhada. Deu um assobio, e declarou:
- Bem melhores que a DRK, não?
- Também, não se compara. – Respondi. – Sua DRK está com a lâmina tão ruim que não corta nem queijo. Deixe eu ver. – E então ele me entregou a lâmina.
Nesse ponto estava tão curiosa que enquanto Teachmor cavocava para mostras suas demais relíquias, eu me levantei e fui até a mesinha para olhar elas mais de perto, olhar elas com a mão.
Teachmor tomou uma espada velha, mas perfeitamente brilhosa e conservada.
- Acho que vocês não vão querer levar essa aqui. – Começou – Uma SB45. É uma espada de colecionador. As de hoje já fazem um trabalho excelente, e custam apenas um milésimo do preço dessa. – Soltou um risinho abafado. – Não que estejamos em condições de fazer compras delas, mas as OPH podem ser roubadas de qualquer guardinha meia boca que lute contra a gente hoje em dia. – Perseu pesou-a na mão.
- Parece frágil. – Declarou por fim.
- E é. Só aconselho usar na luta se você tiver certeza do que está fazendo. Agora que vai deixar o oponente com o coração na mão de ao menos ver você se atrevendo a usar uma dessas, ah. Isso vai. – Teachmor falava com um ar saudoso sobre a SB45. Eu nunca tinha visto ela antes. Claro que ela era linda, e rara, e diferente... Mas era uma SB ainda assim. Não entendi o rebuliço na hora.
- E agora, a melhor parte. – Disse o velho erguendo um dedo e caçando as outras duas restantes no meio do monte.
- É aquilo que você disse sobre compatibilidade? – Perguntou Perseu, ainda girando a SB nas mãos.
- Exatamente. – Alegou Teachmor.
Mostrou-nos uma espadinha curiosa. Com uma aparência de faquinha, bem pequena, miudinha, sem muita lâmina, mas no começo do cabo havia mais canudos e tubos do que se poderia ter num auxiliador respiratório.
- Esta aqui veio diretamente do centro de pesquisa. Nem chegou a ter nome, acredito.
- Estranho, ela parece meio... Enferrujada. – Declarou Perseu ao observá-la. E francamente parecia mesmo, acho que era a cor dela.
- Mas não é. – Retrucou Teachmor lançando a ele um olhar seco, como que retirando um insulto. – Ela funciona com compatibilidade, conforme já havia adiantado. Mas não de maneira específica. Dizem que ela é capaz de reconhecer o usuário, e consente as alterações de acordo com a compatibilidade dele.
Todo o grupo ficou estupefato.
- Você não está falando sério. – Disse a Vi.
- Estou falando o que me foi falado. – Disse Teachmor já amenizando. – Mas não posso confirmar enquanto nosso amigo pesquisador não vier com as últimas informações.
Carlinho que estava sentado lá no cantinho, mais isolado, exprimiu seu espanto:
- Porra... Mas e a OSSP não vai fazer nada? Digo... Se isso for verdade, ou se eles ao menos acharem que é verdade, isso torna esse item um dos mais perigosos já lançados neste ano, não?
- Mas é que estas coisas não são catalogadas, Mantel. São experimentais. – Respondeu Perseu – E ainda...
- E por fim – Disse o dono da loja,tão empolgado que não percebeu que cortou Perseu – Tem essa aqui, a melhor de todas. – Puxou a espada do fundo do monte.
Era maravilhosa, eu nunca tinha visto nada parecido. O material, eu digo. Eu sei que existem jóias que são azuis, como apatita, algumas espécies de safira... Mas seria inviável construir uma arma inteira desse material, então penso que não era isso. Mas aquela espada, ela reluzia, iluminava o ambiente com uma luz azul, e era natural! Digo, não eram leds, neons, nem era um ferro pintado. Era de um material desconhecido, e gracioso. A lâmina era diferente das demais, que eram disformemente dispostas, ela tinha um formato de espada antiga. Comprida, ligeiramente triangular, gumes para os dois lados, e sobretudo era enorme. Não como a lâmina do hercúleo talvez, mas era grande. A maior das que tinha ali.
Fui a primeira a tocar nela, já que eu estava ali do lado. Era assombrosamente fria. E dura como diamante. Ao simples toque percebia-se que ela nunca se quebraria nem se um tanque passasse por cima dela, quanto mais no meio de um duelo de espadas.
Teachmor pareceu se divertir com a expressão que eu carregava enquanto a analisava, expressão essa que não lembro qual era.
- Sabe qual é essa? – Perguntou ele se dirigindo a mim, com um risinho.
- Não me diga que... – Começou Perseu, e ele confirmou com a cabeça.
- A lâmina da refrigeração.
- Lâmina da refrigeração? – Repeti intrigada, dispondo-a novamente à mesinha.
- Sério que você nunca ouviu falar? – Perguntou Perseu. – Como é a juventude de hoje.
Lancei-lhe um olhar de desdém. E então ele respondeu:
- Depois do Horologium, e antes da formação da OSSP, a primeira tentativa de conceder proteção aos moradores das duas Aurigas, uma na época – corrigiu-se – Foi a de construir quatro armas que foram as primeiras espadas de compatibilidade a terem existido. Só que elas eram feitas de modo diferente das que temos hoje. As de hoje pode se dizer que são mais fracas em geral, porque são feitas com o DNA de uma só pessoa. A compatibilidade de hoje visa gastar menos material e aproveitar mais da informação genética do usuário, o que é bom, pois a organização tem um monte de armas de compatibilidade hoje em dia. – Perseu pôs a mão na boca e deu uma tossidinha.
- Mas aquelas quatro não, eles deram tudo para construir elas. Misturaram não sei quantas espécies de amostras diferentes, cataram os materiais nos quatro cantos do mundo, foi um trabalho de meses, e de milhões de moedas, até que elas ficassem prontas.
Perseu deu uma pausinha e tomou a lâmina na mão. Enquanto ele contava a história ficava absorto olhando a espada, ao invés de lançar o olhar para os ouvintes. Continuou:
- Eu lembro que na época eles estavam tentando decidir qual seria a compatibilidade mais proveitosa para as espadas, a que mais teria força, sim – Olhou para mim, eu estava mexendo nos braceletes, que ele tinha colocado na mesinha junto com as armas – Eles puderam escolher o que elas faziam. E no fim decidiram que os poderes mais fortes que podiam ser tirados da natureza e copiados artificialmente às armas como forma de truque de manga, eram as quatro mudanças de estado físico.
- Mudanças de estado físico? Não são cinco? – Intervim.
- Sim. Mas eles só conseguiram recriar quatro deles: Chamaram a arma com a compatibilidade de vaporização artificial de "Lâmina do vento", a de fusão de "Lâmina da combustão", a de solidificação de "Lâmina da morte", e a de liquefação de "Lâmina da refrigeração", e é esta aí que está na sua frente.
- Nossa! – Disse eu, e tomei-a de novo das mãos do Perseu. – Por isso que ela é friazinha?
- É uma particularidade dela. – Admitiu Teachmor.
- Você disse que eles caçaram os materiais nos quatro cantos do mundo, do que é feita essa então? – Teachmor riu-se.
-Se soubéssemos, garota, eu dispensaria vossos bons grados com as armas da OSSP e faria as minhas só disso.
Virtude finalmente pronunciou-se:
- Quiçá se na OSSP não tem umas outras armas dessas?
- Difícil. Foram muito caras elas. – Disse Perseu – Mais do que vocês podem imaginar. As espadas foram dadas cada uma a um reino diferente. A do vento À terra tropical, a da morte à Auriga do norte, a da combustão à Auriga do Sul, que na época era o reino de Vilchan, e essa daí foi dada ao reino de Tekin. Agora a OSSP está em estado de estabilização por ter destruído todas as três primeiras, por terem se rebelado. Só Tekin que ficou neutro e não participou do massacre. Eles não podem se dar o luxo de perder tempo fazendo armas caras agora, têm que ao menos armar todos os guardas primeiro, porque nem isso eles têm, ha ha.
Perseu ficava com uma expressão mais neutra quando começava a ficar irritadiço com uma coisa, fosse de natureza trivial ou algo importante. Ele ficava parecido com o Mantel, reservado, até que então resolvia expor sua raiva. Dessa vez a causa foi de natureza trivial:
- Porra, Sarisa. Pare de remexer nos braceletes da mesa, o Teachmor nem apresentou eles ainda, fez todo um ensaio para vir e explicar eles para gente. Porque você está de pé? Parece criança.
Todos começaram a rir, inclusive eu.
- Não, sério. Você é a única que está de pé, todo mundo aqui conversando civilizadamente...
- Deixe a garota, Perseu. – Disse Teachmor apaziguadoramente, enquanto fez um gesto com o braço para Perseu se calar.
Aproveitando para fazer os outros distraírem de minhas trapalhadas, eu perguntei:
- Mas... E como que se liga a lâmina da refrigeração?
- Esse é o problema... – Disse Teachmor - Ela é de compatibilidade...
- Ah. – Disse Carlinho.
Mais um silêncio vigorou por um instante.
- Quer dizer que o único que pode usar essa espada é provavelmente o rei de Tekin de quarenta anos atrás, que já deve estar se remexendo na tumba? - Perguntei.
- Provavelmente. Mas pelo visto nosso amigo Vinar está fazendo a parte dele para prover-nos com nossa compatibilidade emprestada. Na realidade. – Teachmor roçou o queixo – Me impressiona que a OSSP não tenha pensado antes na compatibilidade artificial, pois foi assim que foram feitas as quatro lâminas, de certa forma.
Perseu no seu lugar soltou um riso abafado, e interveio: (Ele também estava com um bracelete da mesinha na mão)
- Eu acho que eles já têm a tecnologia há anos, mas algo deve impedir eles de usar. Basta saber o que...
Os presentes gastaram uns instantes digerindo a informação, até que o velho resolveu voltar à suas apresentações:
- É... Então a respeito dos braceletes, o que eu tenho é o seguinte: Quatro de agilidade do tipo mais minguadinho, Ephens... Sabem? – Alguns de nós fizemos que sim – Tenho três daqueles que pensei que a moça estava usando, auxiliar musculatório, três braceletes naturais, que visam divergir ataque. – Braceletes naturais eram dos poucos que não usavam informação alguma do usuário, ao invés disso utilizavam a energia da natureza, se estivesse disponível, é claro. Em geral eles se viravam com energia eólica, mas só isso não adicionava grande efeito no ataque. Não era como o meu, por exemplo, que mudava a aceleração bruscamente no meio da investida. Os naturais mais novos vinham com quadradinhos captadores de energia solar. Mesmo assim, nada como braceletes com ligações, embora esvaíssem sua energia mais rapidamente, eram mais efetivos. Teachmor estava continuando sua enorme listagem, eu nem estava ouvindo muito, para falar a verdade:
-... Três naturais de impacto... – Perseu interrompeu:
- Tá, e o que você tem de interessante?
- De compatibilidade? – Teachmor esboçou um sorriso para se juntar às suas próximas palavras – Tenho esse aqui, misterioso. – Ele catou um bracelete pequeno e escuro, sem regulação, sem tubos, Uma pulseira grossa, na verdade. Perseu abriu a boca para falar, mas o velho calou-o com um gesto de mão e disse antes:
- Dizem que ele faz fintas sozinho. Engana o inimigo. Não sei se ele faz o efeito psicologicamente, soltando uma espécie de gás. Faria sentido... O gás é mirado na cara do inimigo com a investida, mas justificara pouco o uso da compatibilidade... Não sei nem se é verdade o que dizem... Não testei.
- Ele precisa de DNA específico? – Perguntou Perseu.
- Não. É ajustável. – O ajuste, ao contrário das armas, era comum na confecção de braceletes. Os braceletes de compatibilidade ajustável eram exorbitantemente caros. Mais até do que os específicos. Mas os específicos tinham realce maior, naturalmente.
Nosso líder tomou o bracelete e pôs-se a experimentá-lo no braço.
- Tenho mais dois ajustáveis. De força, parece. Devem estar aí embaixo, depois eu procuro. Eles parecem com os musculatórios, e também usam os tubos de ligação, então eles adicionam um baquezinho violento.
- Esses aqui? – Perguntou Atalanta com um dos braceletes na mão. A essa altura, todas as coisas já estavam passando pelas mãos de todos. Teachmor nem olhou para ela e nem respondeu, pois havia chegado no que ele mais queria mostrar, pelo visto:
- E finalmente, outro de compatibilidade específica. – Ele ergueu o bracelete para todos vermos. Era grande, um braço inteiro de armadura quase, e verde, e cheio de detalhes esquisitos, retangular, certinho, sem os tubos. Bem feio.
- Esse é poético. – Disse o dono da loja - Dizem que as conexões respiratórias realçam a velocidade do ataque, dão leveza, as musculatórias dão força, e mais importante, as cardíacas têm como analizar e proteger automaticamente as partes mais vulneráveis do usuário, forçando o imã da espada mais que o normal. Tem que estar conectado com a espada, naturalmente, mas o conector é via rede, está ali com as demais peças sobressaintes – Apontou o cantinho de onde Perseu tinha trazido tudo com a cabeça.
- E cadê os conectores? – Perguntei. Teachmor respondeu com um sorriso do tamanho do rosto.
- Então como eu falei, é de compatibilidade específica.
- Uma compatibilidade substituindo conexão!? – Espantei-me – E de quem é a amostra?
- Parece que de um dos oficiais de alto posto da OSSP. Vivo. O bracelete veio recentemente. Em mãos erradas poderia fazer um estrago.
-"O" estrago. – Corrigiu Perseu – Imagine, ele pode se conectar com tudo. Inclusive com os braceletes do... Inimigo? No meio da luta?
Engoli em seco. Era um pensamento sinistro. Felizmente aquele bracelete estava ali, e não lá. E infelizmente não poderíamos usar até Vinar voltar, e nem sabíamos ao certo se o poderíamos depois.
Então paramos de conversar e de ver os braceletes por um tempinho, no começo eu achei que todos estavam pensando sobre o efeito caótico que o bracelete produziria, mas ao olhar para a cara de peixe morto de Atalanta percebi que na verdade todos estavam cansados demais para contribuir com mais alguma coisa. Perseu deixou isso claro quando me respondeu à uma pergunta imaginária que eu não fiz:
- Estou escolhendo mentalmente quais serão as minhas... – Disse em tom vago, sem mover nenhum músculo. Teachmor riu-se.
- Vocês não precisam escolher agora, garanto que vocês têm mais coisas para escolher, como que roupa ou que quarto vão querer, ou em que banheira irão tomar banho.
Essas palavras entraram pelos nossos ouvidos soprando um fôlego rejuvenescedor. Há quanto tempo eu não tomava um banho decente? Fomos levantando e nos dirigindo para os aposentos extras da residência, embora que nunca estivesse estado lá eu meio que sabia onde eles eram, não sei se porque a construção era óbvia ou se eu estava seguindo a Atalanta, mas enfim...
O quarto ao qual nos dirigimos não possuía cama ou armário, ou nada do tipo. Era apenas um cômodo com um sofá grande, ocupando uns 60 por cento do local, aonde estavam empilhadas dúzias e dúzias de roupas, mas não eram aqueles trapos confeccionados que Teachmor vendia na sua loja. Eram roupas de qualidade, daqueles que as pessoas vestiam antes do Horologium, na época de vacas gordas.
Perseu pegou umas roupas de um dos montinhos e levou consigo para o banheiro mais próximo. Disse que seria um dos primeiros a banhar-se. E as roupas que ele pegou eram idênticas às que ele possuía.
Não sei se eu devia relatar isso, afinal não é do meu feitio ficar reparando, mas... Tem certas coisas que é impossível não reparar, certo? As vestes do Perseu eram uma dessas coisas. Ele só usava as mesmas duas, que eram de um tipo só: Uma jaqueta de nylon e calça de linho, ou preta, se a jaqueta fosse preta, ou azul escura, se fosse azul escura. Eram sempre essas duas peças alternadas. Não cheguei a perguntar se ele só possuía tais duas peças, mas se fosse era meio anti-higiênico, para falar a verdade. Só eu carregava comigo meu armário inteiro dentro do compartimento da armadura. E olhe que eu nem usava uma armadura, carregava apenas o compartimento na oncinha.
Para mim poder escolher roupas novas era o paraíso, e eu não poderia simplesmente escolher um monte delas, assim como havia feito Perseu. Eu tinha que provar cada uma, para ver se me caía bem.
- Que tipo de roupa você gosta? – perguntou Atalanta, entrando no quartinho.
- Ah, você sabe... Roupas da última moda decente, de há cinco décadas atrás. Eu sou calorenta, então tendo a gostar de modas de verão.
- Eu pelo contrário, sou bem friorenta, vamos entrar num acordo quanto às roupas então. – Atalanta estava já coletando as peças que mais se adequavam à ela: Jaquetinhas, camisas, coisas desse tipo. Claro que no calor do deserto dos setores médios nem ela se atrevia a usar nada muito grosso.
Mantel passou por ali, pegou um amontoado generoso de roupas e foi ao quarto de hóspedes, e assim após encostar a porta, as três garotas puderam ficar experimentando roupas ali. A Virtude era outro tipo estranho. Ela gostava de blusinhas, assim como eu, exceto que ela prefere as de tons de cinza, e eu gosto das mais espalhafatosas. No entanto, ela sempre estava usando aquela capa da OSSP. Nunca tirava ela do corpo. Talvez ela queira esconder as cicatrizes que ela carrega nas costas? Não sei. Nem eu nem Atalanta fizemos nenhuma pergunta a respeito.
- Essas roupas são tão boas. Me fazem lembrar dos velhos tempos... – Disse Atalanta.
- Sim. – Concordou a garota de olhos dourados. – Da onde será que elas vêm? Será que ainda fabricam delas na organização?
- Ué, você que tem que saber, senhora ex-oficial. – Falei em tom de brincadeira. Ela considerou e então respondeu:
- Na verdade nunca vi ninguém lá usar nada além do uniforme oficial. Nem mesmo o executivo... talvez o Guolegre goste de usar esse tipo de roupa na casa dele?
- Roupas femininas? – Indaguei. Ela sorriu.
- Nunca se sabe não é?
Atalanta palpitou enquanto se preparava para provar mais uma peça em frente ao espelho:
- Quem sabe ele tenha mulheres? Montes delas?
- Aquele velho? Por mais importante que ele seja duvido... Além da cara e da idade, me parece bem pouco que seja o estilo dele desperdiçar seu tempo com qualquer coisa que sequer lembre o lazer. – Atalanta revirou os olhos, pensativamente e palpitou novamente:
- Pode ser os outros oficiais importantes da OSSP talvez? Lá na sua casa que tipo de roupa você usava, Virtude?
- Não lembro... – Respondeu ela.
- Como assim?
- Eu tive a memória alterada recentemente, e fazia tempo que eu não saía da unidade.
- Nossa até você? E isso que você é tenente... – Exclamou Atalanta. Realmente, a composição da organização era um mistério. Quantas pessoas em sã consciência ainda trabalhavam será? Uma dúzia? Meia dúzia?
A compaixão tomou conta da nossa conversa, e ficamos aprendendo um pouco sobre a vida de Virtude. Basicamente ela não se lembrava de nada, mas possuía espécies de deja vu, que indicavam a ela que escolhas tomar em dadas ocasiões. Era um poder interessante. Mas mais do que manipulação cerebral eu apostava que era a compatibilidade escondida dela, tomando seu lugar. Com o passar dos minutos nossa conversa mudou novamente de rumo e nós estávamos todas tagarelando sobre coisas triviais, até que Perseu bateu com força na porta:
- Ei! Será que eu posso experimentar mais roupas? Vocês já estão aí há umas duas horas. – Exagerado. Pelo menos ele não ia ficar só com aquelas mesmas.
Naquela noite nós pudemos desfrutar de uma cama decente, sob a hospitalidade do dono da loja. Daqui para frente nós teríamos que nos apressar para trazer Aurico sob os cuidados de Teachmor, e precisaríamos elaborar um plano decente para que isso pudesse dar certo. Mas cada coisa no seu tempo. Naquela noite eu dormi com a cabeça virada para o céu do setor 74. Ele não era tão poluído quanto o céu de Kebebassa. Dava para ver os planetas mais próximos. Fiquei desfrutando a beleza das estrelas, a brisa da noite, e o silêncio das ruínas despreocupadamente, sem pensar na OSSP, nas guerras ou na justiça.
Tenho certeza que os demais também fizeram assim, afinal nada melhor que uma espairecida para te inspirar a fazer um serviço bem feito.
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