Capítulo 6
Olhando em seus olhos (sem parar)
Caindo em seu colo (desesperadamente)
Sentado a seus pés
Absorvendo toda a sua energia.
(Hot Tea – Half • Alive)
Segundos antes de entrar no quarto 502 eu avisto, pelo canto dos olhos, uma garotinha acenando para mim no fim do corredor. Ela sorri fracamente e, antes mesmo que eu pudesse fazer algo como resposta, a criança sai do meu campo de visão.
Finalmente abro a porta e encontro Saturn repousando sobre a cama, exatamente como nos dois últimos dias. Ela ainda dorme tranquilamente. Ela ainda não mexe um átomo sequer em resposta a mim. Ela ainda é alimentada por substâncias estranhas e desconhecidas por mim. Ela ainda respira com a ajuda de aparelhos. Ela ainda está submersa no coma que a aprisiona naquela bendita cama.
– Saturn. – Aproximo-me de seu corpo. – Hoje pela manhã fui assistir à corrida de Summer. Sei que você iria adorar vê-la correr... – Respiro fundo e, então, fecho os meus olhos. – Summer estava tão rápida que, por alguns segundos, ela parecia flutuar sobre a pista de corrida. Do mesmo jeito que você parecia flutuar sobre o chão quando dançava...
Limpo a garganta enquanto tento engolir as lágrimas que teimam em alcançar os meus olhos.
– Summer ficou em primeiro lugar, Saturn. – Sorri, sozinho. – Bom, o resultado não poderia ser diferente, certo? – A lágrima escorre pelo meu rosto ao notar que ela nada me responderia. Ao notar que durante mais um dia eu ficarei nesse silêncio angustiante dentro do quarto 502. Ao notar que ela não acordaria agora. – Você deveria estar lá conosco.
Dou um passo para trás e, sem dizer uma palavra sequer, eu observo todos os fios conectados à Saturn. Observo o novo soro ou o novo medicamento que a alimenta dia e noite. Observo os seus batimentos cardíacos ecoando na máquina ao lado da sua cama.
– A Luna me contou que o médico finalmente descobriu o que há de errado com você, Saturn. – Observo a sua mão imóvel sobre o cobertor branco. – Não é um tumor cerebral como eles haviam suspeitado no início. Você teve uma infecção generalizada e isso quase... isso quase a matou, Saturn. Você está assim por conta disso e, céus! eles não sabem quando você voltará. Eles não sabem...
Respiro fundo algumas vezes. Eu estou, pouco a pouco, deixando a desesperança me corroer por dentro. Estou me entregando às dúvidas perigosas sobre a melhora de Saturn que me machuca perigosa e lentamente. E eu preciso urgentemente aliviar a minha mente desses pensamentos obscuros. Eu preciso me distrair disso.
– Você se lembra de quando realizou o item quinze da sua lista, Saturn?
Lembro que eu estava subindo as escadas do prédio do alojamento, suspirando alto a cada mínimo degrau que os meus pés pisavam, entregando-me completamente ao desânimo e ao tédio crescente.
E, então, eu escutei a sua voz me chamar pelo meu apelido: "Ei, garoto astrônomo.". Lembro de erguer o meu pescoço, olhando ao redor daquele andar a sua procura. Encontrei-a sentada sobre o sofá cinza da 'sala de jantar', ao lado da área da cozinha do seu andar. Você acenava para mim.
Eu ajustei o óculos em meu rosto e notei que havia uma pulseira branca ao redor do seu pulso direito. Parecia aquelas pulseiras que recebemos no hospital. Quando você viu que eu havia percebido, você abaixou o braço e o cobriu com o cobertor. "Oi, Saturn." Cumprimentei de volta com um breve aceno de mão.
"E então?" Você puxou o cobertor para cima e se cobriu por completo. Mas aquela noite não estava fria. "Quais são os seus planos para hoje, garoto astrônomo?" Você apontou com a cabeça para a sacola que eu carregava em meus braços.
"Bom..." Ergui a sobrancelha. Olhei para dentro da sacola e lá encarei o único pacote que eu havia comprado minutos antes. "Macarrão instantâneo." Respondi, sem graça. Confesso que aquela não era a melhor refeição do mundo, mas devo admitir que era a mais prática e rápida que havia encontrado no mercado.
"Uau." Você jogou a cabeça para trás e riu baixo. "Apetitoso, hein." E eu sabia que você estava apenas brincando. "Eu comprei uma pizza média de um restaurante daqui da região. Acho que logo ela chega..." Você conferiu o horário pela tela inicial do seu celular. "Se você quiser, podemos dividi-la. O que acha?"
"Não, eu..." Levei a minha mão à nuca e a cocei, um pouco desajeitado. Eu amo pizza, Saturn, de verdade. É uma das minhas comidas preferidas, ainda mais se for de pepperoni que, em minha opinião, é o melhor sabor. "Eu não quero incomodar." Sorri e voltei a subir alguns degraus da escada, lentamente. A verdade é que eu não gostaria de lhe dever mais nenhum favor, não gostaria de ter algo nos conectando. Porque, de um jeito ou de outro, eu me sentiria obrigado a retribuir o favor, mais cedo ou mais tarde. E não, eu não a deixaria usar o meu telescópio.
"Eu ia comer com os meus amigos, mas..." Você abriu os braços e olhou ao redor. Até aquele momento eu não havia reparado no quão silencioso e vazio aquele andar parecia estar. "Parece que todos eles já foram para casa comemorar o feriado." Você voltou a olhar para mim. "O prédio do alojamento está praticamente vazio. Então... não é incomodo algum, garoto astrônomo. Eu sei que eu não aguento comer uma pizza inteira, mas ela já está paga..."
Inclinei a minha cabeça e sussurrei, um pouco relutante: "Certo..." Comecei a dizer. Bom, a pizza já estava paga e não havia ninguém ali para você dividir... Não seria certo jogar meia pizza no lixo, não é mesmo? "Certo, você me convenceu." Perguntei-me se eu, em algum momento, arrepender-me-ia daquilo. E eu provavelmente me arrependeria.
Retirei a minha mão que estava sobre o corrimão e, em seguida, caminhei calmamente em sua direção. Apoiei a minha sacola do mercado sobre o balcão da cozinha dos estudantes e me sentei no sofá ao seu lado. "Quanto eu te devo?" Perguntei, já pegando a carteira que estava em meu bolso, pronto para abri-la a procura do dinheiro.
"O quê? Não." Você balançou a cabeça de um lado para o outro, em completa negação, abaixando a minha carteira. "Não se incomode com isso, Ocean. De verdade." Você sorriu. "Foi a minha avô que pagou a pizza. Você não me deve nada."
"Sua avó?" Encostei-me no sofá.
"Sim." Você abraçou o cobertor e se encolheu ainda mais. "Hoje eu tive que passar no hospital para fazer algumas coisas..." Observei você tirar a pulseira branca de identificação, para então, arremessá-la em direção ao lixo que estava ao nosso lado. "E quando eu voltei para cá a minha avó me ligou dizendo que havia pedido uma pizza para mim. Eu acho que ela quis me recompensar já que a minha família está na casa dela para o feriado de domingo e eu não."
Lembro de ajustar o óculos em meu rosto. Sabe, eu não estava contando propositalmente, Saturn, mas aquela era a segunda vez que você ia ao hospital desde quando nos conhecemos. E a gente havia se conhecido a pouco tempo. "Você vai bastante ao hospital." Soltei, sem ao menos pensar.
Você riu e, então, virou o rosto na direção contrária a mim. "É..." Pude vê-la morder o canto da bochecha enquanto erguia as sobrancelhas, pensativa. "Foi uma consulta de rotina. Infelizmente só tinha vaga hoje com o meu médico."
"É por isso que você ainda não foi para casa?" Apoiei a minha cabeça sobre o encosto do sofá. "Por conta da consulta de hoje?"
"Sim." Você olhou para as suas mãos, que pareciam estar suadas. Logo em seguida, você olhou para mim, diretamente em meus olhos. "E você? Por que ainda não foi para a sua casa, Ocean?"
"Ah..." Suspirei alto e passei as minhas mãos sobre o meu cabelo. "Eu não... eu não passo mais a Ação de Graças com a minha família desde que entrei na faculdade." Falei. Pelo canto dos olhos pude ver que você ainda me olhava, procurando por uma explicação plausível do porquê eu deixei de passar um dos feriados mais importantes com a minha família. "Longa história." Murmurei em resposta à sua pergunta silenciosa.
"Bom..." Você também apoiou a sua cabeça sobre o encosto do sofá e a virou para mim com um sorriso discreto no rosto. "Eu estou com tempo de sobra, garoto astrônomo."
Eu encarei o teto acima de nós por um momento, perguntando-me mentalmente por onde eu deveria começar a contar a história. E sei que isso é um pouco redundante, Saturn, mas, sim, eu comecei a contar pelo início. "Lembra daquele dia que a minha irmã dormiu no meu quarto e eu lhe contei que os meus pais estavam trabalhando no hospital?" Perguntei e esperei você balançar a cabeça em concordância. "Então, o meu pai é obstetra e a minha mãe é cirurgiã. Os meus pais são médicos, e bom... os meus avós também são médicos."
"E eles queriam que você também fosse um médico?" Você arriscou adivinhar o grande dilema da minha família. E é obvio que você estava certa.
"Sim." Respirei profundamente. "Acho que eu sempre soube que queria fazer astronomia. Quando eu era pequeno eu dizia para todo mundo que seria astronauta ou cientista das estrelas." Sorri ao me lembrar de todo o meu fascínio e inocência sobre a área. "Mas, durante toda a minha adolescência, os meus avós me pressionaram para seguir os passos deles. Cheguei a fazer biologia avançada na escola só para agradá-los, e eu ia tão mal nessa matéria, Saturn, que precisei contratar professores particulares. Foi terrível." Balancei a cabeça e fechei os olhos. "E os meus avós, vendo que eu estava realmente tentando, que eu realmente estava me esforçando, começaram a depositar um dinheiro extra na minha poupança estudantil."
"E como foi?" Você ainda olhava em meus olhos, atenta a cada mínima palavra que eu falava. Atenta a cada mínimo detalhe que eu dizia. "Como foi dizer para a sua família que você não queria ser médico?"
"No último ano da escola eu contei aos meus pais que faria astronomia. Eles me tranquilizaram dizendo que estava tudo bem. Os meus pais sempre me apoiaram, entende? O problema real foram os meus avós." Cruzei os braços, um pouco impaciente com as lembranças em minha mente. "Eu tive a brilhante ideia de contar a eles na ceia de Ação de Graças." Dei ênfase em 'brilhante'. "E eles fizeram um escândalo desnecessário, Saturn. Parecia que eu havia cometido um crime ou algo do tipo." Revirei os olhos ao me recordar de toda a cena. "Os meus avós me fizeram devolver parte do dinheiro que estava investido em minha poupança estudantil. E era um bom dinheiro."
"Meu Deus. Não acredito que fizeram isso." Você parecia estar chocada com a reação que eles tiveram. É, eu também fiquei tão surpreso quanto a você no dia. "Desde então você não passa a ação de graça com eles?"
"Basicamente." Sorri, sem humor algum. "Esse é o único feriado que os meus pais fazem questão de comemorar na casa dos meus avós, então eu prefiro ficar aqui na universidade."
"Ficar na universidade sozinho e com um pacote de macarrão instantâneo." Você sorriu ao apontar para a sacola do supermercado que eu havia trazido. "Esse é um belo jeito de comemorar o feriado e de passar o fim de semana."
"Ei, não é tão ruim quanto parece." Por um segundo virei a minha cabeça para o outro lado para esconder o sorriso que nascia em meu rosto. "Domingo, no dia da Ação de Graças, eu estou pensando em preparar macarrão com queijo e brownie de chocolate, as minhas especialidades." Defendi-me, provando que eu não comeria somente macarrão instantâneo.
Você olhava para mim com um sorriso no rosto. "Certo, isso é melhor que macarrão instantâneo." E apoiou a mão sobre a barriga. "Bom, este ano você terá a minha companhia. Seremos apenas eu e você no alojamento inteiro." Os seus olhos buscavam os meus.
"Você não vai passar o feriado com a sua família?" Perguntei, genuinamente curioso. Foi então que eu me lembrei da sua lista. Lembrei especialmente do seu décimo segundo item, Saturn. Lembrei que você dedicou um item inteiro só para dizer que quer ver a sua mãe sóbria de novo. Será que você estava evitando a sua família por conta do vício em álcool da sua mãe?
Lembrei, também, do item número onze. Lembrei que você queria dizer às suas irmãs que tudo ficará bem. E você mesma queria acreditar em suas próprias palavras. Você queria parar de mentir para si mesma, e queria parar de mentir para toda a sua família. Será que você os evitava porque sabia que as coisas não ficariam bem?
"Não eu..." Você abaixou os olhos e, então, encarou o próprio pulso. O pulso onde antes estava a sua pulseira de identificação. "O médico da consulta de hoje me pediu um exame de rotina. E como o meu tempo durante a semana é limitado por conta da universidade, decidi marcar esse exame para o domingo do feriado. O que é uma droga, eu sei." Você respirou fundo. "Como a minha família está na cidade vizinha, na casa da minha avó, não conseguirei chegar a tempo para passar o feriado com eles..." Você voltou a olhar para mim. "Mas está tudo bem. É apenas um exame de sangue, nada demais." Você sorriu, fracamente. "É por isso que eu vou ficar aqui para te fazer companhia." Você disse, verdadeiramente animada. Lembro que você pegou o notebook que estava apoiado sobre a mesinha central e o colocou em seu colo, ligando a tela inicial. "Pergunta aleatória: qual é o seu filme preferido?" E olhou para mim, esperando eu dizer algo.
Eu ri, porque as vezes era difícil acompanhar o seu raciocínio, Saturn. Em alguns momentos você falava muito rápido, e, em outros, você simplesmente trazia um assunto completamente novo e aleatório para a conversa. E, naquele momento, você fez as duas coisas ao mesmo tempo.
"Interestellar." Respondi sem antes pensar duas vezes. Até hoje o homem não conseguiu fazer um filme melhor do que esse, Saturn, porque ele é simplesmente o maior já produzido. Absolutamente nenhum filme é melhor do que Interestellar. Nenhum. Até a trilha sonora dele me causa arrepios. E não, eu não estou exagerando. Eu amo e aprecio cada milissegundo desse filme.
"Certo." Você revirou os olhos e riu. "Eu deveria imaginar, garoto astrônomo." Você digitou algo e depois voltou a olhar para mim. "Acredita que até hoje eu nunca assisti ele?"
"Você está falando sério?" Abri os meus lábios, desacreditado. Aquilo parecia um crime para mim.
"Sério!" Você exclamou. Os seus dedos ainda digitavam. "Se você quiser, eu posso colocar ele no notebook e passar para a televisão." Você apontou para o cabo que ligava a TV da parede ao seu computador. Já vi alguns alunos fazerem o mesmo. "Podemos fazer uma noite da pizza."
Apertei os meus olhos ao me lembrar novamente da sua lista. "Décimo quinto item." Sussurrei entre os meus lábios. Lembrei-me de como eu estava curioso para saber como era exatamente uma noite da pizza para você. Lembrei de como eu imaginei que provavelmente era algo especial, de como poderia ser uma noite especial. E eu confesso que era um pouco empolgante saber que eu faria parte dele, parte de algum item da sua lista.
Você ergueu o seu rosto e olhou para mim. Mas, antes mesmo que você pudesse dizer qualquer coisa, ouvimos o seu celular vibrar. Pela notificação da tela inicial, vi que era sobre a pizza que a sua avó havia pedido. Ela finalmente havia chegado.
Você jogou o cobertor para o lado e colocou os pés no chão, mas eu fui mais rápido. Toquei em seu ombro. "Pode deixar, Saturn, eu pego lá embaixo." Apressei-me em dizer. Quer dizer, aquilo era o mínimo que eu poderia fazer por você. O mínimo que eu poderia fazer para retribuir a pizza que eu ao menos paguei. Levantei-me e caminhei em direção às escadas.
Mas, antes mesmo que eu descesse os degraus, escutei a sua voz me chamar: "Ocean!" Olhei para trás e vi você olhando para mim. Você parecia um pouco confusa e um tanto surpresa. "Como você sabe o número exato?" Você inclinou a cabeça para o lado. "O número exato da minha lista?"
Lembro de colocar as minhas mãos dentro do bolso da calça, tímido. Eu não queria parecer um garoto obcecado pela sua lista, ou obcecado por você, Saturn. Não queria parecer bizarro ou estranho a esse ponto. Porque eu não estava obcecado pela sua lista, muito menos por você. "Memória fotográfica." Respondi e voltei a descer as escadas. E não, eu não havia mentido.
★
Lembro de estender a minha mão para pegar mais um pedaço de pizza que estava sobre a mesinha, ao lado do seu computador, sem ao menos tirar os olhos da pequena televisão. "Você acredita que os diretores realmente plantaram 200 hectares de milho para gravar o filme?"
Os seus lábios se abriram em surpresa. "200 hectares?!" Você lambeu os dedos e ergueu a cabeça para observar atentamente a cena em que eles estão perseguindo o avião pelo milharal. "E o que eles fizeram com o milho depois das gravações? Venderam?" Você riu, irônica. Mas quando eu balancei a cabeça em concordância para dizer que sim, eles realmente haviam vendido todo o milho, você riu ainda mais alto, totalmente descrente. "Não brinca!"
E aquela foi a primeira de muitas interjeições que fiz durante o filme. Foram trinta e sete comentários ao todo. Sim, eu contei, Saturn. Eu amava tanto Interestellar que eu sentia a obrigação moral de falar sobre cada mínimo detalhe das cenas e, também, de explicar toda a ciência por trás da viagem através do buraco de minhoca, da relatividade do tempo em Gargantua e da singularidade do buraco negro.
E em nenhuma das vezes você me mandou ficar quieto ou me mandou calar a boca, como os meus pais e Nathan costumam fazer quando assistem algum filme de ficção-científica comigo. Pelo contrário, você se mostrou disposta a ouvir todos os trinte e sete comentários e, além disso, sorria todas as vezes que eu falava. E isso foi muito gentil, Saturn.
Quando a música tema de Interestellar começou a tocar pelo alto-falante da TV, lembro que cruzei os meus braços para que você não visse todos os meus pelos arrepiados. Eu não estava brincando quando disse que ela tinha esse poder sobre mim. E eu senti que você olhou para mim quando fechei os meus olhos para ouvir a melodia atentamente.
Lembro que em determinado momento do filme o seu telefone tocou com alguma notificação de mensagem. Mas, ao invés de pegar o celular para ler o que te mandaram, você apenas o segurou para colocá-lo no silencioso e, em seguida, colocou-o sobre a mesa. Você parecia realmente interessada na história de Interestellar porque não tirou os olhos da tela durante os 169 minutos do filme.
"Garoto astrônomo." Você me chamou quando os créditos começaram a subir. "Quem são Eles?"
Eu inclinei a minha cabeça para o lado ao deixar a borda do último pedaço de pizza sobre o papelão vazio. Havíamos acabado com uma pizza média inteira, Saturn. Quer dizer, eu comi a maior parte. "Se a gente levar em consideração o que o pai da Murphy falou quando estava no buraco negro..." Ajustei o óculos em meu rosto. "Eles são, na verdade, a própria raça humana que evoluiu para as cinco dimensões." Encostei-me no sofá.
"Certo... se você me disse antes que não existe paradoxo em Interestellar então..." Você encarava o teto acima das nossas cabeças enquanto assimilava as informações e as conectava ao restante do filme. "Linhas alternativas de tempo." E então você olhou para mim com os lábios entreabertos. "Uau. Que viagem."
"Eu sei!" Exclamei, animado. É por isso que Interestellar é o meu filme preferido, porque todos os detalhes dele são intrigantes!
"Sabe..." Você apoiou a cabeça sobre o encosto do sofá e respirou profundamente. "Eu achei que não ia gostar tanto do filme por ser de ficção-científica, mas eu me surpreendi, garoto astrônomo." Lembro de vê-la se envolver no cobertor. "Foi uma ótima noite da pizza." Você apontou para a caixa de papelão vazia que estava na mesa.
Inclinei-me para frente para pegar o tênis que eu havia tirado no meio da noite. Comecei a amarrar o cadarço dele quando me lembrei da sua lista de tarefas e lembrei, também, que havíamos cumprido a noite da pizza. "Item quinze completo, Saturn?" Ergui o meu rosto para poder olhá-la acima dos meus ombros.
Você riu e balançou a cabeça para o lado, parecendo estar um pouco tímida. "Item quinze completo, garoto astrônomo." E se desfez do cobertor que estava ao redor do seu corpo. "Já posso riscá-lo da minha lista." Você se levantou para desligar o notebook da televisão.
Será que, por eu tê-la ajudado a cumprir o décimo quinto item da sua lista, estávamos quites? Digo, você dividiu uma pizza comigo, enquanto eu lhe apresentei o maravilhoso universo de Interestellar. Então eu não devia mais nada a você, eu não estava mais conectado a você, Saturn, de forma alguma.
Quando você esticou o braço para pegar o cabo que ligava um equipamento no outro, notei que havia um pequeno band-aid colado em você. Aparentemente as suas "consultas de rotina" envolviam agulhas. Lembro de mexer o ombro, milimetricamente, não dando importância para aquilo.
Após colocar o meu tênis, levantei-me e joguei a caixa de pizza no lixo da cozinha. Olhei para a área em que estávamos e vi você se sentar no sofá novamente. "Saturn..." Apoiei as minhas mãos sobre o balcão engordurado. Céus, que coisa nojenta. Você olhou para trás. Eu tinha uma dúvida desde o momento em que eu escutei o seu nome, e eu não queria ter que pensar sobre aquilo novamente. Não queria continuar a montar mil teorias em minha cabeça. Eu precisava saber o porquê você se chamava Saturn. "Qual é a história do seu nome?" Apertei os meus olhos e caminhei em direção a você. "Quer dizer, eu imagino que tenha uma história. Não é todo dia que encontro alguém com o nome de um planeta."
Você riu, inclinando a cabeça para trás. "Você não vai acreditar, garoto astrônomo." Eu me sentei ao seu lado e aguardei a sua explicação, que veio logo a seguir. "O meu pai é completamente viciado em hóquei no gelo. No dia em que eu nasci, o time dele estava jogando a final de uma competição muito importante. O médico que fez o meu parto torcia para o time rival e o meu pai queria provocá-lo... Ele disse que estava convencido de que o time dele ganharia e, se perdesse, mudaria o meu nome. No fim, a aposta era que se o time do meu pai ganhasse, eu me chamaria Stella, o nome que a minha mãe havia escolhido para mim desde o início, mas, se o time oposto ganhasse, eu me chamaria Saturn, o nome que o médico escolheu por brincadeira."
Eu arregalei os olhos, totalmente surpreso. "Então foi só uma aposta?" Quando você balançou a cabeça em concordância, eu comecei a rir. Todas as minhas teorias sobre o assunto estavam erradas, e aquilo era muito decepcionante, devo admitir.
"A minha mãe ficou tão brava quando viu a minha certidão de nascimento, garoto astrônomo." Você apoiou o notebook sobre o próprio colo e o fechou. "Ela me contou que eles quase se divorciaram por conta disso." Você olhou para mim e sorriu. "Desculpa desapontar você. Realmente não tem nenhuma história complexa por trás do meu nome. E o seu?"
Respirei fundo e lentamente me encostei no sofá. "Nada demais." Dei de ombros, entediado. "Os meus pais falaram que eu tinha olho azul da cor do mar quando nasci, por isso Ocean."
Você se inclinou para frente e, então, olhou atentamente para os meus olhos por detrás do óculos. Eu não conseguia olhar para você de volta, Saturn. Você estava perto demais e aquilo me incomodava profundamente. Você já havia escutado alguém dizer algo sobre espaço pessoal? Porque, naquele momento, você estava invadindo o meu. E eu não gostava nem um pouco daquilo. "E eles escureceram com o tempo..." Você falou por fim.
"Sim." Levantei-me depressa do sofá para poder respirar com tranquilidade e me acalmar. Odiava ter o meu espaço invadido daquela forma, mas eu sabia que você não o havia feito por maldade, muito pelo contrário. Peguei a minha sacola com o macarrão instantâneo que ainda estava na cozinha e, então, comecei a caminhar em direção às escadas. "Obrigada pela pizza, Saturn."
"Obrigada pela indicação do filme." Você também se levantou com o notebook e o cobertor nos braços. "E obrigada pelo item quinze." Você sorriu. "Até amanhã, garoto astrônomo."
★★★
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