Trinta e Dois
- Eu estou na Floresta? Não estou? - Nigde pergunta, sentando de frente para mim.
A inocência dominou sua voz, como na visão que tive de sua juventude.
Ela voltou a ser jovem. Eu só desejei que ela fosse livre de tudo o que a oprimia.
O cabelo curto deu lugar as longas madeixas azuis. O sorriso ficou mais leve. O rosto ficou mais jovem.
- Sim. Você está na Floresta aonde moram os sublimes livres.
Bouvae permanece presa ao chão pelas raízes. Nem sei para onde eu devo ir agora.
- Livres? Existem sublimes que não sejam livres? Minha mãe e minha irmã não vão permitir isso! - ela se aproxima de mim e sorri. - Acho que conheço você, mas não sei de onde. Você é muito bonita!
Reviro os olhos. Era só o que me faltava. Ela não lembra que escravizou parte deles. Não lembra que mandou me sequestrar, não lembra que fez guerra contra eles.
A merda que eu fiz é realmente muito grande!
- Sou Aliatra. Como a sua irmã. - mostro o cristal a ela.
Nigde se afasta alguns passos. Parece assustada. Como vou consertar tudo isso?
- Isso não te pertence! - ela sussura, como se fosse minha cúmplice.
Voltou a ser criança.
- Agora me pertence, sim.
Começo a andar em direção a Kairon. As árvores caídas me deixam chateada. Na intencao de parar Bouvae, eu destruí tudo.
- Se você ainda não morreu, é porque esse cristal foi te dado de presente. - Nigde está me seguindo.
- Acho que sim.
Trago Bouvae Olitha arrastada pelo chão sem ser solta pelas raizes. É bom que ela esteja molhada e de cara na lama, assim não vai colocar fogo em mais nada.
- Como conheceu minha irmã?
A inocência na voz dela me irrita um pouco.
- Não conheci. Ela deixou esse cristal e um livro falante que só eu consegui despertar.
- Por que ela deixaria algo assim para você? Por que ela se desfaria da glória da Casa Divina?
- Longa história. - resmungo.
- Ei! - Nigde me segura pelo braço. - Me explica!
Olho para ela. Seus longos cabelos azuis. Seu olhar cheio de vida. Seu sorriso. Ela vai mesmo me seguir?
- Você veio parar no futuro de alguma forma. - explico enquanto toco nos troncos próximos e os coloco de volta no lugar. - Paduá e Áliatra deram suas vidas para proteger esta Floresta. Faz um tempo. Gwylio ainda vive. Você ainda vive, mas está diferente.
Ela olha para si mesma e percebe as roupas molhadas e insinuantes que a velha Nigde vestia.
- Mamãe vai me matar se me vir com essa roupa! - ela resmunga.
Sigo meu caminho para Kairon, revivendo a Floresta Negra que passei a amar como meu lar. As árvores brilham a medida que as devolvo as suas raízes. O solo também brilha ao voltar ao estado sólido. Nigde ainda me seguindo.
- Os elementos só brilham assim para minha mãe. Quem é você afinal? E porque essa mulher não pode andar normalmente como nós? Precisa mesmo arrastar ela pela lama assim?
Respiro fundo. Nigde parece uma criança curiosa.
- Essa mulher é ruim, queimou parte da Floresta. Se ela não permanecer molhada vai voltar a queimar as árvores. E sobre mim... Ainda não entendo o motivo, mas sua mãe me escolheu para consertar umas coisas no mundo sublime.
Mas não vai ser do seu jeito, Zoí.
Não vai ser mesmo.
Kairon foi parcialmente destruída. Os sublimes que se aglomeram na praça central estão cobertos de lama. As crianças choram. Ninguém se aproxima de mim.
A minha casa ruiu completamente. A colina está completamente disforme. Não sinto a presença de Daikin ou de Ragok nas proximidades. Para onde será que foram?
Pétice ampara um grupo de crianças. Me aproximo, mas ela se afasta. Parece ter medo do que vê.
Sei que estou horrível, mas ela poderia ser mais delicada.
- Aquela mulher colocou fogo na Floresta. Desculpe. Exagerei na chuva para pará-la. O que faço com ela?- questiono.
Pétice está me olhando de um jeito novo. É como se eu falasse outro idioma. Ela não me compreende? Logo ela que pode ler mentes?
Espero pacientemente, enquanto ela lê o que estou pensando, mas parece que ainda sou difícil de compreender.
- O que eu faço com a mulher que colocou fogo na Floresta? - esbravejo.
Os sublimes correm para longe, se afastam de mim.
Estão com medo? De mim?
Nigde toca meu braço, me fazendo olhar para ela.
- São meros sublimes. Eles temem suas divindades. - ela explica.
- Não sou uma divindade. - respondo.
- Se parece com uma. Aliás, se parece com a mamãe. A maior das divindades.
Observo meus braços. Infinitamente negros e brilhantes. Como o próprio céu noturno. Como a pele da própria Zoí.
"Por que?" pergunto a Zoí.
"Por que você é capaz de fazer por Nigde o que eu não fiz." ela responde.
"Eles me temem."
"Sempre irão temer o que não conhecem."
Houve uma época em que eu achei que eram demônios, fadas, elfos e sempre os vi com medo.
Medo das fofocas, das lendas, dos boatos espalhados pelo Xiador para nos manter longe.
Então descobri que eram uma raça direfente de tudo que já tinha visto. Poderosos, imensos, infinitamente lindos.
Descobri que faço parte deles, que eu era esperada por eles.
Agora eles me temem.
Me temem.
Viro para olhar Bouvae Olitha ainda presa ao chão.
É visível em seus olhos. Ela também me teme. Solto os arbustos que prendem seu corpo ao chão.
Ela me parece insignificante agora. Suja de lama, tremendo, com os olhos perdidos e vazios. Como um inseto. Como um mísero verme.
- Seu eu sentir cheiro de fumaça, vou atrás de você. - aviso a ela. - Por Daikin. Só por ele, vou te deixar ir.
Ela corre pela Floresta que ainda brilha e se perde entre as árvores.
Olho para Nigde. Tão viva, tão humilde e inocente. Tão criança.
"Por que tenho que perdoar? Ela matou meu amigo Ziul. Quebrou Ragok de mil formas diferentes. Queimou meu vilarejo. Escravizou magos. Por que ela não pode simplesmente morrer?" questiono.
"Você disse que eu deveria interferir. É o que estou fazendo. É você quem vai agir, mas eu te dei o poder. Estou interferindo."
"Maldita."
"Minha maldição é sua agora. Faça o que for preciso."
- Esvaziem Kairon! - Ouço Dihdre berrar.
Não importa. Se eles tem medo de mim, não me importo.
Não sou um monstro.
As árvores mostram o caminho até Daikin. Sinto a presença de Ragok com eles, mas antes de me aproximar por completo, penso em Nigde me seguindo.
Ragok não vai gostar de me ver com ela.
- Nigde, vem aqui!
Ela contorna uma árvore de tronco completamente azul. Seu sorriso é genuíno. Como os sorrisos de Daikin.
- Não quero que minha família saiba que estou ajudando Zoí. Não quero que sintam medo. Pode dizer que veio de longe pra me conhecer?
Ela sorri ainda mais largo. Parece que alguém não conhecia Floresta e agora está se divertindo.
- Eu serei sua amiga? - ela pergunta.
Reviro os olhos. Ela me imita e cai na gargalhada.
- Tá. Vai ser minha amiga Nini.
Ela concorda com um gesto e dá pulinhos de excitação. Respiro fundo.
Que Ragok não a reconheça.
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