Oito pt. 2
É um beijo doloroso, que parece arrancar todo meu ar. Só então sinto o domínio do meu corpo retornar a mim e me solto.
Ele tira o manto preto e o joga no chão lamacento. Ele não parece ser atingido pela chuva que encharca a mim e ao vilarejo. A pele dele é incrivelmente linda, mas o que me faz tremer são seus olhos.
— Magia. - sussurro. - Pura magia.
Ouço o ser gargalhar. Daikin grita meu nome. Ele e papai estão protegidos dentro da hospedaria da Casa Sonfi, me olhando pela janela junto com outras pessoas espantadas. Volto a olhar o ser a minha frente. Ele segura minhas mãos e analisa minha pele.
— Tão pálida!
Me solto e dou alguns passos para trás. Seus pés estão tocando o chão agora. Ele está me rodeando como se me avaliasse.
— Jamais imaginei que você pudesse estar tão perto. Mas é você, posso sentir sua energia. A energia que Mistha roubou.
— O que sabe sobre minha mãe?
— Mistha! Sei que a energia dela repousa sobre você. - sua voz permanece doce como na canção.
Do que ele está falando?
— Eu não sou como ela. Está assustando o vilarejo. Vá embora.
O ser finalmente olha ao redor. As pessoas estão olhando para nós de suas casas e comércios. Daikin está chorando no colo de papai, que nunca esteve tão preocupado.
— Vá embora. - peço.
— Eu não posso ir. Fui enviado para te buscar.
Nego com um gesto. Não vou a lugar nenhum com ele.
— Preciso te explicar tudo, mas não aqui. Pode mostrar um lugar seguro?
Vejo outro ser surgir das nuvens, sua grandeza semelhante a do primeiro. Mas seus cabelos são escuros e sua pele levemente mais clara. E seus olhos... seus olhos são como os meus.
Os dois se encaram por um longo momento.
— Pense no que vai fazer, Ragok. Pode ser o fim. - o recém chegado diz.
O primeiro ser, o chamado Ragok está rindo.
— Não, irmão. Não é o fim. É o começo.
Ragok começa a pronunciar palavras que jamais ouvi na vida. Vejo seu corpo se dissolver em fumaça. Uma fumaça preta e brilhante como a noite. Sinto a fumaça tocar minha pele. Sinto um formigamento estranho.
Então a noite cai sobre mim.
É como se uma venda cobrisse meus olhos por um momento.
Mas não foi só isso. Também mudei de lugar. Não faço ideia de como vim parar nas proximidades da Montanha. E com o homem de cabelos e olhos brancos ao meu lado.
— Como você fez isso? - questiono, me afastando alguns passos.
Ele encosta na árvore mais próxima. Parece que estamos cobertos por neblina. O outro cara talvez tenha sido despistado, mas e o Xiador? O que será que houve?
— Sou Ragok, da Casa Guevo dos Magos. Não vim para machucar ninguém. Desculpe por te assustar.
Dou de ombros. Desculpas aceitas se ele realmente não machucar ninguém.
— O que quer comigo?
— Ora, você é filha de Mistha. Não sabe porque precisamos de você? - ele parece realmente indignado.
Dou de ombros.
— Não conheci minha mãe. Não sabia dela até recentemente.
O tal Ragok parece bem chateado.
— Achei que você sabia... Como se chama?
— Aliatra Oli... Puran. Aliatra Puran.
Esse é meu nome, agora. Sou a Matrona Puran.
— Vou tentar explicar meu problema em poucas palavras, tá? Fui enviado para te levar até minha rainha, mas ela quer te fazer mal porque você é quem vai salvar meu povo. Então quero que venha comigo e confie em mim mesmo sem me conhecer direito.
Não consigo evitar rir da cara dele. História bem ridícula.
— Se eu não te levar, ela vem te buscar. Te garanto que seus amigos humanos não vão sobreviver a uma visita dela. - ele diz.
Certo. Eu estava ciente de que algo do tipo aconteceria quando subi a montanha. Agora preciso tomar uma decisão.
— O que aquele outro cara quer comigo?
— A mesma coisa. A diferença é que onde ele vive não tem nenhuma rainha malvada. E que ele não dá a mínima para o que vai acontecer com o meu povo. Ele já demonstrou isso uma vez.
Assim fica fácil escolher. E claro, não quero ninguém destruindo o Xiador.
— Se eu for com você, ninguém vai destruir meu vilarejo, certo?
— Certo!
Respiro fundo. Talvez eu encontre repostas sobre esse povo mágico. Sobre minha mãe.
— Então vamos!
Acordo um pouco dolorida, deitada sobre uma cama brilhante e confortável. De onde estou consigo ver o sol brilhar com toda força pela grande janela. O quarto é amplo e ricamente decorado. Ouro. Muitos detalhes em ouro. Do batente da porta até o detalhe gravado na madeira da cama onde estou.
Vejo minhas roupas esticadas sobre uma poltrona azul. Parecem secas, limpas.
Não sonhei mesmo. É real. Eles foram me buscar. Ele foi. Ragok.
Onde será que ele está?
Sento na cama e observo o resto do quarto. Há uma imensa tina de banho no canto esquerdo e roupas limpas e coloridas sobre um biombo azul reluzente.
Alguém abre a porta do quarto. Uma mulher. Sua pele é de um tom pálido e seus olhos são brancos como os olhos do ser que me beijou. Majestosa, ele veste um longo vestido azul escuro cheio de fendas que cobre pouco de seu corpo e deixa suas pernas completamente a mostra. Seu cabelo curto é da mesma cor do vestido e sobre ele há uma coroa em jóias brancas e brilhantes. Ela sorri de forma calorosa, parece que estava ansiosa por me ver acordada.
Só então me lembro do que Ragok me disse no Xiador e da viajem que fizemos pelo deserto. Voando.
— Saudações, mestiça!
A palavra me incomoda. Sim, sou mestiça, mas não gostei da forma como ela pronunciou. Pareceu xingamento.
— Pode me dizer onde estou? E porque me trouxeram? - questiono.
Ela solta um risinho fino e senta na ponta da cama. Encolho minhas pernas. Percebo que o movimento não a agrada.
— Sou Nigde, Mãe dos Magos e Rainha dos Desertos. Requisitei sua presença em minhas terras.
Há autoridade em sua voz. Domínio, rigidez. A coroa não deixaria nenhuma dúvida. Ela é rainha do mal e estou em seu reino. É dela que Ragok quer salvar seu povo.
— Por que?
— Quero que devolva o que sua mãe, Mistha, roubou.
Ah, essa é nova. Não faço ideia do que ela está falando.
— Não sei o que é nem onde está. Minha mãe morreu quando eu nasci.
A rainha revira os olhos e levanta da cama, andando pelo quarto. Ela está descalça. Tem pés muito delicados.
— Você não sabe de nada, então. Ouvi dizer que foi criada por humanos.
Ela observa a água da tina de banho e as roupas que deixaram para mim.
— Sim. Fui criada por humanos. Só descobri sobre minha mãe recentemente.
Ela sorri e olha diretamente para mim.
— Tome um banho enquanto explico.
Estranho e constrangedor. Acho que a rainha percebe meu desconforto e com um balançar de dedos, estica todo o biondo em frente a tina. Já ví que será o máximo de privacidade que ela me dará. Então me encaminho para o banho.
Preciso lembrar que ela é do mal e que não sei que tipo de magia ela pode usar.
E que ela vai dizer coisas sobre mim, sobre minha mãe que preciso saber.
— Sua mãe nasceu e foi criada em minhas terras, mas possuia um amor por seres que desejavam minha derrota. O que a levou a me trair e a roubar algo que eu desejava muito. Uma energia mágica muito poderosa.
A água do banho é quente e possui cheiro de flores silvestres. Agradeço mentalmente pelo luxo.
— Ela fugiu e nada pude fazer por causa da barreira que existia entre minhas terras e o mundo humano. Barreira que você quebrou. Por que?
Nem sequer sabia sobre qualquer barreira ou qualquer energia. Não sabia que sou tão próxima deles. Mas isso ela já sabe, não vou repetir.
— Fui visitar a floresta sobre a montanha próxima ao meu vilarejo. Talvez seja isso.
Ouço um resmungo. Acho que não agradei.
— Eu sinto esse poder mágico em você... qual o seu nome mesmo?
— Aliatra.
— Aliatra, filha de Mistha. Sua mãe não era forte o suficiente para aguentar o poder que roubou. Por isso morreu. O poder passou para você por ocasião do nascimento.
— Ela foi envenenada por minha madrasta.
— Se não estivesse fraca por conta do poder que jamais foi capaz de suportar, não teria morrido com veneno humano. - ela explica.
Se for verdade, Mistha sofreu mais do que posso imaginar. Espero que não tenha sido em vão.
— Por que nunca senti esse poder se o carrego?
— Você já tentou correr, disputar força contra um humano ou voar?
— Nunca tentei voar. - Nem poderia.
— Mas as outras coisas sim?
Sim, sou a melhor corredora que conheço. Sou forte. Lembro bem do estrago que fiz na pele de Bouvae Olitha quando ela me provocou.
— Sabe do que estou falando. Você tem força e agilidade, só precisa aprender a usar o poder mágico. Isso eu posso te ensinar.
Saio do banho, me seco rapidamente e visto uma túnica verde escura e sandálias. Nigde está sentada na poltrona. Ela sorri quando me olha, mas não parece feliz. Percebo que há uma mesa próxima a cama. Uma mesa pequena com comida.
— Coma. Vou pedir que Ragok venha para te acompanhar em um passeio pelo castelo se for sua vontade.
Concordo com um gesto e a observo sair.
Aprecio a comida lentamente. Pães feitos com queijo quentes e macios. Leite e frutas saborosas. Tudo preparado perfeitamente.
Por que minha mãe decidiu deixar este lugar? Por que pegou algo que não era dela?
Será que algum dia vou saber?
Ouço uma batida na porta e logo depois, aquele ser de olhos mortos invade meu quarto, sorrindo como um demônio.
— Olá, mestiça!
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