Capítulo 7
— Ora, ora... o que temos aqui?
Diana fitou Fabrício friamente na esperança de que este não seguisse adiante com a gozação. Como havia tirado o boné da cabeça, sem poder mais aguentar o calor que fazia em seu couro cabeludo e a aba batendo incomodamente na esteira em que estivera deitada, o mecânico agora via o que ela esteve tentando ocultar. Não só ele, como o restante da trupe.
— Não diga mais nada se não quiser perder seu emprego.
— Eu mal comecei, doçura — ele disse, rindo alto.
— Então nem comece...
Diana pegou um elástico no bolso frontal do macacão e amarrou o cabelo cor de cobre em um coque no topo da cabeça. Agarrando uma toalhinha, começou a secar o suor do rosto.
Incapaz de conter a língua, Fabrício aproximou-se dela segurando uma vareta de óleo.
— Sempre soube que era uma mulher em chamas, Diana. Só precisava do homem certo para fazer todo esse fogo vir à tona de dentro de você.
Ela o acertou com a toalhinha em uma reação bem-humorada, por já estar adaptada às besteiras que Fabrício dizia.
— E que homem é esse? Você? — caçoou ela.
— Não, eu não... Deus me livre! Por mais que adore ficar enchendo sua paciência, para mim, você é como uma irmãzinha muito chata que tive de maneira forçada.
— Encantador.
— Só um homem à prova de fogo para conseguir enfrentá-la sem se queimar.
— Não existe, no mundo, nenhum homem assim — declarou com veemência.
— Está subestimando nossa espécie...
— E com razão.
— Seus três ex-noivos não tinham o que era preciso para aguentar o tranco, mas conheço alguém com força e fôlego mais do que suficientes para dar conta do recado. — Um ruído fez o rosto dele voltar-se para o outro lado.
— Não diga? — ela indagou com fingido interesse. — Então, quem é este homem poderoso, à prova de fogo e de força hercúlea de que tanto me fala... capaz de lidar com o "vulcão" que há em mim? — zombou ela.
— Ele.
Ela olhou na direção que Fabrício apontou, fixando-se na entrada, por onde passava o corpo forte e musculoso de Fernando Guerra.
Com satisfação, o mecânico viu-a estremecer com o choque de reencontrar seu distinto cliente.
— No final das contas, parece que não estou tão errado assim...
— Cale a boca, Fabrício — esbravejou Diana, sentindo o rosto ruborizar de embaraço em resposta à piada inconveniente conforme Fernando avançava na direção deles. — Suma daqui! Dê o fora.
— Está corada. Se eu posso ver, ele também pode ver. Deveria ficar para esclarecer qualquer mal-entendido? Afinal, ele pode pensar que eu estava de gracinha para cima de você.
— Ora, seu... — vacilou Diana, evitando os olhos de Fernando quando este impôs sua presença inquestionável diante deles.
— Vim saber do meu carro — ele anunciou, estranhando o súbito silêncio entre os dois mecânicos que, até uns segundos atrás, pareciam terrivelmente interativos. Seu olhar acurado viajou para o sorriso descarado do homem, depois voltando para o rosto vermelho de Diana. — Interrompi alguma coisa?
— Absolutamente, não! — negou ela.
— Nada que não possa ser retomado em outra hora. Certo, doçura? — A estas palavras de duplo sentido, Fabrício se afastou sob o olhar mortífero de sua chefe.
— Vamos conversar na minha sala — ela disse, em seguida deu-lhe as costas.
Fernando, antes de segui-la, lançou um olhar demorado para Fabrício, quase intimidador, ao que o mecânico reagiu dando de ombros e rindo.
Com uma expressão carrancuda, fechou a porta às suas costas antes de ir sentar-se. Foi com extremo aborrecimento que escutou, da mecânica sentada à sua frente, a estapafúrdia de que teria que esperar, por cerca de duas semanas, pelo conserto de seu carro.
— Não tenho duas semanas! — ele exclamou, colocando-se de pé.
— Depois da vistoria que fiz, acabou que não é só uma peça que está suja ou com defeito — ela continuou enquanto consultava suas anotações. — Seu carro vem emitindo um alerta de recall, e isto quer dizer que algum produto está com defeito de fabricação e necessita ser trocado antes de apresentar possíveis problemas que podem colocar, inclusive, sua vida em perigo.
A seriedade na declaração emudeceu-o.
— A mangueira de retorno de combustível está ficando danificada devido ao atrito com a carroceria. Com o tempo, isto pode ocasionar vazamento no interior do veículo. Quando foi a última vez que fez a revisão?
— Início do ano passado.
Ela franziu as sobrancelhas ao encará-lo.
— Seu carro... como posso dizer? Parece que foi revisado de muita má vontade. Tem parafusos que nem sequer pertencem a ele, como se tivessem substituído os originais e colocado qualquer coisa no lugar para fazer de conta, entende? Algumas peças estão perigosamente frouxas.
— Malditos — ele murmurou, louco da vida quando se lembrou do recente escândalo envolvendo o dono da concessionária, à qual levava o carro, estar foragido da polícia.
— Não quero lhe assustar, mas o senhor poderia ter pegado fogo — ela informou. Alguma coisa deve ter lhe passado pela cabeça, pois um inesperado ar de riso infiltrou-se em seu rosto.
— Me despreza tanto a ponto de sorrir ao me imaginar pegar fogo?
— Desculpe, eu... não é isso. É que me lembrei do que Fabrício... Bom, de qualquer forma, teria sido uma fatalidade. Ninguém é à prova de fogo, nem mesmo o senhor.
Suficientemente humilhado com a exposição da péssima condição interna de seu carro, Fernando não desistiu de recompor a dignidade na frente daquela mulher. Afirmou com altivez:
— Eu teria sobrevivido, de um jeito ou de outro. Uma vez enfrentei um incêndio quando tinha doze anos. Meus pais não estavam em casa e os bombeiros chegaram quando o inferno já tinha descido à Terra. Eu poderia ter morrido aquele dia, mas algo me deixou viver. Você pode pensar que foi Deus, se for cristã.
O arrependimento abateu Diana, que sentiu-se envergonhada por seu comportamento inadequado, pois percebeu que aquela não era a hora nem o assunto para brincar. De fato, tentava encontrar motivos pelos quais Fabrício estaria errado a respeito daquele homem, querendo matar, assim, a mais pequena atração que pudesse estar crescendo por Fernando. Pensou em um modo de pedir desculpas sem revelar seu verdadeiro incômodo.
— Perdoe-me, não deveria ter subestimado seus superpoderes. Espero que possamos passar uma borracha neste momento inoportuno e fingir que ele nunca existiu.
As graciosas desculpas trouxeram um sorriso deslumbrante no rosto de Fernando, que respondeu:
— Também duvidei de seus superpoderes. Ao que parece, estamos quites.
Sorrindo, ele não parecia o homem de postura agressiva de minutos atrás. Enquanto Diana contemplava os lábios firmes, com ar distante, pegou-se imaginando como seria ser beijada por aquela boca viril e tentadora.
O rosto sorridente de repente ficou sério, assumindo ar feroz.
— Em que está pensando?
A pergunta arrancou-a do devaneio.
— Como?
— Perguntei no que estava pensando. É a segunda vez no dia que a vejo corar.
— Deve ser o calor — deu uma desculpa qualquer. — E não estava pensando em nada de mais.
— Engraçado... costuma pensar em nada de mais sempre que está perto de algum homem? Primeiro, aquele mecânico e, agora, eu. — Fernando semicerrou os olhos em legítima desconfiança. — Você é mais transparente do que imagina, menina.
— O que está insinuando? — Foi a vez dela de erguer-se do assento.
— Não se faça de ingênua. Para quem já teve três noivos, você deve saber muito bem a que me refiro. Talvez até melhor do que ninguém. Uma vez que está livre, não consegue sequer esconder que se lançou em uma nova caçada pela quarta vítima.
Chocada e ofendida, Diana assimilou que as hiperativas línguas de Pôr do Sol não perderam tempo em fazer sua fama chegar aos ouvidos do turista. Da maneira mais teatral e exagerada possível, tinha certeza. O pior de tudo é que o homem parecia convicto de que foi cogitado para pretendente.
Não sabia se ria ou se chorava.
Preferiu rir.
— Quem quer que tenha lhe dito que eu teria o mau gosto de namorar o senhor obviamente não me conhece direito.
— Como ousa...? Além de atirada, é atrevida!
— Atirada? Em que momento?
— Certamente não fui eu que fiquei te dando mole, desta forma encorajando os moradores da cidade a fazerem apostas infundadas sobre o resultado de um possível romance entre eu e você. A maioria está apostando que serei seu quarto noivo! — Visivelmente ele estava enfurecido, tanto com os fofoqueiros de plantão como com a natureza da aposta e com as faces risonhas da jovem à sua frente, que não parecia surpresa com a descoberta.
— Independente de alguém ter dado mole para alguém, as pessoas teriam iniciado a aposta. Mas só para ficar claro, eu não dei mole para ninguém. O senhor está assim, porque, provavelmente, é a primeira vez que está tendo que enfrentar as desvantagens de se morar em cidade pequena, onde um simples acontecimento pode virar notícia local. De preferência com fatos engrandecidos e exagerados, para atiçar os espectadores. Esta aposta não necessariamente reflete a realidade — lembrou-o com sagacidade, o que o deixou mais agitado. — Particularmente, interpreto como uma insaciável necessidade de fuga da monotonia. Apenas o senhor sabe o que existe no fundo de seu coração, se é que tem um... e se sabe, também sabe que não corre nenhum perigo, certo?
Em um piscar de olhos, Fernando se acalmou e voltou a sorrir, demonstrando toda a sua segurança quando disse:
— A senhorita há de convir que não existe a mínima chance de eu me apaixonar por alguém como você.
— E o senhor há de convir que não há a menor possibilidade de eu querer algo com um homem do seu tipo. — Devolveu-lhe o sorriso doce. — Resolvido este problema, falemos de seu carro. Como vai querer fazer?
A debate nos próximos minutos girou em torno dos trâmites para encomenda das peças, do prazo para a chegada e posterior conserto do automóvel. O primeiro e o segundo estavam condicionados à disponibilidade no estoque e rapidez no envio por parte da montadora. O terceiro, o conserto, era o de menos importância no momento. Afinal, sem as ferramentas e os produtos necessários, o serviço não poderia ser realizado.
Adotando a costumeira transparência, Diana detalhou o orçamento projetado para cada etapa e deu seu preço final. Consciente da cifra substancial, devido em grande parte à burocracia com a compra das peças originais, buscou enfatizar a liberdade que ele tinha caso quisesse orçar com outra oficina.
— Só peço que seja honesto comigo e não fique me enrolando. Não quero colocar empenho à toa.
Entretanto, antes de respondê-la, pôs-se a andar pela sala, como se balanceasse os prós e os contras.
— Gosto da sua sinceridade — ele disse em voz alta, com surpreendente reconhecimento. — Você já provou que pode ser eficiente, então darei este voto de confiança.
— Que grande honra — ela replicou baixinho com ironia.
Para seu horror, viu que ele escutou, no entanto, em vez da esperada reprimenda, flagrou-o tentando disfarçar um sorriso nos lábios. Ele parou de andar e encarou-lhe... não os olhos, mas, estranhamente, seus cabelos reluzindo intensamente sob a luz vespertina que entrava pela janela aberta.
— Agora que fechamos negócio, vamos sair logo desta sala antes que seus mecânicos tirem conclusões erradas sobre o porquê de estarmos a portas fechadas por tanto tempo. A última coisa que quero que pensem é que estamos no meio de um idílio romântico.
Diana foi até a porta e a abriu com cortesia, mas ele não saiu até que ela tivesse passado primeiro.
— Não se preocupe — ela respondeu sarcasticamente, quando já estavam lado a lado no corredor —, eles sabem que não gosto de coisas velhas e usadas.
*******
Coisas velhas e usadas?
Por mais que tentasse sentir raiva, certo de que Diana houvera se referido à sua idade, Fernando só conseguiu achar graça do insulto criativo.
Depois da estimulante conversa, chegando ao hotel, ele concentrara-se em arrumar seus pertences na mala para transferir-se a uma hospedagem de maior qualidade e notoriedade, indicada por um dos mecânicos da oficina. Agora que tinha um prazo de espera mais claro, não poderia passar duas semanas naquela espelunca.
Ele levou a bagagem para baixo e se dirigiu à recepção para fazer o check-out. Antes mesmo de alcançar o balcão, as feições da senhora, que estava atrás dele, ao ver-lhe de mala pronta, foram tomadas pela tristeza.
— Já está indo?
O que para Fernando soou como intromissão, para Brígida, a proprietária e recepcionista, não passava de curiosidade natural. Ele ainda tentava se acostumar com as manias dos moradores de fuçarem sua vida.
— Sim — ele respondeu, evitando desapontar aquela velha senhora que, apesar do decadente hotel, tivera lhe ajudado muito nos últimos dias. — Levará cerca de duas semanas para meu carro ficar pronto.
— E vai embora da cidade como?
— Não vou embora da cidade. Continuarei aqui até meu carro ser consertado.
Imediatamente deu-se conta do erro quando viu as faces da velha senhora ficarem esmorecidas. Mais do que ajudado, ela o houvera mimado como se fosse seu filho único. Atacou Fernando direto no estômago: providenciara-lhe todas as refeições, do café da manhã ao jantar; ou a qualquer hora que ele quisesse. Era só pedir e estava feito. O lugar podia ter inúmeros defeitos, mas, para azar dele, a comida era divinamente maravilhosa.
Quantas vezes fora tirado de seu quarto, por Brígida, para se reunirem para um lanche ou comer o delicioso bolo que ela mandara a cozinheira fazer especialmente para seu mais novo hóspede? Era um tipo de situação que não cabia recusa, algo impensável para um confesso esfomeado como ele.
— Entendi... é do meu hotel que está partindo. Não gostou dele — concluiu Brígida, expressando desalento.
— Por favor, não me entenda mal, mas não posso ficar aqui.
— Por quê?
— Por quê? — repetiu para ganhar tempo e procurar uma resposta que não a ferisse mais ainda. — Porque... bem...
— Acha que meu hotel é inadequado a alguém do seu nível.
Não negaria, mas também não concordaria em voz alta diante da pobre senhora.
— Eu realmente...
— Está tudo bem — tranquilizou Brígida, secando uma lágrima furtiva antes de ir sentar-se atrás do monitor do ultrapassado computador. — Estou acostumada com o desprezo que pessoas da sua classe dispensam aos meus negócios. Para ser franca, nem sei como você veio parar aqui. Deve ter decidido se hospedar comigo só porque precisava de um teto urgente para dormir e porque ainda não conhecia a cidade o suficiente para saber onde ficavam e quais eram os hotéis de luxo.
Com as coisas colocadas naquela perspectiva, Fernando sentiu que estava sendo caprichoso, dando mais importância ao dinheiro e à extravagância por uma questão de status.
Exatamente como Maia fazia.
Ele não gostou das semelhanças encontradas.
— Muito bem, vamos encerrar sua estada. — A senhora clicou no mouse e, com extrema culpa, Fernando viu outra lágrima deslizar pelo rosto envelhecido, a qual Brígida apressou-se a enxugar.
Desde sua chegada, ele foi tratado como se fosse hóspede único. Verdade seja dita, o número de pessoas que encontrou transitando por ali era baixo, quase nulo. Brígida sofria de baixa rotatividade de clientes. Se seus palpites de investidor estivessem corretos, ela viria à falência em menos de um mês.
Então, por que não dar alegria àquela amável senhora e ajudá-la financeiramente mantendo sua reserva?
— Qual seu sobrenome mesmo?
— Espere um instante.
Os tristes olhos de Brígida buscaram os de Fernando. Ela o encarava em muda esperança.
Ele respirou fundo, sem poder acreditar no que estava prestes a fazer.
— Esqueça o que eu disse. Mudei de ideia. Ficarei no seu hotel.
— De verdade? — indagou a velha senhora, os olhos brilhantes.
Fernando sorriu-lhe com gentileza.
— Seu hotel tem tudo o que eu preciso. Não há necessidade de transferir minha reserva para outro lugar... Não sei aonde eu estava com a cabeça para pensar isso.
Emocionada, ela levou a mão ao peito, levantou-se e disse, contornando o balcão:
— Você é um anjo em minha vida!
Percebendo a intenção de Brígida, Fernando baixou o rosto para que ela pudesse beijá-lo nas bochechas. Então, segurando-o pelo braço, ela o puxou na direção da escada.
— O jantar será servido daqui a pouquinho. Por que não leva suas coisas para cima e vai se trocar, querido? Pedi para Margarida fazer aquele ensopado que você tanto gostou em sua primeira noite aqui conosco.
"No final das contas, parece que ganhei uma avó", ele pensou enquanto caminhava de volta para o quarto alugado. Como pôde ter se afeiçoado àquela senhora em tão pouco tempo, a ponto de abrir mão de seu conforto para fazê-la feliz?
A simplicidade e a humildade de Pôr do Sol, embora incômodas no início, lentamente começavam a tornar-se encantadoras em algum nível. Havia algo de singelo e único nas pessoas daquele lugar, algo diferente de sua vida turbulenta na capital.
Até que cairia bem umas férias improvisadas de toda a rotina acelerada que vinha maltratando sua saúde mental. Não seria má ideia distrair-se um pouco e explorar as belezas da cidade. Ficaria ali por umas duas semanas, então por que não aproveitar?
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