Capítulo 4
Fernando Guerra não gostava de contratempos. Imprevisto era uma palavra pela qual tinha real aversão, pois era capaz de dizimar todo um severo planejamento feito com antecedência.
Infelizmente, mesmo com a precaução de fazer previsões múltiplas e tendo se preparado para o que podia dar errado naquela viagem, ele não anteviu o infortúnio com o carro. O que o deixou bem irritado e nervoso.
Assistia os dois mecânicos empurrarem seu carro pelo pátio da oficina com certa aflição.
— Cuidado com este carro!
— Por quê? O que tem de especial? — o mais jovem dos mecânicos atreveu-se a perguntar.
Assim que terminaram de posicionar, Fernando contornou todo o veículo fazendo sua inspeção detalhada.
— Com o salário que ganha, você poderia trabalhar até a morte e ainda assim não conseguiria pagar metade do que este carro custou, rapaz.
— Estou sabendo onde quer chegar, mas aqui não fazemos diferenciação nem damos tratamento VIP. Carro é carro. Tratamos todos com o mesmo cuidado — disse um velho senhor, aproximando-se para admirar o magnífico modelo conservado, como os outros mecânicos faziam.
Fernando arqueou a sobrancelha escura.
— Esta afirmação supostamente deveria me deixar contente?
— Só estou dizendo que, não importa o tipo de serviço ou de cliente, levamos todos igualmente a sério.
A sinceridade nos olhos do velho fez com que relaxasse um pouco.
— Fui pego de guarda baixa — desabafou e correu a mão pelo cabelo num gesto nervoso. — A última coisa que esperava era que esta... estúpida máquina... me deixasse na mão, logo quando eu estava retornando para casa.
— Bem que imaginei que você não era daqui. Mora no estado?
— Capital.
O velho assentiu e gesticulou para o veículo.
— O que aconteceu?
— Eu estava dirigindo, quando de repente...
— Pode deixar, Miguel. Eu assumo daqui.
Fernando voltou-se na direção da voz, surpreso com a interrupção.
Ficou ainda mais surpreso com a figura incomum que seus olhos encontraram: uma jovenzinha com o rosto sujo de graxa, o boné na cabeça virado para trás, usando o mesmo macacão que os outros mecânicos. A roupa era tão adequada ao seu corpo quanto o seria se o que estivesse vestindo fosse uma barraca. Havia folgas em todos os lugares possíveis e se não fossem as duas pequenas saliências pronunciando-se timidamente em seu busto, ele a teria confundido com um menino.
Embora cético com o sexo oposto, Fernando jamais escondeu seu apreço por mulheres e as maneiras que escolhiam para exaltar sua feminilidade. Que o acusassem de ser tradicional... arcaico... o que fosse! Admirava mulheres que sabiam se vestir, serem elegantes e sensuais. Que entendiam bem de seu corpo e sabiam usá-lo a seu favor.
Aquela jovem diante dele, entretanto, ia na contramão do movimento.
Estarrecido, olhou-a da cabeça aos pés e dos pés à cabeça. Ainda não acreditava no que via.
— O senhor dizia...? — ela o encorajou a contar sobre o problema, assim que Miguel se afastou.
— Quem é você?
— Oh... me desculpe! Sou Diana. — Estendeu-lhe a mão, sorrindo de sua reação tardia. — A pessoa com quem falou ao telefone mais cedo.
Ele não moveu um único dedo para retribuir-lhe o cumprimento. Sentindo-se constrangida, recolheu a mão.
— Pode me falar o que aconteceu com o carro? — ela tentou outra vez.
Alto e encorpado, o homem diante dela tinha um rosto de traços marcantes, emprestando-lhe um ar naturalmente intimidador. Observou o nariz aquilino, as sobrancelhas e os cílios espessos, negros como o cabelo. Contemplou também a pele da fronte, firme e escura feito chocolate. Os olhos, pretos, carregavam um olhar hostil.
Era um homem bonito. Agressivamente bonito. Não se lembrava de ter visto uma combinação dessas em toda sua vida.
Não que tivesse vivido o bastante, claro...
— É você que vai consertar meu carro? — A voz dele soou estridente e incrédula.
— Se me falar o que houve, sim, talvez eu possa ajudá-lo.
— Talvez? — repetiu com uma risada jocosa. — Que diabos há com esta cidade? Devem estar malucos se pensam que deixarei meu carro nas mãos de uma mulher... melhor dizendo, nas mãos de uma garotinha que parece ter acabado de sair da escola!
Um clima tenso pairou no local. Viu que até seus mecânicos ficaram desconfortáveis e imediatamente se dispersaram, arranjando qualquer coisa para fazer. Não se atreviam a olhar para ela e com certeza aquela não era uma batalha da qual estavam dispostos a participar.
Ela respirou fundo, buscando calma. Lamentavelmente ainda existia pessoas, majoritariamente do sexo masculino, que a subestimavam em sua profissão. Alguns fixavam-se em sua idade; outros, em seu sexo; e tinha quem se incomodasse com ambos os aspectos.
— Suas declarações são excessivas e não condizem com a realidade. Tenho 23 anos e reconhecida experiência em mecânica de veículos. Agora, por favor, se puder me fal...
— Ninguém mais vai me atender? — interrompeu-a, volvendo o corpo para encarar os outros mecânicos, subitamente ocupados demais.
— Eu estou lhe atendendo — disse, enfática.
Os olhos pretos voltaram a encará-la com toda a arrogância que pensou ter ficado para trás com aquela ligação.
— Você é cheia de marra, não é? Bem típico da sua gente... jovens descontrolados que se empolgam por qualquer oportunidade de quebrar regras. Por mais que você esteja uma gracinha tentando impressionar seus colegas de trabalho, não vou colocar meu carro nas mãos de qualquer um. Agora me faça um favor e me leve até o dono da oficina, sim?
Ela não se opôs. Pelo contrário, abriu um sorriso que o deixou desconfiado.
— Claro, senhor. Por que não me acompanha? — E comunicou aos funcionários com voz melodiosa: — Com licença, rapazes. Levarei este cliente para falar diretamente com o dono da oficina.
Conforme a seguia, Fernando comemorava sua vitória particular. Não tinha tempo para amadorismo. Sua pressa para sair daquela cidade era enorme e nada melhor do que se acertar diretamente com o homem que comandava a oficina. Alguém que imaginava possuir vasta experiência no ramo, acostumado a resolver qualquer tipo de problema na área.
Foi com imenso contentamento que entrou na sala do gerente. Estava vazia.
Deve ser um homem bastante ocupado, concluiu, ao analisar a mesa abarrotada de papéis. Somos dois ocupados e isto fará com que me entenda e me ajude mais rápido. Preparava a carteira, também, caso precisasse apelar para o lado financeiro da coisa.
— Sente-se, por favor.
Ele se sentou em frente à mesa, sentindo a cadeira ficar bamba sob o peso de seu corpo.
Era um escritório pequeno com uma única janela cuja vista dava para a praça. A mobília encontrava-se desgastada, mas, para sua admiração, o lugar estava adequadamente limpo. Identificou no ar um leve e refrescante aroma de alecrim.
— Se puder esperar um instante, chamarei o dono.
— Diga-lhe que é urgente — ele pediu com um sorriso autoconfiante.
— É para já.
A porta fechou-se. Em menos de um minuto foi reaberta, só para Diana ter a satisfação de entrar e ver a expressão masculina de absoluta confusão quando acomodou-se confortavelmente na poltrona atrás da mesa.
Olhou-o firmemente nos olhos. Embora previsse outra recusa, estendeu-lhe a mão mesmo assim ao dizer:
— Prazer, sou Diana Ferreira. A dona da oficina. Em que posso ajudá-lo?
*******
Assim que o forasteiro atravessou o pátio, passando apressado pelos mecânicos rumo à saída, Fabrício foi o primeiro a perguntar o que todos os outros também queriam saber:
— O que disse a ele?
Diana deu de ombros.
— A verdade. Ele queria falar com o dono, não queria?
— E é claro que você atendeu ao pedido alegremente. — Havia um misto de diversão e reprimenda no tom de Miguel.
— Bem? — Fabrício insistiu.
— Apresentei-me formalmente como a dona deste lugar — ela contou, sem poder esconder o divertimento ao recordar-se da expressão estupefata do homem. — Depois que ele se deu por vencido e finalmente apertou a minha mão, deve ter percebido quão babaca foi comigo desde que entrou nesta oficina, pois me falou o que aconteceu com o carro. Expliquei-lhe todos os procedimentos que faria para poder dar-lhe um diagnóstico preciso, mas caso fosse o que tenho em mente, provavelmente teríamos que encomendar a peça de fora, o que levaria algum tempo para chegar. Ele não gostou de saber que teria de esperar.
— Não é mesmo um modelo comum por aqui. — Fabrício observava o reluzente veículo, tão destoante dos outros estacionados ali. — Qualquer peça original deste carro deve custar uma fortuna...
— Também deixei-o ciente disto, mas ele não pareceu se importar muito com essa parte.
— Deve ser rico. Reparou nas roupas dele?
Emanuel, que estava sentado num banquinho analisando uma porta de automóvel, endireitou-se de repente para dizer:
— E tinha como não reparar? O cara estava de camisa social e gravata sob um sol de trinta e dois graus.
— Tiramos a sorte grande com este turista — celebrou Fabrício, sorrindo de forma maliciosa. — Será no mínimo interessante extorquir um pouquinho de um cara que não liga para dinheiro, para variar nos pobretões e caloteiros com os quais temos lidado ultimamente.
A censura brilhou nos olhos de Diana. Inseriu-se naquele meio conhecendo todas as malandragens e táticas ardilosas que sabia ainda existir em grande parte das oficinas de Pôr do Sol: colegas de profissão oferecendo serviços superfaturados; troca de peças, que na verdade nunca chegavam a ser trocadas; parafusos que inexplicavelmente "sumiam"; revisões malfeitas e todo tipo de coisa desonesta que ela abominava.
Era contra seus princípios passar a perna em clientes. Cobrava um preço justo por seu serviço. O mesmo aplicava-se aos seus mecânicos, para os quais desde o início deixou claro que se seguir esta regra fosse um problema, eram livres para procurar outro lugar para trabalhar.
Felizmente, a equipe manteve-se. Não por menos, já que a oficina vivia sendo procurada graças ao trabalho honesto e verdadeiro ali desempenhado.
— Vou fingir que não ouvi essa.
— Qual é, Diana! Vai dizer que nem passou pela sua cabeça?
— Se eu lhe disser o que está passando pela minha cabeça neste exato momento, você ficará escandalizado — respondeu ela com o olhar homicida.
Entendendo o recado, Fabrício saiu de seu lado, não sem demonstrar seu descontentamento sacudindo a cabeça.
— Interessante história, mas você ainda não disse o nome do nosso mais novo freguês — lembrou-a Miguel.
— Não sei se ele ficará conosco. Não confiou muito em minhas explicações, suponho. Antes de partir, furioso, deu a entender que consultaria outras oficinas se fosse necessário.
— Será uma pena se isto acontecer.
— Mas já que quer saber, o nome dele é Fernando. Fernando Guerra. — Ao pronunciá-lo em voz alta, um inexplicável arrepio subiu-lhe pela coluna para perder-se em sua nuca.
Ela se preocupou. Em oposição à costumeira tranquilidade, encontrava-se agitada, sobressaltada. Nem mesmo longe da presença poderosa conseguia relaxar... Por mais que desejasse consertar o carro, seu instinto lhe alertava que esta, talvez, não fosse uma boa ideia.
Para piorar o dia, um novo aborrecimento surgiu, em sua oficina, na figura desprezível de Luiz Cavalcanti. Conhecido na cidade por seus escandalosos casos extraconjugais, o homem perseguia Diana desde que a vira, pela primeira vez, enquanto ela voltava para casa depois da escola. Neste dia, ele emparelhou o carro com Diana, que andava na calçada, baixou a janela do carro e perguntou, com aquele olhar sujo e sexual, se ela queria carona. Pressentindo o perigo, Diana recusou imediatamente e acelerou o passo. Foi então que começaram as cantadas imundas e as propostas indecorosas. Constrangida e com medo, Diana correu para casa.
Assim que entrou na oficina, Luiz foi direto para seu alvo.
— Você por aqui? De novo? — Diana não disfarçou o sarcasmo. — Deixe-me adivinhar... seu carro apresentou problemas pela enésima vez?
— Que culpa eu tenho se não fazem mais carros como antigamente? — Ele exibia um sorriso predatório enquanto a encarava, abertamente, de cima a baixo.
— Sabe muito bem que o problema não é o carro, e sim o dono dele, que vive inventando expedientes para retornar a esta oficina.
— Inventar? As falhas são reais e você as conserta para mim, princesa.
As falhas no veículo eram de fato reais, mas Diana suspeitava que ele mesmo as causava propositalmente. Luiz nunca mostrou que desistiu de levá-la para a cama. Às vezes ele dava-lhe paz, quando se cansava do jogo de perseguição ou achava diversões para preencher-lhe o tempo, mas depois, passassem semanas ou meses, o homem brotava em sua frente, pronto para apoquentá-la.
— Certo, qual é o problema dessa vez? — Diana perguntou, querendo despachá-lo logo.
Após o breve relato de Luiz sobre a suposta falha, ela disse secamente:
— Verei o que posso fazer. Dê-me a chave.
Ao passar a chave do carro para ela, os dedos dele envolveram-lhe a mão de maneira completamente desnecessária. O toque indesejado provocou-lhe um arrepio de asco e ela tirou a mão da dele imediatamente.
— Controle a mão boba — exigiu ela, o tom calmo, porém firme.
— Mão boba? Você ainda não viu o que é mão boba, princesa...
E, sem que ela previsse, Luiz aproximou-se e apertou-lhe a cintura no macacão. Diana afastou-o com um safanão, ouvindo o riso indolente.
— Um dia você será minha, Diana. Não sei quando, mas sei que esse dia vai chegar. E será glorioso.
— Tome juízo. Nunca aceitarei ter algo com você.
Os olhos claros devoravam-na quando ele afirmou:
— Eu sei que quer. Você nega, mas eu sei que quer. Tanto quanto as outras quiseram. Esse tipo correta e quietinha eu já conheço. São mulheres que ficam extremamente safadas na cama, e é assim que quero te ver.
— A única coisa que você vai ver é a minha mão esbofeteando seu rosto se não sair daqui agora mesmo — revidou, sem se alterar.
Luiz fez menção de se afastar, entretanto, interrompeu-se quando olhou para a roupa folgada no corpo dela e o boné.
— Quantos mais você tenta esconder sua feminilidade, mais eu adoro. Só me faz querer descobrir o que há debaixo dessas roupas. Quanto mais os homens te abandonam, mais eu fico fascinado por você. Devo ter um fraco pelas rejeitadas.
— Você já ficou tempo demais. Dê o fora, Luiz — falou Diana, irritando-se com o comentário insensível. — Assim que seu carro ficar pronto, ligarei avisando.
— Sim, me faça esse favor. Será excitante ouvir sua voz. — Houve uma deliberada ênfase no "excitante". Logo em seguida, sem deixar de endereçar-lhe o costumeiro sorriso canalha, Luiz foi embora.
— Aquele sujeito não é boa coisa. Por que continua aceitando fazer serviço para ele?
Diana suspirou e fitou Miguel, que se postou a seu lado.
— É exatamente por Luiz não ser de boa índole que tenho medo do que ele pode ser capaz de fazer. Com os problemas no carro que arranja fácil, ele poderia inventar mais outro e dizer que, desta vez, o erro foi nosso. Nossa reputação ficaria manchada e perderíamos clientes. Poderia ser o nosso fim. Enquanto puder, farei o máximo para não me indispor com ele.
Luiz Cavalcanti era perigoso, não ignoraria isso. Era perigoso, porque ele não tinha parado de abordá-la naquele primeiro dia em que o conheceu, após a aula, enquanto fazia seu caminho para casa. Ele abordou-a mais vezes. Diana lembrava que as saídas do colégio eram acompanhadas de ansiedade e temor, levando-a a pegar rotas diferentes para chegar em casa, diminuindo, assim, as chances de ser encontrada e assediada por seu perseguidor.
O fato de que na época Luiz era casado e ela, uma adolescente, enojava-a ainda mais. Obviamente, a obsessão dele não passou despercebida aos moradores, levantando falatório em Pôr do Sol. Quando viu que sua carreira de médico estava sendo ameaçada, sob as acusações de pedofilia, ele parou de perseguir Diana. Por um tempo.
Depois de obter o divórcio e ela tornar-se adulta, as investidas recomeçaram. Mesmo quando estava noiva, não teve sossego. Uma vez seu último noivo, ao flagrar Luiz segurando-a pelo pulso com força, quase perdeu a cabeça e bateu no médico. Se não fossem os mecânicos separá-los, não sabia que fim o noivo teria levado, porque, embora fosse um mulherengo, Luiz possuía uma profissão de prestígio que lhe conferia certo poder e influência na cidade. Além de ser homem, claro, o que fazia com que vissem como algo normal o fato de que era um galinha. Aparentemente, só a acusação de estar cometendo um crime tinha força para fazer as pessoas voltaram-se contra sua figura e, assim, pará-lo.
Diana suspirou mais uma vez. O dia mal tinha começado e já estava com dores de cabeça, graças a dois homens. De um ela sabia o que esperar, mas o outro... este ainda era um mistério que, por certo, não tardaria a descobrir.
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