08. Ainda.
[NOTAS]: E não é que eu apareci em menos de 1 ano? Bravo!
Feliz ano natal e ano novo meio atrasados, mas tamo aí. Nada melhor que começar o ano com VDC, né? (não respondam, sei que tem coisa melhor, mas aí cês fingem)
Falo melhor com vocês nas notas finais. Vamos de resumo do capítulo anterior pra vcs não se perderem?
RESUMO CAP ANTERIOR: Jimin teve uma mini briga com a mãe, saiu com Taehyung, recebeu uma mensagem do JK pra ir ver um ensaio no domingo, mas já tinha combinado de ir ver o Kyuhyung. No dia seguinte, ele realmente vai no Kyuhyun, eles brigam ( quem diria? :O) e depois o Ji volta pra casa todo tristolas. Ele tira uma soneca de 4 horas e acorda recebendo um convite pra ir na casa do Hoseok (se ele estivesse livre e, opa, ele estava). Ele pensou com carinho no convite como o JK pediu? Não sei, veremos adiante.
Boa leitura!
#MorangoCanhoto
***
"Mas te quero sem me querer, e dizem por aí que é pecado — essa coisa de amar temendo ser amado."
Samanda, 2020.
Domingo, 18h01.
— Ficou bom assim?
— Isso é um absurdo.
Eu não sabia o que havia de absurdo em shorts brancos de alfaiataria, mas imaginei que Chae pudesse ter notado algo que não consegui. Olhei para o meu reflexo, mas ele não dizia nada. Tudo parecia perfeitamente normal.
— Você ficar tão bem assim com esses shorts sem graça, cacete. É um absurdo! — Sua indignação não sumiu nem quando ri de alívio. — Tá rindo do quê? Você nem faz academia e tem essa coxa. Vai se foder!
— São coxas normais. — E eram, se é que existia algum parâmetro para determinar isso. — Um pouco mais grossas que as suas, mas... normais, eu acho.
— Você mal sai do quarto a semana inteira e tem as coxas de quem posta vídeo de agachamento no Instagram do ângulo mais imoral possível com um trap ruim de fundo.
— Isso foi muito específico.
— Eu conheço minha laia.
— Quer dizer que está bom? Ou eu coloco uma calça? — perguntei, sabendo que não usaria calças naquele calor nem se me pagassem. — Outro short, talvez? Eu gostei desse, combinou com a minha regata nova.
Chaeryoung revirou os olhos pelo que pareceu a trigésima vez num espaço de tempo certamente desproporcional. Atirou-se sobre minha cama cheia de roupas com um suspiro alto e pegou uma camiseta qualquer para fingir se enforcar.
— Tá lindo, maninho.
— Chae! Isso é sério, caramba.
Mas não pareceu tão sério assim quando a camiseta nas suas mãos voou ao meu rosto. O tecido escorregou até cair plácido no chão.
— Tô seríssima. Se o Jota Cá não parar tudo que tá fazendo pra te ver passar, chama o necrotério que o coitado já se foi. — E lá estava, mais uma vez, dentro de um espaço de tempo também desproporcional, mais uma menção a Jungkook que era, no mínimo, incabível à situação. — Eu já disse umas quinhentas vezes que não importa que roupa de mauricinho açucarado você coloque, vai ficar um príncipe. Se estivesse uma merda, eu diria. Não aguento mais te ver trocar de roupa.
Já sabia que interromper a sessão de girl in red me custaria algumas patadas, mas estive disposto a pagar o preço pela honestidade brutal que me era tão urgente numa ocasião daquelas.
— Você sempre sabe o que vestir, Jimin. Não precisa da minha ajuda — ela voltou a dizer, ainda deitada. Tinha razão. Eu sempre acabava vestindo o que bem entendia por não confiar muito no senso estético dela.
— Eu sei, mas... é diferente. Quero ter certeza que não tô vestindo nada muito absurdo. Você não tem muito senso de moda, mas vai saber me dizer se eu estiver sendo ousado demais. — Fui até a bolsa onde havia deixado a roupa de banho e um casaco caso esfriasse só para ter certeza de que tudo estava ali.
— Você tem noção de que, tipo, você tá literalmente usando uma regata rosa e um short branco, né?
— Hã... sim?
— E o que tem de ousado nisso, seu maluco? A única ousadia aí é sua barriguinha mostrando nessa regata apertada, mas esse é o charme.
Voltei a me olhar no espelho com os dedos já correndo pelos colares sobre a clavícula, os brincos de melancia que arrisquei combinar com a boca rosada de lip balm. Pensei que as presilhas seriam um empecilho quando eu entrasse na jacuzzi, por isso, deixei os cabelos soltos e penteados para trás. Vendo daquele ângulo, até que...
— Até que eu tô bonitinho... né?
Para mim, corpo e performance sempre foram campos em disputa. Ninguém precisou me contar: eu mesmo descobrira, muito cedo, que tinha inscrita na voz, no jeito, nas roupas uma performance que meu corpo repelia, não por lhe ser natural rejeitar a própria expressão, mas por ser esperado que ela não existisse como existia. E no entanto, estava ali. Desde sempre. Eu não podia fazer absolutamente nada com a forma como existia, havia condensado e escondido tudo que pude esconder, de maneira que o restante era o que deveria ser até que não fosse mais. Gostava de presilhas, tinha a voz doce, paixão por moda e maquiagem. Fui lido desde sempre como um homem afeminado — seja lá o que vissem como essencialmente feminino, já que presilhas, saias, brincos não eram essencialmente nada além de... presilhas, saias e brincos —, e ainda que compelido o tempo inteiro a me sufocar, deixei que ao menos essa parte permanecesse como estava, ou eu desaparecia por completo e seria melhor nem ter nascido em primeiro lugar.
Eu detestava tantas coisas sobre mim que era surpreendente ainda ter coragem de me enfeitar. O bullying na infância não me roubara as pequenas alegrias das saias, dos delineadores de glitter. Kyuhyun tinha me notado, em primeiro lugar, porque gostava de como eu me vestia — "deslumbrante" foi o primeiro adjetivo que dirigiu a mim, dois anos antes, quando nos conhecemos. Meus pais nunca deram a mínima. Não ser uma anomalia para quem realmente importava era razão mais que suficiente para o cultivo daquelas paixões tão bobas, mas tão minhas. É claro, os problemas com a aparência continuavam ali — eu ainda precisava pedir validação de Chae ao sair para algo importante, com medo de ser demais —, mas todas as pessoas que conheci na vida tinham alguma insatisfação consigo mesmas. Eu estava autorizado, até onde sabia, a ter problemas com meu corpo, minhas roupas, e mesmo assim gostar do que via uma vez a cada verão.
Reparei com alergia que a regata rosa fazia meus lábios brilharem.
— É como eu disse... — Chaeryeong se sentou na cama e sorriu. — Independente da roupa, você sempre vai ficar um príncipe.
Com as coisas em ordem, após mais checagens no espelho do que o necessário, disse aos meus pais que sairia com Taehyung e me despedi dos gatinhos antes de sair. Em frente à parede amarela da minha casa, esperando o Uber que insisti em pedir mesmo contra a vontade de Jungkook, a ficha de que estava indo à casa de Hoseok para dividir uma piscina com os membros da banda mais promissora da cidade finalmente caiu.
Os beliscões costumeiros da ansiedade começaram no peito e desceram ao estômago, mas fiz o que pude para mantê-los sob controle. Tentei não pensar demais na intimidade do convite e em todas as barreiras que eu precisaria romper para colocar uma roupa de banho na frente de todos aqueles garotos descolados, com tatuagens e cigarros brilhantes, bebericando de cervejas amargas como se já tivessem esgotado o que havia de doce no mundo. A ideia me enlouquecia, embora já sentado no banco traseiro do Uber e sem pensar, em momento algum, na possibilidade de recuar, como um animalzinho curioso, trêmulo até os ossos, que avançava sem hesitar para fora da toca.
Avisei para Taehyung que chegaria em alguns minutos e implorei que me esperasse na porta. Fui o percurso inteiro batendo o pé contra o tapete do carro, revirando minhas redes sociais e resistindo ao impulso de abrir o chat com Kyuhyun. Me senti febril de fascínio e temor, como que mergulhado na água quente e arremessado num lago frio continuamente, centenas de pensamentos estirados, recolhidos, sobrepostos, Kyuhyun, roupa de banho, bebida, Jeon Jungkook. O motorista perguntou algo que respondi com pressa de voltar àquele estado dormente. Meu perfume era forte demais? Eu gostava dele para o verão, mas e se... bem, eu tinha usado um hidratante inodoro. Isso era um problema? O cheiro fixaria demais? Também havia o blush, aquele blush em pó, rosa frio, e... por que mesmo eu tinha passado? A água estragaria tudo. Não fazia sentido. Droga! Se eu esfregasse as bochechas com as mãos, daria tempo de tirar? Estávamos muito próximos? Claro que não tinha como. Saquei o celular da bolsa e abri a câmera, hiperconsciente de cada poro no meu rosto. Não vai dar, pensei angustiado ao tocar a bochecha, mas se eu esfregar assim...
O celular sacudiu na minha mão. O carro tinha feito a última curva do percurso.
Por um breve momento, senti a estranheza de quando estamos tão compenetrados em nós mesmos que voltar à realidade parece um erro. O motorista precisou correr alguns metros até que eu conseguisse associar as coisas ao meu redor com a bagunça da minha mente. Quando o carro estacionou e vi Taehyung sentado na calçada, já tinha recuperado o suficiente da minha compostura para pagar a corrida e sair do carro, ainda que não completamente alheio à ansiedade maciça compartimentada em algum lugar, uma esfera densa e cinza que apesar de fingir esquecer, era obrigado a carregar comigo.
Taehyung estava enfileirando algumas pedras que desenhavam o caminho até o portão imenso da casa de Hoseok, e parecia muito concentrado enquanto o fazia, pois se assustou quando me aproximei.
— Nossa, tinha até esquecido que você vinha!
— Que exagero... — eu disse, mas me preocupei: — Demorei tanto assim?
— Bom — ele se levantou e jogou os braços por cima dos meus ombros —, o Jungkook já foi comprar o suco de melancia, voltou, e já zerou duas cervejas. Tava paquerando os salgadinhos, mas disse que ia esperar você chegar.
Ah.
— Ah...
Taehyung bufou, bem próximo ao meu rosto, sem nenhuma discrição.
— Cacete de "ah", Jimin. Que viadagem sem tamanho é essa acontecendo bem na frente da minha salada?
— Você nem gosta de salada. — Belisquei sua barriga, e só então percebi a camiseta de grife. Com um sorriso aberto me tomando a boca e aproveitando a oportunidade de desviar o assunto, deduzi: — Está usando as roupas do Hoseok.
— Isso foi uma afirmação? — Eu conhecia Taehyung, sabia que ele era capaz de ficar sem jeito mesmo que todos duvidassem. A quebra de contato visual imediata sempre o entregava. — E se estiver?
Ele começou a me puxar em direção à entrada.
— Primeiro: você está. Segundo: o que vão querer de presente de casamento? — Saber que não era o único passível de ser provocado me trazia certa tranquilidade. Sorri e cutuquei Taehyung numa tentativa semiconsciente de descontração, como se não antecipasse agudamente o fato de que logo estaríamos entre os outros. — Vai me contar tudo depois, né?
Taehyung estalou um beijo súbito na minha bochecha.
— Óbvio.
Atravessamos o portão principal e constatei, sem surpresa, que demoraria até me acostumar com o luxo do jardim de Hoseok. Se não estivesse tão eufórico, teria lembrado de papai, me perguntado se ele conhecia todas aquelas flores, mas sob o braço pesado de Taehyung, só conseguia me lembrar da última vez em que estivemos ali. Era difícil pensar que as fileiras coloridas tivessem passado quase despercebidas naquele 21 de junho se comparadas à toda vivacidade que possuíam agora, sem a profusão de luz e gente. A casa parecia maior do que precisava ser, paredes enormes de um branco severo que poderiam sugerir abandono, não fosse o jardim bem cuidado e os vidros meticulosamente limpos que cercavam boa parte da sala principal.
Enquanto tentava recobrar os detalhes da festa e me reacostumar àquele espaço imenso, agora vazio, me veio à mente o que Jungkook dissera naquele dia, na garagem. "Me parece solitário". Eu respondi que, sem dúvidas, fazia sentido. E no entanto, só ali, andando pela sala e ouvindo a risada de Taehyung soar em ecos longínquos, cada vez mais fracos, eu entendi de verdade o que quis dizer. Havia quadros caríssimos, pequenas esculturas em mármore, cerâmicas chinesas, mas nenhuma foto em família, nenhum registro que desse ao ambiente o menor indício de vida. Senti como se visitasse um museu ao invés da casa de um amigo, e embora não conhecesse Hoseok tão bem, embora assumindo a culpa de — quem sabe — um moralismo ressentido, achei tudo aquilo muito triste. Esperava me lembrar de falar sobre aquilo com Taehyung depois. Ele não era dos mais realistas, mas conhecia Hoseok melhor e tinha os pés mais próximos do chão que eu.
Afinal, quão presunçoso me soava, de repente, conjecturar sobre os problemas dos outros sem antes percorrer os meus.
— Você trouxe roupa de banho? — Taehyung me perguntou quando partimos da sala pelas portas do fundo.
Concordei brevemente com a cabeça à medida que avançávamos pelo lado de fora. Não havia ninguém nas piscinas principais, mas eu conseguia ouvir o som remoto de alguma música. Taehyung pareceu perceber a confusão, então me esclareceu:
— A hidromassagem fica em um lugar fechado. Os meninos estão lá.
Seguimos conversando por todo o pátio até chegarmos ao que parecia o fim da mansão. Não era. Percorremos uma curta descida de pedras brancas que se iniciava próxima ao bar, quase imperceptível, não fossem os caminhos florais que se estendiam de ambos os lados da rota. Embora difícil de notar, talvez pelas árvores no caminho, havia uma pequena escada de pedra no fim da trilha que dava para uma construção à parte, como uma ilha. Subi cada degrau fascinado, ansioso, um pouco intimidado. Quanto dinheiro havia em cada centímetro daquela casa? Tive medo de quebrar algo por acidente ou, pior, não atender às possíveis expectativas de conduta que um lugar como aquele exigia. Era mais fácil com os corredores imbuídos no calor da festa, todos nós mais ou menos insignificantes entre músicas e copos com álcool, perdoados de antemão pela juventude. Mas agora tudo estava vazio e a imponência da casa se debruçava sobre nós como se esperasse o primeiro deslize para nos devorar; quem sabe fosse o som dos nossos chinelos baratos contra os degraus polidos a primeira advertência.
Passada a escada, consegui distinguir Naked, do DNCE, vibrando sob os meus pés assim que pisamos na plataforma. O lugar inteiro estava cercado de vidro e vigas de madeira escura, incluindo o teto. Dali, eu podia ver Hoseok com uma bebida rosa na mão, sem camiseta, metade do corpo imerso na água borbulhante de uma hidromassagem que o fazia parecer pequeno; numa cadeira de sol à frente, Namjoon — também sem camiseta, eu reparei — mexia no celular com um cigarro na boca.
A luz era pouca; azul profundo da jacuzzi e algumas instaladas próximas à base das vigas. Fui absorvido pela atmosfera luxuosa e intimista assim que Taehyung abriu a porta, como se me diluísse suavemente entre as páginas de um bom livro.
— Ah! Ele veio meeeeesmo! — Hoseok sinalizou eufórico, um pouco etéreo pela luz azul transpassando a água, e se levantou tão rápido que derrubou um pouco o drink rosa na bermuda. — Jungkook, olha só quem chegou!
De repente, minhas pernas vacilaram; senti que me tiravam a pele e viam tudo, tudo o que eu não conhecia ou queria esconder. A regata rosa me pareceu ridícula e eu me perguntava onde estava com a cabeça de colocar maquiagem. Senti que sabiam. Senti que podiam ver como estava desajustado e subitamente constrangido de existir naquele espaço. A ansiedade de que tentei me alienar espiou por entre minhas costelas e se agarrou ao coração acelerado que se esgoelava para escapar.
Mas foi um instante. Só um instante. Porque Jungkook apareceu.
Os olhos cintilando de ansiedade serena, boca vermelha rabiscada pela expectativa quieta de um caos bem-vindo. Ele sorriu assim, meio inocente, meio perigoso, cabelos úmidos e torso nu. Fiquei tonto, de pescoço quente, o pé da barriga retorcido num pulso doloroso. Molhei a boca no filete de saliva indecoroso, escorrendo na ponta da língua como rastro de um delírio quase tão obsceno que me fez ofegar.
— Oi, Cindy.
Eu respondi com os ouvidos zunindo e a voz patética de vontade:
— Oi, Jungkook.
Seria absurdo dizer que tentei não reparar quando não me esforcei nem o suficiente para disfarçar. Ainda sentia na garganta o gosto hipotético daquela pele molhada; os sons áridos que afoguei levaram junto o sabor imaginado de morango fresco, mas não me impediram de rastejar a vista ébria pelas linhas hipnóticas da tatuagem recém descoberta, três segmentos de fumaça escarlate que nasciam no cós da bermuda e se emaranhavam por todo o abdômen malhado até o peito, pouco abaixo do mamilo esquerdo.
— Bom te ver, Jimin. — A voz de Namjoon pareceu um chamado abafado de volta à realidade, mas eu ainda estava sensível demais.
Mexi as mãos para me autorregular e empurrei os olhos com dificuldade até os outros. Mais um segundo naquele jogo canalha e eu não saberia onde parar.
— Oi, gente... desculpa a demora.
No meio do caminho até o sofá onde Taehyung já havia se deitado, vi Yoongi sair pela mesma abertura de que surgira Jungkook. Estava vestindo um avental rosa de cozinha por cima do tronco despido e tatuado.
— E aí, garoto.
Sacudi a mão, ainda nervoso.
— Oi, hyung!
— Você chegou na hora certa, Jico! — Hoseok, que já havia saído da hidromassagem e de algum modo se aproximado o bastante para me tocar no braço, apontou frenético a Yoongi e Jungkook. — Eles estavam fazendo alguns espetinhos pra gente. Até agora estávamos sobrevivendo de salgados da festa de aniversário da prima do Namjoon.
— Que são muito bons apesar de serem de ontem, viu? — Namjoon intercedeu ao erguer a mão que segurava o cigarro. — Mas não mata fome.
— O Jungkook só colocou as misturas no espeto. Ele não fez nada. — Yoongi fez toda questão de frisar em sua voz entediada.
Jungkook o olhou de canto com o cenho franzido e descansou as costas na viga mais próxima.
— Faz você, então.
— Ai, vai começar... — Taehyung gemeu.
— Faço mesmo e melhor.
— Bom pra você.
— Ô gente, essas horas? Nesse calor? Sem condições, né? Sossega aí. — Namjoon bocejou, e sua reação me trouxe o alívio de constatar que aquela troca de farpas não era nada de mais. — Liga não, Jimin. Eles trabalham tanto com crianças que de vez em quando encarnam a quinta série.
— É a quarta vez hoje — Taehyung pontuou. — E os espetinhos? Ficaram prontos ou não?
Fiz um esforço descomunal para não olhar para Jungkook enquanto me acomodava no sofá ao lado de Taehyung. Meu instinto primitivo era devorar os detalhes, bordá-los na alma com fios de ouro antes que se perdessem ou que minha sorte acabasse e fosse tarde demais. Sabia que não era bom, que fazia mal me envenenar daquele medo constante de que ele se desfizesse como estrelas desenhadas na areia. E apesar disso, continuava precisando me lembrar de respirar e colocar as fantasias numa caixa antes que acabassem numa terra desconhecida. Contava até dez e tentava espantar os flashes vermelhos escuros, úmidos, palpitantes, do seu peito firme repleto de gotículas translúcidas que cintilavam sob a luz azul.
Tive a sensação, enquanto escondia minhas coxas descobertas com a bolsa, de que era melhor estarmos assim, cercados de outras pessoas, como uma medida de segurança a algo que desconhecia e por isso temia no âmago.
— Tem alguns pra terminar ainda, mas vocês já podem comer os que estão prontos. — Ouvi Yoongi dizer, embora sem encará-lo por saber que Jungkook estava logo ao seu lado. — Aliás, ranhento, termina de assar o resto.
Pude distinguir o que pareceu um gemido frustrado de JK mesmo em meio à música que se iniciava. Ele, no entanto, pareceu obedecer, pois Yoongi logo comemorou:
— Finalmente. Mais um segundo em frente àquela churrasqueira e eu enlouquecia.
Quando arrisquei olhar naquela direção, Jungkook já havia sumido. Não tive tempo de suspirar, Taehyung começou a tirar a camiseta sem dizer qualquer palavra e minha atenção foi atraída para seu tórax bronzeado.
— Vou entrar — avisou, embora não precisasse. Ficou me olhando até perceber que eu não diria nada. — Você não vem?
— Ah, acho que tá cedo, né? Acabei de chegar.
Foi inútil tentar me justificar.
— São seis e meia da tarde. E você não veio justamente pra entrar na jacuzzi, soul?
— Não! Quer dizer... — Perdi as palavras no momento em que notei Hoseok e Namjoon me olharem. — Não foi... tipo, só por isso. Vim fazer companhia.
— Bom, vou entrar. Tá um calor do caralho. — Yoongi deu de ombros, e eu me vi aliviado pela sua indiferença brutal àquela conversa. Ele começou a tirar o avental. — Vamos, Namjoon.
— De novo? Saí agora pra fumar.
— Foda-se. Entra aí, larga essa porra.
— Você ouviu, soul. — Taehyung apontou para a bolsa que eu segurava firmemente no colo e imitou a voz de Yoongi ao dizer: — Entra aí, larga essa porra.
Claro, depois da minha risada alta e dos incentivos de Hoseok — que mexia a cabeça em afirmação sem parar, olhando fixamente para mim —, tive que ceder. Namjoon me instruiu a trocar de roupa no banheiro ao lado da área em que estava a mini-cozinha; segui até lá com a bolsa pressionada à barriga e o coração na garganta.
As sombras dos músculos nas costas de Jungkook foram a primeira coisa em que meus olhos pousaram quando virei no corredor da churrasqueira. Ele manuseava alguma coisa — provavelmente os espetinhos —, e por um tempo acompanhei o movimento sutil das escápulas definidas sob a pele branca, que mesmo ali parecia queimada.
Só fiz barulho quando abri a porta do banheiro, mas num instante já estava lá dentro e não mais sob o perigo de que ele me percebesse. Agora, éramos eu, o reflexo corado no espelho acima da pia e a bolsa com os shorts de banho. Por já saber que, caso contrário, desistiria, virei de costas para me despir. Tirar, guardar, pegar, vestir; narrei a mecânica simples para não me ocupar das abstrações — e fiz bem. Sem olhar o espelho, repetindo verbos como um papagaio (levante, dobre, guarde), consegui me aprontar com rapidez e sem nenhum pensamento intrusivo.
Até olhar para a maçaneta e ser atingido pelo relance do meu tronco exposto.
A sensação de antes se aprumou como uma ameaça bem atrás das minhas orelhas. Não é tão forte, dei de ombros. E não era. Mas o poder das sensações não está tanto na força imediata. Todos conhecemos o potencial da vergonha. Como a maioria de nós, eu estava imbuído de pudor, com medo de um constrangimento inexistente só porque podia existir. Mas a vergonha pode existir tanto quanto a satisfação e a raiva e a alegria e o alívio e todo o resto. Eu só nunca antecipava outra opção, por mais possível que soasse. Devia ser como meu idealismo catastrófico havia aprendido a operar.
Considerei as possibilidades mais improváveis enquanto torcia a maçaneta da porta, coisas que eu com certeza havia feito sopradas ao longe pelo será. Será que me depilei? Será que passei perfume? Será que penteei o cabelo? Perguntas incabíveis suscitadas tão somente pela nudez parcial que eu experimentara tantas vezes antes e que me era — ou deveria ser — quase tão trivial quanto a qualquer samandense. Não detestava meu corpo; também não era dos seus maiores fãs. Tinha ido à praia com Taehyung no dia anterior, por que ficar sem camiseta havia só agora se tornado um problema?
Como se devesse, por misericórdia, se esclarecer, a resposta àquela pergunta abriu a porta antes que eu o fizesse. Tinha olhos verdes, um elástico de cabelo nas mãos, e cheirava a morangos frescos à beira-mar.
Foi rápido e devagar como só aquela espécie sublime de acaso; nossos torsos se encontraram num segundo que se estendeu na mesma infinidade de que eram feitas suas pupilas negras, gulosas e dilatadas quando sem querer as interditei. Dez, quinze, talvez vinte centímetros? Abri a boca para que o perigo se dissolvesse na língua, e quem sabe me dopasse da força para recuar. Não aconteceu. Nem dois, três segundos depois, entre a vacilação lúbrica da sua respiração e a contração sôfrega nos músculos internos da minha coxa. Seus lábios descolaram à medida que os olhos se insinuaram pelo meu abdômen, então eu senti; senti que era a primeira vez que Jungkook chegava tão, tão perto de escorregar da distância polida, segura, da qual sempre me olhava. Vi na mandíbula tensionada a transcrição de um pecado que, apesar de resistir, ele se viu a um deslize de cometer. E por isso, como eu, mesmo que se esforçasse, mal respirava.
Foi preciso todo tipo de força terrena e divina para não violarmos nosso pacto mudo de preservação.
— Desculpa. — Ele quem decidiu pedir num sopro grave de voz enquanto se afastava o bastante para não me tocar, embora nem perto do suficiente para sairmos da órbita. — A porta não estava trancada, então eu... deduzi que não tinha ninguém.
Não consegui me atentar ao que dizia. Entendi por alto que falava sobre o banheiro e a porta. Mas ainda estávamos perto demais. Perto demais. O raciocínio mais simples não tinha a menor ressonância, minha cabeça era a contenção frágil de uma névoa violenta se expandindo como uma cobra farta, prestes a me engolir.
— Hã... — O pudor de que me vali para especular desastres se foi tão rápido que pareceu ridículo, nenhuma lasca de decoro na forma como desci os olhos até os mamilos castanho-claros e assisti, sem piscar, seu abdômen contrair.
Ele sabia.
Os blocos de músculos proeminentes retesaram e relaxaram mais uma vez.
Ele sabia.
— Tudo bem?
O ar que deixei escapar soou mais alto do que deveria. De repente, num estalo de autoconsciência, subi os olhos até os seus e meu rosto ardeu quase no mesmo segundo.
— Ah! Sim, sim. Claro. É... — Porra. Eu não sabia o que dizer, não tinha o que dizer. — Eu estava me trocando. Desculpa, hã... pode usar. Digo, o banheiro! Pode usar. O banheiro. É... tá livre.
Jungkook sorriu de canto quando soltou uma risada baixinha e ergueu as sobrancelhas, tombando a cabeça para o lado como se tentasse me decifrar.
— Eu só queria o espelho pra prender o cabelo.
— Ah, sim... Bom... Tá livre. Desculpa.
— Não precisa pedir desculpas. — Ele riu. De novo.
Apesar de constrangido pela cara-de-pau inicial, senti meu corpo relaxar. Não era como se estivesse imune àquele sorriso bonito.
— Por que está rindo?
— Porque você é fofo — admitiu, assim, direta e desavergonhadamente. — E me deixa nervoso.
— Jungkook...
— O quê? — Com a porta agora completamente aberta, ele inclinou o corpo para o lado. Por cima do meu ombro, olhou para o espelho e começou a amarrar os fios úmidos num rabo de cavalo baixo.
Fiquei tão hipnotizado que quase me esqueci do que gostaria de falar.
— Por que nervoso? — perguntei sem saber o que queria em resposta, talvez em reação ao sentimento asfixiante daquela névoa peçonhenta ainda à espreita.
Jungkook não descolou os olhos do espelho; puxou do amarro duas mechas delicadas que emolduraram seu rosto pálido como fitas de sangue.
— Quer mesmo saber?
Tive uma vontade incomensurável de apertar aquele lábio esticado no sorriso mais traiçoeiro e cafajeste que ele poderia ter dado.
— Claro que sim.
— É engraçado, porque... — No instante em que as íris verdes rasparam as minhas, suas pálpebras se estreitaram em duas riscas felinas e ele balançou a cabeça em negação. Senti o estalo que produziu com a língua vibrar bem na base da minha coluna, irradiar pelo meu ventre só para subir rastejando até meu pescoço. — Eu não preciso dizer. Você já sabe a resposta.
O ar rasgou minha garganta por dentro.
— Sei?
Jungkook não hesitou, não teve sequer a intenção de esconder quando encarou minha boca e, então, subiu os olhos até os meus com ambas as sobrancelhas suspensas, uma voz arrastada quando reiterou:
— Sabe.
No instante em que pisquei, ele já estava a alguns passos de distância, e foi como se eu tivesse alucinado com a proximidade, o sorriso, as palavras.
— Vou levar os espetinhos pra lá — Jungkook avisou já de costas enquanto me oferecia nada além de uma piscadela por cima do ombro. Seus cabelos negros deslizaram pela nuca naquele rabo de cavalo frouxo quando ele virou completamente para a churrasqueira e acenou sem me olhar: — Gostei do gloss.
E sumiu com uma bandeja de espetinhos como se nada tivesse acontecido.
Achei que seria óbvio demais ficar ali, parado, com os dedos brancos ao redor da bolsa, esperando por algum desfecho. Com alguma estabilidade inesperada, rechacei os resquícios de rubor e andei sem pressa até a sala principal. Não me dei o tempo para pensar, porque tinha medo do que viria se o fizesse. Se Jungkook podia se esgueirar pelas chamas sem se queimar, eu deveria ao menos fingir que sabia fazer o mesmo. Por nós. Pela preservação.
Quando voltei à área da jacuzzi, já estavam quase todos dentro da água. Hoseok segurava o drink novo numa das mãos enquanto alcançava um espeto na bandeja oferecida por Jungkook. Taehyung estava entre ele e Namjoon, que se livrara do cigarro e agora bebericava de uma lata de cerveja. Yoongi, afastado do resto e mergulhado até o pescoço, foi o primeiro a me notar.
— Seu suco está no frigobar, Jimin — avisou, e apesar de monótono, deduzi que estava tentando ser gentil.
Tentei lhe dar um sorriso, mas de tão nervoso acabei só balançando a cabeça antes de deixar a bolsa no sofá e ir até o frigobar. Ainda não tinha me acostumado a falar diretamente com Yoongi, o que era estúpido, se considerada a terça na praia. Eu não sabia o que era, o que havia nele de tão severo que me desse pavor de vacilar, mas notei que qualquer contato direto me gelava como nunca Hoseok, Namjoon ou Jungkook fizeram. Por algum motivo, não sabia se por exigência impensada sua ou por pulsão minha, eu queria desesperadamente que ele gostasse de mim.
— Quer alguma coisa, Yoongi hyung? — ousei perguntar, com meu suco já em mãos. Ele era o único que não estava bebendo nada.
Ele levantou a cabeça — que antes jogara para trás na borda da hidromassagem — e pediu:
— Uma Heineken, se tiver — pausou brevemente —, por favor.
Dei um sorriso tosco do qual me arrependi, porque certamente soava ridículo.
— Ok!
Ao me aproximar com nossas bebidas, fiz de tudo para aproveitar a conversa dos garotos e entrar na jacuzzi sorrateiramente. Com as bolhas de água subsequentes e a luz azul, eu podia me tranquilizar com a ideia de que não reparariam tanto no corpo, nem se quisessem.
— Com licença... — anunciei por força do hábito, bem baixinho, à medida que minhas pernas imergiam na água morna.
Havia mais espaço do que podíamos ocupar na cerâmica branca. Tive o cuidado de não ficar longe demais dos outros, sem, no entanto, abusar demais da intimidade. Ficar ao lado de Yoongi pareceu seguro; ele era o menos expansivo, não tinha o menor interesse em quebrar o silêncio. Não ficaria desconfortável se eu escolhesse ficar quieto e, quase certamente, não tentaria puxar papo por dó. Por mais que adorasse os meninos, sabia que, apesar do medo que sentia dele, Yoongi era a pessoa que oferecia menos zonas instáveis naquele instante.
— Sua cerveja. — Estiquei o braço para chamar sua atenção, já que ele estava preso demais em algum ponto perdido à sua frente.
Seu peito subiu um pouco e ele se endireitou, pegando a lata com leveza.
— Valeu.
— Jimin! — Taehyung chamou minha atenção do outro lado. — Qual era mesmo aquele livro que você tinha falado?
— Que livro?
— Aquele lá!
— Ah, agora eu definitivamente me lembro — brinquei, sorrindo, e senti uma pontada de orgulho quando ouvi a risada de Yoongi. — Eu falo de muitos livros, Tae.
— Aquele do doido que é detido por uma coisa que ele não fez. O que você ficou obcecado por, sei lá, anos. Eu tava tentando contar a história pro Namjoon, mas nunca li.
— Ah! "O Processo". É muito bom! — Pareceu uma ótima oportunidade de me enturmar. Nada me dava tanto fôlego quanto falar de livros. — A coisa toda da burocracia, do absurdo.
— É bastante absurdo — Namjoon concordou, com interesse. — Parece do caralho.
— Eu amo esse livro. — A água precisou se agitar ao meu lado para notar a presença de Jungkook. Não consegui evitar seus olhos enquanto ele mergulhava quase sem um único som no assento mais próximo. — Bom gosto, Cindy.
Claro, pensei, em partes querendo rir. Claro que, além de todo o resto, ele também lê ótimos livros.
— Eu que o diga. — Sorri na sua direção. — Desde quando você gosta de Kafka?
— Ah, então é o tal do Kafta — Hoseok interrompeu à medida em que passava uma das pernas por cima de Taehyung. — A gente já conversou sobre ele, né, JK?
— Você passou um mês inteiro achando que eu estava falando de carne, mas, sim, o Kafka. Com "cá". — Jungkook mordiscou preguiçosamente uma das carnes no espeto que segurava e voltou a me olhar. Depois de mastigar, completou: — E eu acho que leio Kafka desde... sempre? Por aí. Já leu os diários dele?
— Alguns. São meio tristes.
— E hilários. Sempre dou risada daquele trecho... como é? — Ele olhou para cima com o lábio inferior entre os dentes até retornar com um estalo. — "Dois de agosto: Alemanha declarou guerra à Rússia"...
Quase não me contive de animação ao completar:
— "À tarde, fui nadar". Sim! Nossa, eu comecei a ler esse diário só pra chegar nesse trecho.
Fomos interrompidos por Taehyung, que fez questão de limpar a garganta de um jeito sugestivo.
— Estamos atrapalhando o clube do livro?
— Você foi bullie na escola, né, Taehyung? Conta pra gente. — Hoseok cutucou a bochecha dele só para levar um tapa na mão. — Viu? Que homem violento. Deixa os nerdolas nerdolarem.
— E não foi você que tocou no assunto do livro? — perguntei a Taehyung. Enquanto isso, uma briga de água se instalou entre ele e Hoseok.
— Não fode, pleno domingo tendo que cuidar dessas crianças. — Namjoon cobria o rosto dos respingos que o atingiam por causa do conflito. — Chega, caralho!
Eu nem tinha percebido — talvez fosse esse o ponto —, mas em algum momento esqueci completamente que estava seminu na frente deles.
Não ter me dado conta daquele pequeno-grande detalhe me disse muitas coisas sobre mim, do tipo que vem mais como sensação que pensamento. Eu estava tão feliz que poderia morrer e era tudo que sabia, sem necessariamente saber. Só sentir.
O sorriso de Taehyung me contaminou como se estivesse diluído no ar e na água. De tão contente, não consegui me sentir mal por não ter notado antes, com tanta clareza, o quanto ele gostava de Hoseok. Só pareceu meio bobo, um pouco engraçado, o fato de ser tão óbvio, tão na cara que ele estava se apaixonando sem nem se dar conta. Eu não diria nada — não, não tiraria dele a adrenalina intoxicante de, num dia qualquer, olhar para aquele alguém e provar a dor gostosa da constatação. Mais do que ninguém, Taehyung merecia viver cada pedaço do primeiro amor, e nada me deixaria mais satisfeito do que estar ao seu lado para celebrar com ele.
Aquele domingo já nem parecia o da briga com Kyuhyun. Nem eu parecia o mesmo. Estava bebendo suco e ouvindo uma conversa sobre música, num desses instantes fortuitos e no entanto cruciais, quando me lembrei da conversa com Jungkook mais cedo naquele dia. Sorri com o canudo de metal entre os lábios, porque, como sempre, ele tinha razão. Cômica e miserável, de repente, pareciam caixas desnecessárias às quais eu havia aprisionado minha vida. A própria categorização do pulso espontâneo de viver me soou mesquinha. Eu não me sentia mais como me sentia na calçada da casa de Kyuhyun. Não me sentia mais como no Uber até ali.
Era um sentimento similar ao que provei na terça, talvez por causa do tipo de sucessão de eventos em que eu parecia me meter sem parar nos últimos dias. Até então, funcionava como um ciclo; o pesadelo seguido do sonho, retornando ao pesadelo, indo ao sonho, e seguindo essa lógica por tempo indeterminado. Mas apesar de semelhante, agora, havia algo diferente, uma perturbação silenciosa no ciclo. Como um dano permanente.
Levantei de onde estava, subitamente precisando de ar. Não era ansiedade. Eu não estava passando mal; não sentia nada ruim.
— Já volto — avisei rápido e, sem me explicar, saí da piscina.
Eu não sabia o que era, mas precisava — como se tudo que eu tivesse vivido até ali dependesse disso — registrar o dano, a quebra no ciclo.
Os meninos deveriam estar entretidos, pois não me impediram de sair — ou talvez eu estivesse com as orelhas quentes e abafadas demais pelo meu próprio coração para ouvir qualquer um protestar. Peguei a toalha e o celular na bolsa em cima do sofá, sem pensar muito quando fui até a porta de vidro e a atravessei sem olhar para trás. Num segundo, inspirei o ar fresco das árvores lá fora. Meus olhos se fecharam por um tempo que não me preocupei em calcular, porque estava completa e absolutamente enfeitiçado de paz.
Andei até o último degrau, olhos já bem abertos, e quando finalmente sentado na pedra fria, passei a toalha pelos ombros e encarei meu celular. 18h52.
Foi automático. Não, mais orgânico que isso. Instintivo, talvez seja a palavra. Na falta da lapiseira, desesperados e dormentes de antecipação, meus dedos correram pela tela do bloco de notas. Estava lá, como imaginei: a pasta cheia de documentos com reflexões, angústias, rimas, livros pendentes, opiniões afogadas. Eram palavras tristes, mas notei que não guardava nenhum rancor delas; tinha escrito porque precisava ter onde me colocar, colocar a coisa que vaza, vaza, vaza de nós, que escorria, escorria, escorria de mim.
O que fiz não foi excepcional. Eu não estava inventando a roda, nem idealizando Ulisses, e nada ao meu redor seria brutalmente transformado por nada do que acontecia dentro de mim. Foi ciente disso — de que aquela paz era de mim, para mim — que abri um novo documento e escrevi as primeiras palavras gentis, talvez não tão bonitas (e quem se importava?), sobre a minha própria vida.
"18h52, 12 de julho de 2020.
Casa do Hoseok. Terça.
Estou feliz. Meu melhor amigo está se apaixonando e fica lindo quando sorri. Que bom que o tenho. O suco de melancia é delicioso, Jungkook quem comprou. Os meninos são incríveis e gostam de mim.
Num dia como esse, eu não sairia de casa. Ia chorar até dormir. Mas estou aqui agora, e está fresco de frente pra essas árvores.
Que bom que sou eu.
Não se esqueça, tá? De que você é capaz de se sentir assim também.
Lembre-se de nós, Jimin."
E quando terminei, eu tive certeza de que não havia me curado de mim, mas que estava mais forte de que nas etapa-sonhos anteriores. A promessa de pesadelo nem me assustava tanto, porque tinha sobrevivido até ali, colocado meu gloss favorito e minha regata nova, saído de casa por vontade própria depois de discutir com Kyuhyun.
Foi como se eu me deparasse comigo mesmo depois de muito tempo e só então tivesse uma pequena dimensão da minha força. Até então, todos meus períodos de êxtase nasciam de algo externo, e por isso se desmanchavam com tanta facilidade: a noite no Jude's, o dia do festival, a terça na Pavita. Agora, eu sentia que havia entendido — realmente entendido — uma pequena parte de algo importante, que ainda não sabia nomear. Mas eu sabia, sim, sabia que vinha de mim, e só de mim. Aquilo, no momento, pareceu mais do que suficiente para me deixar em paz.
— Você não comeu.
Tomei um susto embaraçoso durante o processo de virar para trás. Era Jungkook, com seus cabelos molhados, um espeto de carne na mão e um maço de cigarro na outra. Ele não se moveu de imediato, como se esperasse algum sinal de que podia se aproximar. Bloqueei o celular na mão, e não precisei me esforçar para sair da minha própria cabeça, porque Jungkook era sempre uma âncora muito eficaz à realidade. Dei-lhe um sorriso pequeno, esperando, com isso, comunicar que eu nunca o impediria de vir até mim.
Funcionou. Ele desceu as escadas sem pressa e sentou ao meu lado enquanto me estendia o espeto.
— Pra mim? — perguntei.
— Não. Só quero que admire meu bom trabalho na churrasqueira — ele disse, muito sério, e girou o palito à frente dos meus olhos de modo a exibir todos os lados da carne. Então, quebrou num riso bonito: — Claro que é pra você, Cindy.
— Você tá realmente engraçadinho hoje, né, hyung? — Apesar da provocação, peguei o espeto mesmo assim. — Veio fumar?
— E te dar comida — lembrou, ambas as sobrancelhas erguidas ao passo em que destacava um cigarro e colocava na boca. — Se importa?
— Você sabe que não.
— Ótimo. Era só um teste. — Aquele sorriso brilhante se abriu antes que ele puxasse o isqueiro vermelho e incendiasse seu pedaço de morte.
Ficamos em silêncio: Jungkook e o cigarro, eu e o espeto, as árvores pacientes sob a lua recém-nascida de um parto violento. Me pergunto se ele sente o mesmo, pensei, se saberia me explicar caso perguntasse, pois ao menos para mim, naquele momento, ele era a única pessoa no universo capaz de mostrar do que as almas eram feitas. Mas não perguntei; tinha medo de descobrir. Parecia demais, mesmo para o estado de paz entorpecente em que eu estava.
Nossos braços úmidos encostavam superficialmente toda vez que eu mordia a carne no espeto, então Jungkook olhava para cima, músculos do pescoço derretendo enquanto a fumaça subia e eu espiava com as orelhas quentes. Éramos cúmplices de um ritual — foi como escolhi chamar o modo como ele fingia não perceber e eu fingia acreditar.
— Vai voltar pra piscina? — Quis saber agora que terminara de comer e riscava o degrau com a madeira.
Jungkook inalou sem pressa para soltar com a mesma preguiça. Ele apoiou a bochecha na base da mão que segurava o cigarro e sorriu para mim.
— Se quer me expulsar é melhor me xingar ou dizer que tem algo no meu dente.
Revirei os olhos para rir.
— Não quero te expulsar. E não tem nada no seu dente. — De repente, franzi o cenho. — E se tivesse?
— Eu agradeceria por me dizer, sairia calmamente, me trancaria no banheiro e nunca mais sairia. Mas essa é a primeira opção — ele explicou com os olhos grandes presos em mim.
— E qual a segunda?
— Te hipnotizar com um relógio de bolso para que você esqueça, claro.
Nossos braços tocaram de novo. O ar preso na minha garganta saiu na lufada curta de um riso gradativamente transformado em gargalhada.
— Idiota — ousei, apertando a barriga com uma das mãos.
Ele ergueu as sobrancelhas ao mesmo tempo em que soprou a fumaça.
— Vou ser idiota a noite inteira se você rir assim.
Jungkook era difícil de prever; eu tropeçava toda vez, sem falha, e caía bem no centro daquele charme despretensioso, mas tão sofisticado que tirava o ar. Ele tragou mais uma vez e me assistiu sorrir com os dentes à mostra, confiante de que havia apertado os botões certos.
Apertei a mão que pousava na minha barriga e olhei para frente. A risada morreu aos poucos.
— Sabe, eu... Aconteceu algo legal dentro de mim agora há pouco. — A confissão se desenrolou sem razão, de repente, só porque desejei que ele visse, que soubesse que eu era capaz de dizer coisas boas.
— E o que você sentiu? — questionou entre uma piscada lenta e outro trago.
Para minha surpresa — quem sabe também para sua, e a de quem nos assistisse de algum lugar —, eu disse, sem nunca ter pensado a respeito, e mesmo assim sem hesitar, como se minha alma soubesse antes do cérebro processar:
— Que aprendi as primeiras palavras de uma língua nova, meio mágica, meio obscura, e que um mundo inteiro, também mágico, obscuro, se abriu por causa dela. — Então pausei, extasiado pela minha própria voz, pelas minhas palavras. Retomei com ares pesados de quem chegou perto demais de si mesmo por acidente: — Não sei. É como se eu aprendesse a ler de novo e descobrisse que livros existem. Muitos deles.
Jungkook não respondeu de imediato. Ele pareceu comovido pelo mesmo fraco espanto na minha pausa; talvez houvesse notado que eu não planejara a fala e por isso as palavras eram quase tão cruas que poderiam nem ser palavras.
— Não sei se... — Meus olhos acharam os seus. — Se fez sentido...
— Fez — respondeu sem hesitar. — Desculpa. É que achei lindo.
Apertei os lábios.
— Lindo?
Com um sorriso meigo, ele deitou a bochecha um pouco mais na própria mão e seus olhos quase se fecharam ao dizer:
— Você falando assim. As coisas que disse. É lindo.
O contato visual se quebrou imediatamente. Senti os dedos do pé apertarem, a barriga vibrar de nervoso sob a mão. Ele precisava parar de dizer coisas assim.
— Eu não queria forçar a barra te chamando pra cá. — Depois de alguns segundos em silêncio, Jungkook voltou a falar. — Sou um pouco ruim em insistir nas coisas. Acho que não tem nada pior do que sufocar ou ser sufocado. Talvez por isso as pessoas achem que sou distante demais.
Um arrepio estranho me subiu pela barriga. Algo está acontecendo, foi como se meu corpo avisasse. E só então me dei conta de que aquele era um dos primeiros momentos desde a noite no Jude's que Jungkook parecia falar sobre si mesmo. Fiquei em alerta e esperei com toda cautela que ele continuasse, sem me mover demais com medo de que, se piscasse ou soltasse o ar que prendia, ele se retraísse outra vez.
— Taehyung disse que você estava na casa do seu namorado. Imaginei que esse era o compromisso que você tinha mencionado. Depois, quando li sua mensagem de manhã, sobre a vida cômica e miserável, me veio um pensamento estranho. Estranho porque isso não acontece, não desse jeito, não comigo. — As pupilas se dilataram nos olhos verdes por um segundo. — "Eu deveria ter insistido mais. Deveria ter chamado mais uma vez", foi o que eu pensei.
Sua voz era tão suave que os intervalos soavam como ondas que se recolhiam brevemente antes de avançar. Eu esperei em silêncio que me arrastasse junto para o oceano.
— Faz algum tempo que não penso em algo assim, e desse jeito, meio do nada. Eu deixo as coisas irem e virem quando quiserem, se quiserem, como quiserem. Faço o que posso e tento não pensar muito sobre isso. E então... — Ele puxou as últimas toxinas, parecendo um pouco hesitante em continuar, embora o tenha feito mesmo assim com uma voz risonha, como que satirizando a si mesmo. — Voilà. Paguei a língua.
— Isso é ruim? — Tentei entender.
— Não sei. É? — Ele apagou, rindo, o cigarro no chão áspero. — Só me pegou de surpresa. Você leva jeito pra isso, aparentemente.
— Não sei se deveria me desculpar — brinquei. Não queria que ele percebesse minhas coxas tremendo.
— Talvez eu quem deva.
Joguei a cabeça sutilmente para o lado.
— Você? Por quê?
As íris verdes, antes presas à bituca morta entre seus dedos, me fixaram como se tivesse acabado de pisar em falso. Dos pés à nuca, uma linha de tensão me rasgou.
— Você não percebe? — A pergunta saiu baixinha, quase soprada entre os lábios vermelhos.
Meus joelhos já estavam apertados quando indaguei ainda mais baixo, nervoso embora perturbadoramente extasiado, hiperciente dos lugares em que nossas peles se tocavam.
— O que, Jungkook?
Ele abriu e fechou a boca. O pomo de adão subiu, desceu, palavras deglutidas o traindo de um segundo ao outro, porque subiram num refluxo violento à boca.
— Porque quis tanto te ver que menti. Não foi Taehyung que sugeriu te chamar de novo. Fui eu.
Quando seus olhos me abandonaram, era tarde; eu já tinha visto, pelo breve segundo em que durou, um raio pálido da sua alma. Os ecos fizeram meu ouvido zunir. Foi ele. Foi ele. Foi ele. Com suas orelhas vermelhas, seu cuidado em não ser demais. Foi ele. Intuição afiada, relatórios perfeitos das minhas angústias, a mesma discrição com que pediu para Taehyung, na noite da festa, que dormisse comigo. Ele, e seu rosto agora rosa-claro de constrangimento, olhos à frente para cobrir, sem ressentimento, mas com seriedade, o pedaço de alma que deixou aparecer.
— Bom — continuou antes que eu pudesse elaborar qualquer coisa —, desculpa o rodeio. Só quis dizer que estou feliz por você ter descoberto essa língua mágica e obscura. Talvez não tenha sido tão imprudente te convidar uma segunda vez.
— Jungkook. — Não pensei antes de tocar seu joelho descoberto com as pontas dos dedos, mesmo sabendo que era arriscado, mesmo ciente de que não deveríamos borrar a linha, como também não pensei antes de me inclinar um pouco mais até sentir sua panturrilha na minha. — Tá tudo bem, gosto de te ouvir falar. Obrigado por me dizer.
Ele ainda não me olhava e notei pelo recuo da panturrilha que estava receoso, embora eu não pudesse intuir exatamente o porquê. Era a primeira vez que o via daquela forma.
— Desculpa, fiquei nervoso. De novo.
— Eu estou sempre nervoso — tranquilizei-o de bom humor. — Bem-vindo ao clube.
Então, Jungkook finalmente desmanchou nas covinhas discretas do sorriso que eu conhecia e adorava com tudo que tinha. Pela segunda vez no dia, fui absorvido pelo orgulho inocente de ser a causa de um riso, já sem tanto medo do coração acelerado por saber que o motivo era bom.
— Clube de dois, hein? — Ele ergueu uma sobrancelha. — Soa promissor. O que fazemos nesse clube?
— Ficamos nervosos.
Dessa vez, ele gargalhou para valer, de corpo todo, e até sua franja vibrou com o ar escapando errático pela boca. Talvez fosse o sorriso, o tom colorido da risada, ou quem sabe os dentes fofos de coelho, mas eu nunca o vi tão jovem. Lembrar da sua idade me espantou, porque ele era, de fato, jovem demais, e eu não conseguia entender por que isso me perturbava. Tinha me habituado à distância confortável que Jungkook colocava entre si e o mundo; não tão longe para perder de vista, não tão perto para o cegar. Eu o admirava por isso, sentia que andava mil passos à frente de nós e, ao invés de nos apressar, esperava pacientemente que fizéssemos nossos caminhos.
Mas talvez... talvez eu estivesse errado.
Talvez eu quem estivesse sendo egoísta demais por não perceber que ele estava ali, como eu, como nós, procurando pelo melhor jeito de viver a própria vida. Ele tinha vinte e dois anos. Vinte e dois. Trabalhava com crianças e numa banda promissora, mas ainda pequena, e, ao que tudo indicava, morava sozinho. Eu não sabia nada sobre ele, de onde via, se ainda falava com os pais, quais medos e sonhos ficaram, quais se foram. Por que Samanda? Por que música? Como eu, ele tinha se sentido pressionado a fazer faculdade?
Eu havia, inconscientemente e até aquele instante, colocado numa caixa de vidro a ideia que fabriquei sem a sua permissão para me sentir melhor comigo mesmo. Mas ele — a pessoa quase tão jovem quanto eu, que se queimava no sol, ria com o corpo e ficava nervosa às vezes — estava logo ali.
— Hyung? — As pontas dos meus dedos, ainda sobre seu joelho, circularam sua pele levemente calejada.
Pude jurar que o senti arrepiar antes que me encarasse.
— Hm?
Os olhos dele são muito verdes, lembro de ter pensado, e os cílios são tão longos que pesam sobre eles. Que criatura terrivelmente bonita ele era. Como eu havia passado tanto tempo vendo-o sem enxergá-lo de verdade? Quantas metáforas baratas usara no esforço de sacralizar sua juventude pungente. Mas tudo bem, quiçá fosse mal de escritor; palavras eram tudo que tinha para capturar o incapturável, à espera do fracasso e mesmo assim fazendo o melhor que podia.
E eu não podia voltar atrás, refazer nossas conversas, recosturar meu olhar. O possível era me redimir ali, naquele momento.
— Eu gosto quando você ri, e quando conta de si mesmo. Gosto que diga tão abertamente que está nervoso, porque assim penso que talvez não seja ruim que eu também esteja. — As sílabas, os sons, tudo vinha de um lugar inacessível que no entanto me guiava. Sua pele estava insuportavelmente quente sobre meus dedos, mas não me afastei. Deixaria que me queimassem, se assim quisessem. — Não sei o que te fez insistir, só estou feliz pelo pensamento estranho ter te vencido. Egoísta ou não, que seja. Que bom que aconteceu, porque eu descobri uma língua mágica e obscura depois de uma manhã terrível, e tudo porque você insistiu.
Vi o tremeluzir sutil nos seus olhos antes que os lábios vermelhos se descolassem. Era aquele raio de alma outra vez, um pouco mais demorado agora, embora ainda rápido demais para me dizer tudo que eu gostaria de saber. De todo modo, não me preocupei, e nem poderia, porque Jungkook sorriu sem os dentes, o mesmo sorriso fechado, gentil, tão ele, que me desarmei.
E tão logo o fiz, nossas coxas se tocaram, pele com pele pouco acima dos joelhos, num curto-circuito dominó à medida que seus dedos encontravam os meus e suas unhas esboçavam suavemente as costas da minha mão.
— Cuidado, Cindy. — O apelido grave escorrendo como manteiga fez todos os pelos do meu corpo se levantaram. — Eu posso acabar me apaixonando por você.
Naquele segundo, desarmado, senti Jungkook pulsar por baixo da minha pele; ele me descamou sem aviso num único golpe e se entranhou o máximo que podia. Pensei que desmaiaria por falta de ar, que morreria de infarto agudo por overdose. Cada segundo era um milagre se eu permanecesse consciente apesar da pressão sanguínea na cabeça. Dói, dói, dói, tudo dói. Dói demais. Não quero ouvir. Não quero ver. O que eu sinto por você é assustador. Tenho medo do meu coração quando estou contigo.
— Não diga coisas assim — implorei com as pálpebras vibrando, a boca seca. Senti que ele poderia abocanhar meu coração ali mesmo e nunca mais devolver. Tive medo de mim. De nós. Do que aquele meu coração jovem era capaz de sentir. — Por favor...
Kyuhyun.
Eu tinha me esquecido de que havia Kyuhyun.
E ele voltava para me assombrar agora como punição pelo deslize. Ele viu tudo, ouviu o que Jungkook falou, notou o modo como o toquei. A paranoia se proliferou, mais assustadora quando constatei, vendo minha alma refletida naqueles olhos verdes, que não a temia mais do que minha sede destrutiva quando Jungkook murmurava coisas assim.
Constatei com pânico que com Kyuhyun, mal ou bem, eu poderia lidar; vinha fazendo-o havia tempo demais. Mas com aquele tipo de paixão, o que acontece uma vez em toda vida, torce e rearranja seus sentidos, seu coração, suas vísceras, eu não fazia a menor ideia de por onde começar. Era palpável e, ao mesmo tempo, inconcebível; lindo, seguro, mas violento e instável também.
— Tudo bem. — Só quando ele se afastou, meio turvo diante de mim, consegui raciocinar com mais nitidez. Jungkook sorriu, apesar de tudo. Havia algo de errado, mas ele se esforçou para não demonstrar. — Desculpa.
O pânico me tomou de novo, dessa vez por notar que o havia assustado. Que merda eu falei? Por que agi assim?
— Hyung, desculpa, é que...
— Não, de verdade, Cindy. Você não tem nada, mesmo, pelo que se desculpar. — O timbre ressoou gentil, bastante morno como de costume. Ele sorriu com tanta sinceridade que o senti me perfurar um pouco mais, até sangrar. — Não vai se repetir, tá? Te compro um sorvete de limão pra compensar. Parece bom?
O sorriso era lindo, e o pedido sem sombra de dúvidas honesto, mas eu senti. Algo havia mudado.
— Hyung? — chamei, sem me preocupar em responder sua pergunta por estar com medo demais de ter quebrado alguma coisa importante entre nós. — Eu não quis...
Mas não consegui completar. Dói. Dói.
Doía porque, de algum modo, eu sabia que era como as coisas deveriam ser. Doía porque eu estava quebrado e não suportaria a queda. Era demais: eu, ele, o modo como sentia que o conhecia de algum outro lugar, de alguma outra vida. Eu, que mal me percorrera, que ainda sofria para ser um pouco mais gentil comigo mesmo. Eu, ainda tão manchado com o cinza de Kyuhyun. Era demais.
Ainda era demais.
— Eu sei. Sei que não quis. — E mesmo assim, em meio àquela catástrofe, como ele poderia me olhar com tanto carinho?
Seus braço subiu, e por antecipação, inclinei o rosto para que ele apertasse meu nariz, mas não veio. Ele se impediu antes que o instinto o levasse.
— Não se preocupe comigo, Cinderela — pediu com a voz mais graciosa que já ouvi na vida. — Lembra do que eu disse? Vai precisar de mais que isso pra quebrar meu coração.
— Não quero quebrar seu coração — interrompi numa lufada, apesar de saber que ele estava tentando me distrair, tornar as coisas mais leves. — Não quero te machucar.
Cílios negros sobrepuseram delicadamente os olhos verdes quando ele levou uma das mechas vermelhas para trás da orelha. Havia cuidado em cada gesto, e me pareceu injusto. Grite comigo. Diga que não faço sentido, que sou uma bagunça nociva de epifania e desilusão. Me culpe por ter medo das coisas darem errado, e mais ainda de darem certo.
Mas Jungkook ficou em silêncio, olhos nos meus, como se entendesse parte de mim que eu ainda não sabia como navegar. Ele não podia me contar, percebi. Todavia, estava fazendo de tudo para que a maré não fosse tão impiedosa quando eu chegasse lá.
— As pessoas se machucam com ou sem intenção. Você vai enlouquecer se pensar em todas as variáveis — ele me disse quase como um segredo. — Não é mais simples fazer nosso melhor ao invés de tentar prevenir o inevitável?
— Está chateado? — Fiquei envergonhado por atropelar tudo que ele havia dito, mas não pude me conter.
Só notei que tocava seu joelho de novo quando a pele calejada dos seus dedos me segurou suavemente para me afastar.
— Não estou — admitiu. Ele olhou para frente por um segundo só para voltar no outro com a mandíbula tensa. — Não com você. Nunca com você.
Jungkook merecia que eu não fosse nada além de justo, que aceitasse sua resposta e nos interrompesse por ali antes que as coisas saíssem ainda mais do controle, mas eu já estava longe demais para considerar os motivos das coisas terem desandado em primeiro lugar. Quis fazer certo — ou o que imaginava ser certo — e remendar a fissura causada pelo acúmulo de tensão até ali.
— Como posso melhorar? A sua chateação — pedi, trêmulo.
— Jimin.
— Eu sei que não é comigo, mas eu disse algo que...
— Jimin-ah.
— ... nos deixou nesse clima estranho e...
— Jimin, você namora — Jungkook soltou, finalmente, e eu me calei, porque ele estava sério, tão sério que sua voz se comprimiu num tom quase fúnebre. — E eu estive esse tempo todo olhando para você, tocando você como não deveria. É comigo que estou chateado.
Meu estômago embrulhou.
— Você... — Tive medo de continuar, mas o fiz rápido, sussurrando — só está sendo gentil.
O sorriso triste que ele me deu naquele momento estava pintado com todas as nuances de vermelho das quais nos escondemos por tanto tempo.
— Nós dois sabemos que não é só isso.
Foi o mais próximo que nossas palavras chegaram da verdade — aquela que não podíamos, por medo do que se tornaria fora de nós mesmos, falar. Ele tinha razão: eu sabia. Acontece que no abstrato do coração as coisas são fáceis e bonitas como o pouso de uma borboleta na palma da mão; as asas não se batem por um instante, então pensamos que somos donos do mundo. Só por um instante. Mas a borboleta se vai eventualmente; a falta de controle nos espanta e pensamos no que aconteceria se tivéssemos guardado-a por mais tempo.
Nenhum de nós estava pronto para lidar com o tornado, então fechamos nossas mãos rapidamente antes do voo. Por enquanto, ela ficaria ali: bonita, imóvel, e, por isso, inofensiva.
Que mentira descarada seria dizer que não me despedacei; de todo modo, fiz o que pude para me agarrar às reminiscências da epifania que registrara momentos antes, pois não fazê-lo — eu imaginava — significaria admitir que confinara a borboleta à toa. Eu não estava disposto a dar o braço a torcer; não depois de quebrar o ciclo, não depois de fazer o dano — microdano, que fosse — em minha miséria. A língua mágica e obscura ainda estava ali, uma imensidão à espera que fazia mesmo situações tão azedas quanto aquela parecerem, pela primeira vez, mais palatáveis.
Mas doía como o inferno, ainda assim; a certeza de que havia nós demais para serem desfeitos e possíveis embaraços que não podia evitar. Eu olhava para Jungkook, mechas vermelhas e cheiro de morango, os olhos familiares, os braços em que havia chorado, as pintinhas que decorara sem querer em sonhos, e cogitava soltar de vez a maldita borboleta. Muitas vezes, era tudo que eu conseguia pensar, principalmente assim, tão perto, com o coração na garganta impedindo qualquer passagem de ar.
Apesar disso, não dissemos nada. O silêncio não foi exatamente ruim, mas não tinha o mesmo conforto das outras vezes. Embora eu quisesse desesperadamente que voltássemos aos eixos, pensei que era justo ficarmos um tempo assim. Meu corpo tremia; eu estava com muito medo de que ele não me suportasse mais, que decidisse subitamente se livrar daquela brincadeira idiota para qual o puxei, e por isso passei a respirar devagar, baixinho, temendo afugentá-lo. Sentia que ele perceberia, a qualquer momento, que eu era patético e egoísta, e que toda aquela bagunça nunca valera a pena, de toda forma.
Mas não aconteceu. Um, dois minutos se passaram, e Jungkook continuou ali, bem ali, exatamente ao meu lado.
Com o tempo, parei de tremer. Não consegui achar um significado muito claro para sua permanência, ou para os efeitos da conversa que tínhamos acabado de ter, mas me lembrei do Jimin que havia escrito as anotações bonitas no bloco de notas e constatei que não me arrependia de nada; eu ainda teria aceitado o convite se soubesse o que aconteceria, ainda teria encostado meu braço no de Jungkook se previsse onde isso nos levaria, e ainda olharia para ele com a mesma devoção que sempre olhara, sabendo que ela me rasgaria.
Talvez em virtude disso tenha dito sem o coração pesado:
— Eu ainda estou muito feliz por você ter me chamado.
Jungkook entendeu num estalo — porque ele sempre entendia mesmo que eu não o dissesse.
— E eu ainda estou feliz por você ter vindo.
Sorrimos um para o outro com carinho. De repente, ele se levantou e corri os olhos pela tatuagem de fumaça que cortava seu tronco, só quebrando o vislumbre quando ele estendeu a mão para mim.
— Aceita voltar pra dentro e cozinhar um pouco mais na piscina? Aí dilatamos os poros e fazemos skincare quando formos embora — sugeriu um pouco incerto, então completou: — Ou algo assim. Não sei. Taehyung quem disse que é bom pra pele. Ele me fez sentir meio idiota quando falei que não uso hidratante...
— Não dê liberdade ao Taehyung ou ele vai te fazer comprar cinquenta tipos de produtos pra pele — comentei com diversão ao aceitar sua mão e me erguer, ainda mais leve que anteriormente por perceber que tinha sido muito bobo temer que ele se fosse.
Dói, pensei, mas vou sobreviver, porque ele continua aqui.
— Mas hidratante é... meio básico mesmo, hyung. Com todo respeito.
Ele franziu o cenho em falsa indignação. Nossas mãos ainda estavam juntas.
— Eu achei que era só pra pele seca?
— E tomar água é só pra gente desidratada?
— Ouch.
— É brincadeira! — Comecei a rir como um idiota e fingi não estar completamente alerta a como nossas peles deslizaram uma na outra até nos afastarmos para subir as escadas. — Mas você realmente deveria usar hidratantes, ainda mais se queimando tanto.
***
Foi uma espécie de purificação quando nos juntamos aos outros. Senti deixar para trás os resíduos de algo que só retornaria mais tarde, quando saísse por aquela porta de vidro. Não me importei; achei, na verdade, que era saudável viver um minuto de cada vez, e só o consegui porque estava envolto de pessoas com quem poderia conversar o que não conversava em casa, ou com Kyuhyun. Afinal, não havia muita sala para amargura com Hoseok e Taehyung se beliscando a todo instante, arrastando todos nós ao bom humor intrínseco a eles.
A falta de sociabilidade que sempre achei tão minha nem deu as caras. Me empolguei sobre livros com Namjoon, escutei suas experiências como professor do fundamental, e descobri que ele era um ativista ferrenho. Yoongi deixou escapar que Namjoon tinha um currículo acadêmico impecável, apesar das críticas que fazia ao sistema educacional. Exceto pelos meus pais, com seus diplomas e carreiras brilhantes, eu nunca havia me imaginado tendo uma conversa frutífera com alguém de tanto prestígio intelectual. Ainda me soava um tanto absurdo que ele quisesse me ouvir e que prestasse cuidadosa atenção às minhas indicações de livro. Comecei tímido, pontuando sem muita energia as qualidades e defeitos nas minhas leituras mais recentes, para não soar presunçoso. Assim que me dei conta da validade que conferiam (ele e Yoongi, que se interessara pela conversa) às questões que eu levantava, deslanchei: dei opiniões mais incisivas e cheguei até a falar sobre literatura num quadro geral. Eles ouviram sem interrupções, e no fim, Yoongi, do seu jeito monótono, parecendo sempre desinteressado mesmo que não estivesse, fez um pedido que me empertigou:
— Pode me enviar por mensagem algumas indicações de livro? O Taehyung tem meu número.
Ah... eu me senti tão, tão importante. Passaria horas fazendo a lista mais refinada só para não decepcioná-lo.
Do outro lado da piscina, mergulhado até o pescoço, Jungkook ria de alguma besteira que Taehyung dissera. Eu registrava sua voz mesmo quando não o via, como se tivesse atrás da orelha uma marca hiper-reativa que ardia sempre que ele falava. Sua capacidade de síntese nunca deixaria de me impressionar, eu me perguntava onde ele havia aprendido a se comunicar com tanta sofisticação e assertividade mesmo numa conversa absolutamente banal. Mas quem sabe fosse nato — eu não via como atingir aquele nível de eloquência somente com livros — ou talvez a observação silenciosa o desse tempo de formular tudo que precisava com a maior eficiência. De toda forma, era encantador, e deduzi que todos os outros também achavam.
Aquele domingo me dera esboços detalhados das dinâmicas do EVIL. Yoongi e Namjoon eram muito próximos, suas conversas às vezes se tornavam tão abstratas que ninguém conseguia acompanhar. A paixão de Namjoon pelo que dizia, no entanto, tinha uma vazão consideravelmente maior; Yoongi o assistia com um sentimento que não pude distinguir, mas que aparentava fazê-lo bem. Eles se perdiam entre política, filosofia, física quântica, ombros se chocando aqui e ali meio sem-querer-querendo. A certa altura, ficaram tão absorvidos em si mesmos que me senti constrangido de continuar olhando; algo de muito íntimo — e sem dúvidas complexo demais para que eu pudesse entender numa noite — recobria aqueles dois.
Quanto a Hoseok, não me surpreendia que sua expansividade o conferisse ares de uma juventude até mais alegre que a de Taehyung, mas foi como se finalmente o capturasse em toda sua vibração. Ele participava de todas as conversas com otimismo, e podia tornar mesmo um conceito difícil evocado por Yoongi ou Namjoon num tópico trivial, que estimulasse ao resto de nós. Diferente dos outros, não desperdiçava qualquer abertura para toque físico; ora bagunçava os cabelos de Jungkook, ora passava os braços pelos ombros de Taehyung, ora irritava Namjoon cutucando seus pés. Comigo, ainda parecia testar as águas, mas por mais de uma vez moldou um topete bobo no meu cabelo.
Entendi por que Taehyung gostava tanto dele. Não poderia ser de outra forma.
O que me intrigava, contudo, de maneira quase incontrolável, um tanto obsessiva, era a relação entre Yoongi e Jungkook. Me peguei várias, diversas, incontáveis vezes sendo puxado com violência para as poucas palavras que eles trocavam. Se dirigiam duas frases inteiras um ao outro num intervalo de meia hora, era muito, e sempre muito evasivas. Juni, você que tinha escrito aquele verso, né? Sim, fui eu, hyung. E voltavam aos próprios núcleos com pressa como se uma vórtice gigante pudesse engoli-los se não fossem rápidos.
Além disso, havia aquele apelido. Juni. Na primeira vez, nem me atentei. Me deixou intrigado na segunda; na terceira, tive a sensação de ser acidental, uma mordida errada que sem querer nos fere a boca. Me convenci de que era a hipótese certa, e estive quase, quase conformado. Foi meio de surpresa, no interlúdio da quarta vez, que apanhei no ar o preto selvagem nos olhos de Yoongi metamorfoseado numa noite serena. Dizer que foi assustador não faria jus, mesmo porque não era medo o que me angustiava no reconhecimento daquela doçura, mas a sensação certamente me desnorteou. Ele disse sem outros complementos, então: Juni. Só Juni, dessa vez. E durante os segundos que olhou para Jungkook, não pareceu esperar resposta; me perguntei se estava consciente de que o dissera, pois senti, pela ternura distante da sua voz, que havíamos o perdido por alguns instantes.
Seu retorno ao estado anterior aconteceu cheio de pequenas rachaduras que eu não teria percebido se, atrás do palco do Festival de Verão, escolhesse não ouvir o resto da sua conversa com Jungkook, mas já naquele dia — é o que acredito — estavam lançadas os primeiros germes da minha obsessão. Acontece que as manchas de dor nos seus olhos selvagens não me escapariam nem se, como os outros, eu estivesse gargalhando da piada de Hoseok. Yoongi era magnético demais para não ser percebido; o apelido, único demais para ser casual. Tentei sem sucesso descobrir se as fissuras vinham de um lugar de arrependimento; tudo que achei foi uma espécie de culpa, se poderia arriscar.
Culpa por ter se permitido absorver no vórtice ainda que por menos de um minuto.
As distrações vieram fácil depois, e o apelido não surgiu mais. Me repreendi por não tirar aquilo da cabeça mesmo quando já estava tarde para ficarmos ali, mas os pensamentos se atenuaram um pouco quando iniciamos os preparativos para ir embora. Foi Yoongi quem nos informou que já se passava das dez. Ele era o mais responsável do EVIL, talvez por trabalhar todos os dias da semana e estar sempre bastante consciente da passagem do tempo. Hoseok insistiu muito que ficássemos, fez uma propaganda persuasiva do conforto das camas de hóspedes, falou sobre como poderíamos assistir alguma coisa na televisão "desnecessariamente imensa", como Namjoon quis pontuar. No fim, era quase como se ele estivesse nos convencendo a não deixá-lo sozinho, mais do que qualquer outra coisa.
Yoongi e Namjoon sentiram um temporal de verão à espreita, então resolveram partir logo para não sofrerem com a moto na rodovia. Taehyung, descarado como era, já tinha se convidado para pegar carona com Jungkook e, claro, me somara à conta. Como não tínhamos a mesma pressa dos outros para ir embora, Hoseok nos levou até a sala para jogarmos conversa fora antes que ele fosse obrigado a enfrentar mais uma semana de muito tédio.
Ficamos por um tempo, mas pelos trovões violentos, Jungkook sugeriu que fôssemos antes do mundo começar a cair. Ele estava lindo com a camiseta branca plana e uma calça jeans rasgada, óculos na ponta do nariz e cabelo amarrado num rabo de cavalo baixo. Não tínhamos tido muitas oportunidades de conversar com todo o caos do grupo. Eu estava começando a sentir falta de estarmos só nós dois, engajados em alguma discussão tosca sobre qualquer coisa, nesses momentos em que ele brilhava forte e parecia um pouco mais real, menos quimérico.
Aconteceu de novo assim que Taehyung e Hoseok subiram as escadas com o pretexto de buscar as roupas de Taehyung — todos nós sabíamos que Hoseok não tinha a menor necessidade de acompanhá-lo e que eles queriam desesperadamente ficar sozinhos. Não provocamos, deixamos que subissem aos risos sem olhar para trás.
Jungkook estava parcialmente deitado do outro lado do sofá. Suas pernas longas pediam para fora, ele digitava algo no celular tão distraidamente que não pareceu ciente de que estávamos a sós de novo. Se deu conta só depois de um longo bocejo enquanto se ajustava para sentar melhor, com seus cabelos agora bagunçados e óculos ligeiramente tortos pela posição anterior. Fofo.
— Dia longo? — perguntei com humor, apesar do nervosismo típico.
Com os olhos fechados, ele soprou uma risadinha, encostou o rosto no estofado e murmurou com certo cansaço:
— Bastante. E amanhã trabalho.
— Com as crianças do ECES?
— Não só. Tenho que trabalhar em algumas músicas do EVIL depois disso.
— Você não tem folga essa semana, hyung? — A pergunta saiu muito mais... doméstica do que eu pretendia. Talvez fossem seus cabelinhos bagunçados, ou a voz de sono com que ele falava, quem sabe até aquela camiseta um tanto amarrotada e seu rosto rosado espremido no sofá.
Por mais incabível que possa soar, eu estava morno de saudade dele, de estar sozinho com ele. Não era bom; não era nada bom que Jungkook se parecesse tanto com lar.
— Terça e quinta. Mas, você sabe, professor trabalha todos os dias, mesmo em casa — explicou em meio a outro bocejo.
Assisti às suas bochechas queimadas de sol deslizarem no estofado mais um pouco, e as mechas vermelhas escorregaram para frente graciosamente no processo.
— Eu preciso mesmo dormir mais — declarou de repente.
Uma urgência maligna rastejou do meu peito até as mãos, e agradeci a Deus por estarmos distantes demais para que eu penetrasse os dedos nos fios sedosos e desmanchasse com afeto seu amarro. Algo se retorceu ao pé da minha barriga. Jungkook ficava ainda mais intolerável assim, tão macio e vulnerável e bem ao meu alcance com sua pele sensível e cheirosa e queimada. Deus do céu.
Soltei um ar quebrado e bati os dentes, torcendo para que Taehyung e Hoseok descessem logo, ou que um raio amputasse aquele sofá com o retumbar feroz de um trovão. Estava acontecendo de novo; a névoa peçonhenta ameaçando me alcançar, entrar pela minha boca e esmagar de vez toda minha prudência.
Devo ter colocado força demais naquela prece, pois fomos surpreendidos pela vibração incessante do interfone ao lado da porta principal. Eu e Jungkook nos olhamos por um tempo, sem saber se era adequado atender, mas Hoseok e Taehyung apareceram pouco depois no topo da escada.
— JK, atende pra mim? — Hoseok perguntou, longe demais para chegar a tempo.
Levantando agilmente do sofá num só pulo, Jungkook caminhou até o interfone estridente. Havia uma tela fixada acima de um painel de números que só então notei; de lá, era possível ver quem estava ligando do lado de fora. A distância dificultou que eu distinguisse a pessoa na tela, mas parecia ser alguma espécie de entregador. Havia uma caixa branca nas mãos de quem quer que fosse.
— Estranho. — Ouvi Hoseok dizer, já nos últimos degraus da escada. — Não lembro de ter pedido nada. E nesse horário? Logo vai chover.
Antes que a discussão se estendesse, Jungkook atendeu o interfone e murmurou um "alô?" quase imperceptível perto do alto-falante.
Uma voz feminina soou doce do outro lado. A caixa branca deu abertura na câmera para que eu visse uma senhora de cabelos grisalhos na tela.
— Hoseokie? É a senhora Kang. Precisava vir antes do temporal. Amanhã vou viajar e só volto Deus sabe quando. — Ela sorriu fraco, timbre um tanto abafado pelo microfone, mas ainda gentil.
Meu coração parou. Gentil. De modo premonitório. Como se o preparasse para algo.
Nunca vi Jungkook se mover com tanta pressa. Nunca vi seus olhos tão abertos. Nunca vi nada parecido no seu rosto quando ele olhou para Hoseok com um pânico engasgado, mas sem conseguir impedir o que a senhora Kang disse em seguida:
— Vim trazer as coisas do memorial deste ano. As flores são lindas, sua mãe quem me escolheu, já que, bom... — Então, um silêncio contido, como se um verme terrível quisesse arrebentar o vaso delicado que segurava as coisas no lugar. — Eram as preferidas do Seokjin.
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[NOTAS]: Bom...................................................... KKKKKKKKKKKKKKKKKKK
Sem comentários sobre o último acontecido. Fora essa bomba no final do capítulo, vocês gostaram?
Eu quase não revisei esse capítulo, então não sei o que esperar. Percebi que preciso desapegar um pouco da revisão doentia se eu quiser continuar escrevendo com algum prazer. De qualquer forma, espero que esteja à altura.
Eu particularmente amei esse capítulo, apesar de tudo. Espero que vocês tenham conseguido captar a mensagem (ou as mensagens) que quis transmitir ao longo do desenvolvimento. Percebam que o Jimin deixou de dizer que é quebrado para dizer que está quebrado. Espero também que vocês não queiram matar meu menino pelo diálogo lá nas escadas. Ele tem mil e um motivos para dizer o que disse e, sobretudo, pra ter pavor de tornar qualquer coisa real. É uma das poucas coisas no Jimin que também são minhas. A frase "ter medo de dar errado e mais ainda de dar certo" é algo que ouço muito na terapia. Então sejam gentis, por favor KKKKKKK
Esse capítulo traz algo que venho me esforçando pra fazer mas que não sei se consigo com destreza, que é conseguir mostrar contradições num personagem. Não contradições que vêm de furo de enredo (embora deva ter, vai saber, eu escrevo isso há tanto tempo kkk), mas contradições humanas mesmo. Nós somos assim, não somos? Uma hora achamos que somos as pessoas mais felizes do mundo, na outra achamos que somos as mais tristes; uma hora temos muito carinho por alguém, na outra não suportamos ficar perto (e nem precisa de um motivo muito consciente, às vezes é multifatorial). Enfim, não sei se fiz bem, não sei se tô tendo algum sucesso em mostrar que o Jimin é um garoto de 18 anos que não conhece a si mesmo e por isso vive 8374873834 emoções num dia. Ele é inconsistente mesmo e essa é a premissa. Isso vai ser trabalhado a passinhos de formiga, mas já ta acontecendo!
Fiquem à vontade pra me quebrar no murro também KKKK
Enfim, acho que falei demais. 804k de vizu!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! Como sempre, estou pasma. Não posso deixar de agradecer a dedicação, a compreensão, o carinho que vocês têm comigo e com a fic. Tenho boas expectativas pra esse ano, espero estar menos morta por dentro pra seguir com as coisas que eu amo. Avante, palhaço triste!
Desejo um ótimo ano pra vocês! Obrigada por tudo, qualquer coisa vocês sabem onde me achar (no @ soliloquiopierrot ou no @ orumaitou lá no insta! tmjjjjjjj
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