07. Céu Azul.
[NOTAS]: E não é que teve mais de uma atualização por ano? Quem é vivo sempre aparece e apesar de morta por dentro e sofrendo tendinite crônica, meus dedos ainda funcionam :D
Converso mais com vocês nas notas finais, mas só pra avisar: tô com conta de escrita no insta. Faço live escrevendo, conteúdo das fics, solto spoiler, dou recados e tal. Sigam lá! @ soliloquiopierrot
Ah, e vou estar na BIENAL do RJ todos os dias mês que vem! :)
Boa leitura!
#MorangoCanhoto
***
"Esqueci de mim em um verão distante, tão remoto que não posso tocar. Me deixei ir num mar de pérolas do qual nunca fui me buscar."
Samanda, 2020.
Sábado, 09h34.
As panquecas da mamãe tinham gosto de lar.
As manhãs das suas folgas eram, embora raras, muito tranquilas. Eu gostava de me esquecer das rotinas, poder acordar surpreso com o cheiro forte de café, ouvi-la falar ao telefone com minha tia e pensar com um alívio particular àquela constatação: "Mamãe está de folga hoje".
Levantava com mais ânimo quando sabia que panquecas cheirosas e café fresco me esperavam à mesa. Acordar com a certeza de que mamãe estava em casa era, também, acordar com a certeza de que eu não pularia refeições, de que sairia da cama no horário apropriado e teria a quem recorrer durante o dia, ainda que "recorrer" não parecesse a palavra certa para descrever o conforto de ter alguém em casa sem necessariamente precisar de alguém ali. Ou talvez precisasse. Mas não falávamos sobre isso entre os Park. Não abertamente.
Mamãe, no entanto, sempre pareceu saber de coisas que não sabíamos.
Park Nabi não era excessivamente doce e calorosa, sua carreira ainda estava intacta e podíamos contar nos dedos as vezes em que disse as três palavrinhas mágicas. Que era dedicada a quem e àquilo que amava, ninguém poderia duvidar, mas minha mãe nunca foi o protótipo inexequível da maternidade perfeita.
Havia uma distância entre ela e o mundo lá fora, como se não estivesse nem cá, nem lá, mas numa categoria inapreensível e bastante curiosa. Me perguntava se era assim com todas as mães — provavelmente não. Nem tudo, nem todos, ela costumava dizer. Cresci usando desse aval para, às vezes, ser exceção — não fosse para bem, para mal. Mas essa parte, é claro, mamãe nunca me ensinou.
Gostava de pensar que ela estava nos preparando ao seu modo, um tanto distante e desengonçado, mas nos preparando, ainda assim. Para o quê, eu não sabia — para o trabalho, para a faculdade, para um ônibus atrasado ou um coração partido. Nem tudo, nem todos, mas de algum modo sempre algo, sempre alguém. Deveríamos nos resignar a um certo relativismo com a mesma calmaria com que esperar sempre algo, sempre alguém, como as coisas eram antes de nascermos, e como seriam até após desaparecermos.
Mamãe comunicava muitas coisas sem quase nunca articulá-las; suas panquecas quentinhas eram seu jeito de dizer que se preocupava. Ela nunca transformaria isso em palavras, parecia temer alguma coisa se as dissesse — ou talvez só não soubesse como, mas isso não era possível, pois mamãe sabia de tudo —, como se o que sentia em nada correspondesse àquilo que podia dizer. Mas estava tudo bem; ela era muito boa com panquecas e isso era suficiente.
Não era?
— Estão cheirosas — repeti o mesmo elogio que ela já havia escutado milhares de vezes antes só pelo prazer de vê-la sorrir e concordar.
Sentei à mesa com a lentidão típica da manhã.
— Caprichei dessa vez — mamãe respondeu o que sempre respondia, e eu sorri. Era nossa manhã de sempre. Eu estava seguro ali.
Em silêncio, puxei algumas panquecas prontas. Na primeira mordida, reiterei para ninguém além de mim: as panquecas da mamãe têm gosto de lar. E nessa brandura da repetição, numa revelação rara da dádiva do rotineiro, me vi infinitamente feliz. Uma panqueca pela metade na boca, de novo criança com os pés inquietos sob a mesa de pedra, longa e fria, que mamãe amava e que era como ela: longa e fria. Bonita, apesar disso. Muito bonita.
A mesa de pedra clara era a âncora da grande sozinha, o ponto de convergência onde o caos repousava e por um momento se dissolvia, humilde e benevolente, como se dissesse "é assim que deve ser, já que ela está aqui". Eu sentia algo semelhante em relação à mamãe, por vezes via nela a mesma imponência silenciosa da mesa, o nervo fundamental de um todo orgânico apenas preservado porque ela estava ali. E se ela estava ali, então assim deveria ser.
— Onde está a Chae? — Já pegava a segunda panqueca quando perguntei. Mamãe havia se sentado logo à frente e despejava um pouco de café na xícara de porcelana pintada com pequenos ramos de cerejeira.
— Na casa da "amiga". — As aspas que ela fez com o dedo não me passaram despercebidas. — Ela deve achar que não sei.
— Ela acha que não sei também.
— Como ela espera esconder se acorda antes das 10h em um sábado para fazer um "trabalho escolar na casa da Dina"? — Mamãe suspirou e num movimento curto de negação, balançou a cabeça. — Gosto da namoradinha dela, é uma boa garota. Não sei por que ela ainda não me contou.
Sexualidade nunca foi uma pauta entre os Park, de modo que nunca me "assumi" bissexual e Chaeyoung nunca se "assumiu" lésbica. Nós amávamos quem amávamos e meus pais nunca tiveram quaisquer objeções quanto a isso; lhes era tão natural quanto ter cabelo preto. Essa base, é claro, não implicava ingenuidade quanto à hostilidade afora; fomos preparados para isso durante todo o processo de socialização, sem que papai ou mamãe precisassem nos esclarecer exaustivamente os porquês. Crianças diferentes sempre sabem que são diferentes; suas corporalidades e os espaços que ocupam — ou deixam de ocupar — fazem questão de gritar isso.
Bastava ler o jornal ou ligar a TV para que eu tivesse a consciência quase aguda do meu privilégio. Eu sabia bem que ocupava uma área muito restrita da comunidade à qual pertencia. Era uma benção, como muitos diziam, e com um tesouro desse tipo não se pode brincar, mas juntar as mãos e aquiescer, pois graças a Deus — quem mais poderia ser além de Deus? — meus pais não me odiavam.
— O Tae vai vir aqui mais tarde. — Arranquei-me da espiral de pensamentos antes que eles azedassem em ressentimento. Não havia o que ressentir. Ora, meus pais não me odeiam.
Bebericando elegantemente seu café, mamãe apenas meneou a cabeça numa concordância silenciosa.
Conversamos pouco durante a refeição, bastante confortáveis sob o sol de sábado que perpassava suavemente as cortinas brancas da cozinha. Mamãe parecia respirar pela primeira vez em muito tempo, os ombros cansados apontavam para cima com um esforço que não lhe era típico, e que eu só era capaz de notar pelos anos de convivência e observação. A quimioterapia do meu tio — agora eu percebia com muita clareza — também a drenara. O caso estava ganho, os exames eram muito otimistas, mas toda a trajetória havia sido particularmente exaustiva para alguém tão profícua quanto minha mãe. Ela estava sempre dirigindo para lá e para cá, resolvendo isso e aquilo, lendo artigos científicos e livros de medicina, tentando tranquilizar minha tia enquanto mantinha toda a família nos eixos através do furacão.
Papai nos chamava atenção para pequenos detalhes que poderiam ser úteis na prevenção de um possível burnout (deixem a louça lavada, não façam barulho depois das 21h, limpem o banheiro após o banho), mas ele mesmo não transparecia qualquer confiança na efetividade das nossas tentativas. No fim do dia (com a louça lavada, o silêncio, o banheiro limpo) mamãe continuava inalcançável, plácida e, ainda assim, frenética, tão rápida que não podíamos acompanhar. Seu sorriso morno e o "boa noite" singelo faziam nossos esforços bobos para não sobrecarregá-la parecerem ainda mais estúpidos. Às vezes, eu era acometido por uma vontade violenta de implorar que ela me contasse alguma coisa, qualquer coisa, sobre ela: se estava mesmo bem, como era possível permanecer tranquila com tantas responsabilidades, o que temia e o que eu poderia fazer para tornar as coisas mais fáceis.
Se ela gritasse, eu me dizia, se chorasse ou reclamasse, seria menos assustador. Mas eu logo me punia pelo pensamento, porque mamãe sabia de coisas que não sabíamos — sobre o mundo, e se sobre o mundo, também sobre a vida —, e pôr seu juízo, sua resiliência à prova, era admitir que o furacão não estava tão sob controle quanto pensávamos. E ninguém — nem papai, nem eu, nem Chae ou mamãe — nunca quis, na história, admitir de tão boa-vontade que não se pode controlar os jeitos do mundo¹, pois isso significaria dizer que só tínhamos a nós mesmos e seríamos obrigados a nos descobrir.
Ficar em silêncio, sem dúvida, era muito mais fácil que isso.
— E o namoro?
A xícara pousou com uma graciosidade sobrenatural na mesa. Mamãe subiu os olhos até mim, quase inexpressiva, não fossem as sobrancelhas ligeiramente arqueadas. A quarta panqueca desceu com dificuldade quando me dei conta do que estava prestes a acontecer.
— Bem.
— Bem?
— Na mesma, mãe.
— E isso é "bem"?
Ela nunca ia muito longe com isso, mesmo quando eu gostaria que fosse, mesmo quando meus olhos imploravam para que intercedesse. Detestava quando ela me olhava assim, como uma papelada com a assinatura errada, uma hipótese frutífera com a tese fraca. Os olhos escuros, tão semelhantes aos meus, ficavam opacos por alguns instantes como se ela já não pudesse reconhecer o filho que tinha. Mamãe e a mesa de pedra eram, então, uma só; sob os meus cotovelos, rastejava petrificante o gelo do mármore até me ranger um por um os ossos.
O sábado esfriara. Lá fora, já não se podia falar em sol. A criança com os pés inquietos subitamente parou, pois não estava mais segura, as panquecas não tinham mais gosto de lar, e agora, diante dos olhos opacos e do frio da mesa, estava sendo coagida a crescer.
— Ele está chateado com algumas coisas, não quero forçar nada, só isso... — Era surpreendente que eu sequer tivesse forças para justificar, mas já estava desmontado nos pequenos pedaços congelados em que me tornei, e não poderia oferecer qualquer resistência.
— Bom... — Limpando farelos invisíveis da blusa marrom, mamãe se endireitou. Seu tronco impecavelmente ereto era tão rígido quanto as entrelinhas de aço naquela voz baixa e estável. — Você já sabe o que penso sobre isso.
— Que você não gosta dele. Sim, eu sei, mas...
— Você é crescido, Jimin. Sabe onde está pisando. — De pé, com a xícara em mãos e olhos já dispersos para outros lugares da cozinha, ela suspirou e virou as costas para mim. De novo. — Não vou me meter.
Não tive escolha. Afinal, que caminho havia além daquele? Estava de novo na sala de espelhos, o multiverso dos eu que deram certo, me perguntando se estava mesmo dando vida à pior versão. Mas eu sabia. Sem que os reflexos dissessem, eu sabia, pois não havia como ser diferente quando todos eles cintilavam de um potencial transbordado, olhos brilhantes de gratidão por não serem eu.
Mamãe tinha razão em não tentar. De que valia? Havia tanto que fazer, tanto com que se preocupar. Eu não podia competir com suas responsabilidades, não estava em pé de igualdade com o câncer do meu tio, com sua carreira e uma casa inteira para sustentar. Frente aos seus, todos meus problemas eram tolos e adiáveis; eu não passava de um garoto entediado que inventava razões para chorar.
Sempre soube exatamente o que ela pensava quando me olhava daquela forma, conhecia sua opinião sobre mim e meu relacionamento. Essa era, talvez, a pior parte. Ela não poupava ninguém além de si mesma com aquele silêncio. Ora, tinha feito um bom trabalho com a minha criação; naturalmente, não havia por que se estender, pelo que gritar. Sua parte estava feita, o ciclo da infância estava trancado. Meus erros, agora, eram só meus.
— Obrigado pelas panquecas, mãe.
Sem mais nenhuma palavra, levantei com uma pressa sufocada, que de tamanha repulsa estrangulei à semiconsciência. Em seguida, com tanta graça quanto possível — por hábito ou indolência —, limpei minha parte da mesa e saí da cozinha leve como uma pluma.
Papai mexia nas tulipas quando, vendo-o pela janela da sala, acenei, embora sem o entusiasmo sintomático dos sábados. Um risco muito grande me sondava; a leveza era a ficção da pressa, da raiva, do rancor, e tão magra, tão fugaz que ao menor distúrbio se rompia. Que papai me perdoasse; não suportaria um segundo mais traindo-o daquela forma, sorrindo o sorriso cênico da leveza forjada. Corri para o quarto à sombra do meu deslize, pois não tinha sido com meus impulsos tão firme quanto era necessário. Havia deixado que viessem à tona, que vazassem da semiconsciência ao painel de controle, e a leveza performada tão logo me cobriu, na mesma rapidez — não por outra razão senão minha falta de rigor — esfaleceu.
A culpa não era dele ou de minha mãe. Se houvesse quem culpar, talvez a carga fosse minha. Como ousava me sentir assim? O sol da manhã rabiscava formas douradas no piso, o doce aroma das panquecas de mamãe ainda atravessava cada pedacinho da casa e meu pai sorria para tulipas no quintal. Como ousava me sentir assim? O mundo estava bem ali, morno nas minhas mãos, e eu não tinha a menor ideia do que fazer com ele.
Não tinha a menor ideia do que fazer de mim.
***
— Por que é que você só gosta de sabor esquisito, Taehyung?
— Essa é a sua forma de me agradecer por te pagar um sorvete, seu ingrato? — Os fios de prata foram teatralmente atirados para trás com a mão que não segurava a casquinha. — O que a bailarina te fez?
Desde que o conhecera — há mais tempo do que se podia registrar —, Taehyung sempre escolhia os mesmos sabores de sorvete: farol, brilha-brilha e bailarina. O repertório permanecia idêntico havia tantos anos que eu não possuía uma única memória em que tivesse sido diferente. Como ele não perdia a chance de atacar o "torta de limão chupa-cara pavoroso" — não cabe discorrer sobre a origem do apelido — pelo qual eu frequentemente optava, qualquer oportunidade de provocá-lo a respeito da "santa trindade" era muito bem-vinda.
— Você precisa ser sincero comigo se alguma seita samandense te hipnotizou para consumir só sorvetes regionais. É assim que você tem dinheiro pra sair toda vez? Eles te patrocinam? — A dúvida era quase genuína. Não seria surpreendente se Taehyung estivesse sendo pago por coisas do tipo, seu Instagram com trinta mil seguidores era uma terra fértil às marcas emergentes.
— Tá maluco? Se me pagassem por isso eu já estava andando de Porsche invés de bicicleta — ele retrucou com a boca cheia de sorvete e continuou com sua indignação após uma pausa curta para engolir: — Como assim dinheiro pra sair toda vez, soulsoul? Esqueceu que faz sessenta anos, quatro dias e cinco horas que não te vejo?
— Você me viu anteontem, Tae.
— Mesma coisa!
Eu ri como ria apenas com ele.
Samanda só era a cidade encantada dos jornais porque havia Taehyung. Ninguém poderia me convencer de que ele não era o âmago dos sábados ensolarados, o pulmão límpido das praias, ou toda e qualquer outra coisa que desse à nossa terra as virtudes de um paraíso. Ele vibrava como só vibra o horizonte azul do verão quando se espia a paisagem pela janela de casa, ou um riso aliviado em meio ao silêncio soturno.
Aquele era mais um dos dias em que Taehyung me puxara da beira do precipício com propostas sorridentes de uma tarde tranquila. Eu cultivava certa teoria de que ele já havia se diluído à cidade de tal modo que podia sentir o que ela sentia — porque Samanda era para mim como uma entidade — e por isso intuía tão precisamente os momentos em que eu precisaria dele. Dentro de uma hora após o café-da-manhã mórbido com mamãe e duas horas antes do combinado, Taehyung já estava na porta de casa resmungando sobre o horário marcado, pois, segundo ele, teria que "esperar demais" e, nesse caso, tomara a "liberdade de aparecer subitamente como uma fada" para encantar meu dia. Que esse crédito lhe era devido eu não fazia questão de negar; o Jimin que havia se apressado a pintar os lábios com um lip tint de pêssego para tomar sorvete com certeza estava muito mais feliz do que aquele preso no próprio quarto.
Deixei papai avisado de que voltaria mais tarde e ele apenas pediu que me cuidasse antes de estender algumas notas de dinheiro para o almoço. Um homem muito doce e sereno, meu pai; melhor com palavras do que mamãe, mas como ela, belo, distante e fugaz. Sentia que ele me escapava, às vezes, como uma nuvem que esmaece antes que possamos dar-lhe alguma forma. Ainda assim, eu sabia que ele estava lá desde — para? — sempre. Ao menos era o que dizia o plano divino da família.
Como meus pais tinham Taehyung como filho, não havia nada mais fácil que escorregar pela saída de casa sem dizer aonde iria e quando voltaria, desde que estivesse com Taehyung. Sendo franco, mamãe e papai não sentiam nada senão alívio pela nossa amizade; suspiravam despreocupados quando tinham a certeza de que eu não passaria um fim de semana inteiro isolado. Não os interessava que tipo de futilidade eu faria para além da redoma de cristal da nossa casa; na verdade, era bastante preferível que experimentasse de alguma dose de imprudência. Talvez assim me transmutasse no que se espera, ou no que eles possivelmente esperavam, de um jovem adulto normal.
— Minha mãe deve ter dado graças a Deus que você apareceu. — Eu já podia vislumbrar o banco de madeira abaixo da jacarandá imensa que enfeitava a praça.
— Vocês brigaram? — Taehyung, que tomava o sorvete pacientemente ao meu lado, não precisou de muito para deduzir.
Sentamos sem pressa no banco salpicado de pétalas lilases, empurrando algumas aqui e ali para não as esmagarmos.
— Ah, você sabe, minha mãe nunca "briga" comigo. Ela diz alguma verdade difícil de engolir com uma voz passivo-agressiva e sai. É o modus operandi dela — expliquei o que ele já sabia por conhecer Park Nabi como conhecia a própria mãe ou alguma tia muito próxima.
— O que foi dessa vez? — Taehyung se encostou ao banco e piscou os olhos bonitos, dividido entre meu rosto e as gotas rosas de bailarina que derretiam pela casquinha do sorvete.
— Kyuhyun.
— Vish. Clássico da tia Nabi.
— Ela não fala sobre. Só pergunta, faz uma cara estranha e diz que eu "sei onde estou pisando". É a mesma coisa toda vez. Não entendo onde ela quer chegar ou se quer chegar a algum lugar. — Suspirei, subitamente cansado de ter que revisitar aquele assunto. Taehyung era o único por quem eu faria o esforço. — Fico exausto só de pensar sobre. Queria apagar essas partes da minha rotina, parece que seria muito melhor se ela não perguntasse nada ou se dissesse o que quer dizer de uma vez.
Taehyung cutucou minha bochecha com a ponta da casquinha, e eu quase esqueci todo aquele assunto quando ele sorriu com a boca suja.
— Não faz essa cara, soulsoul. Não tem como você desvendar a mente da sua mãe ou magicamente mudar o jeito dela. Acho que o lance agora é aprender a lidar com esse sentimento da sua parte. Sobre os dela você não tem controle nenhum. — Ele tinha razão, eu sabia que sim. Só...
— É difícil, Tae...
— Eu não consigo nem imaginar o quanto — ele concordou e pousou os dedos longos nas costas da minha mão. Seus olhos escuros me abraçavam como se fizessem parte de mim. — Por isso acho que você deveria ter uma conversa com eles sobre voltar para terapia. É um processo, sabe? Mas você precisa ao menos começar.
Taehyung sabia que ouvir era o limite do quanto podia me ajudar, e nunca precisou me dizer — pois o fato de estar ali já me contava — que embora a jornada fosse minha, ele não iria a nenhum lugar. Fixei um pequeno alfinete nesse pensamento; não queria me esquecer da sensação quando o coração esfriasse.
— Aliás, o senhor tá me devendo fofocas! — Seus dedos se afastaram, o rosto acendendo à medida que se empertigava no banco da praça. — E a festa do EVIL? Que merda foi aquela com o Yoongi e o Kyuhyun que você comentou?
A mudança repentina de assunto não me pegou desprevenido, talvez tivesse demorado até demais para vir à tona. Não era como se eu fosse insistir no assunto da minha mãe, e não era como se Taehyung não me conhecesse o suficiente para saber que eu não diria muito mais do que já havia dito. Era apenas natural que puxássemos o fio da peça inacabada, pois tudo que Taehyung sabia sobre o espetáculo medonho da terça-feira eram as curtas ligações que havíamos feito ao longo da semana e o encontro breve na frente de casa na quinta-feira, tarde demais para que pudéssemos nos dar o luxo de uma "prestação de depoimento completa" — a preferida dentre as inúmeras alcunhas para fofoca que Taehyung amava usar.
Terminado meu sorvete, minhas mãos desocupadas se agitaram em gesticulações nervosas.
— Eu te contei sobre o Jungkook? Bem, eu já meio que sabia que eles se conheciam e que não se gostavam quando trocamos mensagens na terça. Só... nossa, não esperava a proporção que as coisas tomaram. Pensei que fosse uma antipatia comum, mas parece muito sério. Mesmo. Você devia ter visto a cara do Yoongi... — A mera lembrança me arrepiava. Eu morreria para não ter que viver aquele terror uma nova vez. — E o Kyu, Taehyung... Ele tava muito estranho. Muito, muito estranho. A mão dele suava na minha, foi assustador.
— Você falou com ele desde então? — A bailarina foi esquecida; agora, Taehyung sequer piscava quando falava.
— Ele ignorou minhas mensagens na quarta e na quinta. Eu disse que estava preocupado e pedi pra ele me ligar quando se sentisse melhor. Só consegui falar com ele ontem à noite. — Foi difícil contar, pois eu lidava muito mal com o silêncio e sofria com a ansiedade que o sumiço de Kyuhyun me causava. Quase nunca conseguia dormir, sempre de plantão à tua vontade, esperando algum sinal e delirando com as piores hipóteses. Parecia como o inferno em sua visita periódica à minha casa. — Me disse que tava com febre, perguntou se eu podia ir na casa dele amanhã.
Taehyung franziu o cenho.
— Ele não disse nada sobre terça? Sobre as suas mensagens?
Balancei a cabeça.
— Nada.
— Você acha que ele pode estar mentindo sobre a febre ou...? Ah, sei lá. Seu namorado é estranho. Deve ter algo muito fodido por trás dessa merda pra ele estar com o rabo preso dessa forma — Taehyung deduziu enquanto dedilhava a própria mandíbula e voltava a solver os últimos resquícios do seu sorvete.
— Ele não costuma mentir sobre isso. E a voz dele realmente parecia a de alguém doente — garanti. Kyuhyun preferia sofrer sozinho do que admitir que estava doente, a não ser que fosse grave. — Não sei, Tae... Tudo isso é tão estranho. Não consigo pensar onde eles podem ter se conhecido ou o que aconteceu. Ah, eu não te falei, né? Depois que a poeira baixou, o Hoseok começou a chorar.
Taehyung balbuciou como se engasgasse no ar:
— O Hoseok?!
Eu assenti.
— Quer dizer, ele estava bêbado e bastante chapado, mas não acho que tenha sido por isso. O Yoongi estava com bastante raiva, mas durante toda a discussão o Hoseok parecia o mais afetado. Ele não parava de pedir pro Yoongi parar.
Silêncio.
Taehyung ancorou os olhos negros à frente, perdidos em lugar-nenhum. As fagulhas de sol que escapavam aos galhos da jacarandá encontravam refúgio na sua pele acobreada, e ainda assim, ele parecia curiosamente frio.
Hoseok.
O nome pipocou num estalo de intuição. E simples assim, eu entendi.
— Tae. — Decidi chamar e logo percebi o atraso da sua reação. Ele ainda não estava completamente ali. — Você sente algo pelo Hoseok?
A pergunta dava abertura para respostas interminavelmente abertas. Taehyung poderia se esquivar, se quisesse.
— Sinto. — Mas não o fez, talvez pela necessidade de arrancar aquele peso da própria pele; talvez por reflexo; talvez por algum motivo que nenhum de nós pudesse entender. — Eu não sei dizer o que é. Mas sinto. Vivo tentando me convencer de que aqueles flertes baratos não me atingem, mas você sabe como sou fraco por homem tonto...
— Eu sei. — Soltei um riso breve e discreto. — Ele chegou a demonstrar alguma coisa esses dias? Vocês se falam bastante, né?
Inquieto no banco, Taehyung se remexeu por alguns segundos antes de voltar a falar.
— Então, aí é que tá: ele deu uma sumida esses dias. Mas nós nos falamos bastante por mensagem, sim. Ele fica um pouco ocioso em dia útil, porque, pelo que eu sei, todos os caras do EVIL trabalham durante a semana, menos ele. Daí já sabe, vivia me mandando mensagem, puxando assunto, essas coisas. Eu já tinha me acostumado. — Seus olhos ainda passeavam à frente, o dedo médio da mão livre esfregava um tanto inconscientemente uma pétala no banco. — Depois de terça ele sumiu por um tempo. Mandou uma mensagem ou outra, mas sabe quando você sente que a pessoa não tá muito legal? Eu só... soube que ele não tava normal. Mas não forcei a barra, sabe? Não sei se temos esse tipo de intimidade.
Eu concordei em silêncio. Taehyung não costumava falar sobre os caras por quem se interessava, talvez porque a alta rotatividade não permitisse figuras marcantes. Quando acontecia de surgir alguém tão instigante quanto ele próprio, demorava algum tempo para vir à tona. Taehyung gostava de ter certeza dos próprios sentimentos antes de tornar as coisas mais... dizíveis.
Eu me perguntava se Hoseok estava perto de se tornar alguém para ele. Taehyung não me contava com tanto zelo e tantos detalhes de fodas casuais. O lance com Hoseok parecia... mais.
— Bom, não sei... — A bailarina havia acabado. Taehyung suspirou e lambeu as pontas dos dedos enquanto pensava. — Ele não disse nada que pudesse sugerir o que aconteceu. Pra alguém tão tagarela, ele fala muito pouco sobre si mesmo.
— Parece que todos eles são assim. Jungkook tem muito disso... Ele quase nunca comenta sobre a própria vida. O pouco que sei parece tão... filtrado. Como se ele estivesse com medo de falar demais, de expor demais, de... não sei, se machucar? Sei lá, isso é tão estranho. — Encostado ao banco com a cabeça atirada para trás, acompanhei o longo suspiro de Taehyung com o meu próprio, longo e arrastado como se quisesse que as dúvidas se fossem com ele.
— Vocês estão se falando? — ele perguntou com cuidado. Tombei o rosto apenas o bastante para vê-lo. — Você e o Jungkook.
— Ah... — Então veio: o sabor de ansiedade na língua, a excitação inocente de uma boa lembrança. Meus ombros desceram sem que eu percebesse que os erguia, tensão desmanchada subitamente como areia numa onda salgada. — Nós estamos conversando por mensagem. Ele responde pouco, é bem ocupado. Mas me mandou umas fotos da gatinha dele e tal...
— Porra. — De ímpeto, Taehyung se ajeitou no banco enquanto espantava a pétala de jacarandá e me olhava com ultraje. — Que viadagem.
Minhas bochechas se contraíram na hora e um riso esganiçado chiou.
— Para!
— É sério! Eu aqui temperando o Hoseok sem certeza do banquete e com medo de intoxicação e você aí se saboreando com uma ceia. — Sua genialidade analógica explodiu sem presságio. — Sério! Foto de gato é o código universal pra "vamos beijar de língua?".
— Não viaja! É código só pra quem não tá comprometido. — Tentei me esquivar.
— E você acha que o Jungkook respeita o Kyuhyun o suficiente pra isso?
— Ele me respeita.
— Justamente! Quer transmitir o respeito pelos lábios. É tanto respeito que ele tem que compartilhar pela língua. — Ele mal terminou de falar e eu já acertava seus braços duros com palmadas frouxas. — Tá, tá, mas sério! Ele também não comentou nada sobre o que pode ter acontecido entre o EVIL e o Kyuhyun? Não é possível que até foto do gato o homem manda e nada de escorregar uma fofoquinha.
— Nadinha — reiterei. — Ele sempre deixa muito claro que não vai falar de coisas que não envolvem só ele. Acho que o lance é mais embaixo. Pelo que captei, tem gente de fora envolvida. O Yoongi deu a entender que o Kyu fez alguma merda muito grande com alguém.
— Espera... — Com brusquidão, Taehyung segurou minha mão entre as suas. — E se foi com o Hoseok? Ele tava chorando, não tava? E você disse que ele tava mais na defensiva que o Yoongi. Pode ser que o lance tenha sido com ele.
Minha nossa.
Taehyung tinha um ótimo ponto.
Tomei alguns instantes para reavaliar as cenas da festa, agora mais distante e menos comovido. A priori, numa memória instantânea e emblemática, havia Yoongi; na ponta mais próxima, Kyuhyun e sua indignação temerosa. Era só pela atenção especial da semente plantada por Taehyung que a névoa sobre a silhueta de Hoseok, tímida sob aquelas lentes talvez muito tendenciosas, se abrandava.
Yoongi estava irado, não era como se quaisquer ângulos prováveis e improváveis pudessem sugerir outra coisa. Eu não ousaria demais em afirmar que suas dores eram similares ou diferentes, embora desolação e ódio me parecessem como nuances muito próximas do mesmo espectro. A manifestação era radicalmente distinta, mas não senti que mirava tão longe ao supor uma origem comum. Ramos distintos de uma mesma árvore ainda estão conectados pelo tronco principal; se ele ruir, todos caem.
O que havia ruído entre o EVIL?
— Quer saber? Você pode não estar alucinando completamente. — Com os olhos estreitos na direção de Taehyung, minha mente ainda perambulava pelas possibilidades recém desabrochadas. — Mas ainda é muito vago, não dá pra ter certeza. Todos eles estavam esquisitos.
Taehyung bufou dramaticamente e despencou seus ombros proeminentes.
— Eu sei! Mas e se...
Plim.
Olhamos ao mesmo tempo para o celular no meu colo. Taehyung não completou seu raciocínio, e não parecia mais tão interessado em fazê-lo com aqueles olhos gigantes presos ao nome na tela como se descobrisse vida em saturno.
Jungkook hyung enviou uma mensagem.
— Puta merda. Se for foto de pinto eu juro que te mato.
O sorvete borbulhou no meu estômago e pareceu subir fervendo para as minhas bochechas. Senti uma certeza inabalável de que morreria ali mesmo.
— Para, para! Não fala isso, Tae! — Explodi em mais uma sessão de tapas, embora já não conseguisse abandonar as projeções que Taehyung havia feito o desfavor de criar. Ele se debatia sobre minhas palmadas desengonçadas como se não tivesse acabado de vocalizar uma maldição. — Por que você é assim? Eu não quero ficar pensando nisso! Que droga!
— Por quê? Ele te mandou mesmo?!
— Claro que não!!! Meu Deus!
— Homem, para de surtar, é só pinto.
— Taehyung! Eu preciso responder e você não tá ajudando!
— Tá, tá, mas agiliza! Não é pra ficar cinco horas de namorico.
Minhas esperanças de que ele parasse com aquele tipo de alfinetada já estavam próximas da morte. Agarrei o celular no tempo que levou para que Taehyung se afastasse um pouco e observasse a praça com a tranquilidade de quem me perguntaria o teor da mensagem com muitos detalhes logo depois.
A mensagem de Jungkook estava ali quando desbloqueei o celular, mas pego num hábito recém adquirido, a gatinha na foto de perfil foi a primeira coisa em que prestei atenção, apesar de irrelevante dizer que já havia decorado cada detalhe da barriguinha de pelos negros e acizentados. Eu não sabia o que era; poderia ser o lençol azul marinho em que ela estava ou parte da coxa de Jungkook aparecendo no canto, mas eu me sentia próximo dele sempre que olhava para aquela foto. Como se não bastasse — era Jungkook, então nunca bastava — o recado no contato era tão sua cara que nunca falhava em me tirar um sorriso (porque é claro que alguém que se atrasava para a própria festa de aniversário e reagia com "agradeço a preferência" a qualquer elogio optaria por um "Só chamadas urgentes. Sério.").
Jungkook era uma pessoa de poucas palavras. Ele não fazia o tipo "jornalista" com bons dias, tardes e noites; eu havia demorado para entender que ele parava de responder se não tinha mais nada a dizer e que sumia pelo resto do dia até ter uma foto engraçada de Makla para compartilhar. Não existia "oi" ou "tudo bem?", mas "você bebeu água?" e "o que você acha de porta-copos?". Era caótico e um pouco difícil de entender ou acompanhar, mas eu me divertia. Ainda estava tentando me habituar às mensagens breves e aos silêncios (Será que disse algo errado? Será que o sufoquei?), embora soubesse que ele tinha uma série de compromissos pela semana e que não era obrigado a me responder. A ansiedade vinha muito mais dos traumas do que de algum comportamento dele. Eu podia perceber — não, eu podia sentir que seu silêncio não era ruim. No fim, ele sempre aparecia novamente com alguma foto de Makla e perguntas não convencionais sobre meu dia.
Jungkook hyung:
| Eu já disse que não entendo o propositivo de cortinas que arrastam no chão? Hoseok tem várias.
| Aliás, Cindy, amanhã tem ensaio. É aqui na casa do Hoseok, normalmente às 14h. Se quiser aparecer...
| (Nem pense em Uber. Eu te busco. É caminho, bla-bla-bla. Já falamos sobre isso, sem discussão, haha).
O resto da mensagem mal tinha sido digerida e meu coração já estava na garganta. Ensaio. Amanhã. Se as repetisse, as palavras desmanchariam. Ensaio, amanhã, e logo eu não era muita coisa senão um garotinho hiperestimulado tropeçando nas próprias emoções. Dois ou três suspiros se foram, Deus sabe para onde e para quê. Senti como se estivesse próximo demais de algo muito importante e, de repente, derrubasse o tinteiro com que tingia as estrofes do momento.
Ensaio. Amanhã.
— Ele... — Comecei a dizer sem me dar permissão, meio dormente e involuntário. Taehyung se voltou à minha direção. — Ele quer que eu vá para o ensaio amanhã na casa do Hoseok.
Foi preciso um pouco mais do que eu esperava para que Taehyung se desse conta do que aquilo implicava.
— Entendi, mas... — Então, ele finalmente percebeu, sobrancelhas suspensas pela constatação. — Ah, porra... amanhã você vai no Kyuhyun, né?
— É.
— E você não poderia...?
— Não. — Claro que não. Ele havia chamado por mim; pedido por mim. Claro que não. Claro que eu não podia simplesmente deixá-lo. — Não posso. Ele tá doente, Tae...
Quando Kyuhyun me xingava das formas mais vis possíveis, era fácil demais esquecer por que eu ainda estava preso a ele. As correntes mais pesadas eram outras; mais complexas e entranhadas que as vistas a olho nu. O relacionamento abusivo é uma enfermidade silenciosa, o tipo de verme que precisa de você, vive de você. É por isso que não te mata de vez; vai tentar te convencer de que não há nada errado porque você não pode ver as feridas. É nas sutilezas que o verme ataca: os pedidos de Kyuhyun representavam um perigo muito maior que suas ordens. Que criatura insensível negaria visita ao namorado doente?
Ele só era bom demais em precisar de mim e eu era viciado em ser necessário.
— Você vai ficar muito tempo por lá? Sei lá, e se você aparecer no ensaio depois...?
Eu sorri, conformado. Inviável.
— Ele vai querer passar a tarde junto, eu acho. E sem condições dizer que vou no ensaio do EVIL. Ele ia me matar, ainda mais depois de terça. — Fechei os olhos para pensar melhor. Não funcionou, é claro.
A mão quente de Taehyung alcançou meu pescoço com uma massagem suave. Ele suspirou antes de dizer:
— Ji, como você pretende continuar em contato com o Jungkook? O Kyuhyun vai saber que vocês conversam. Ele não vive bisbilhotando seu celular? — Eu andava tentando responder àquela pergunta muito antes de Taehyung verbalizá-la. Soltei minha cabeça na sua mão com uma bufada angustiada. Não havia resposta. — Você vai pelo menos tocar no assunto com ele? Não tô querendo te pressionar, só não quero que ele surte e te machuque.
— Ele nunca me bateria, Tae.
— Ele não precisa dar na sua cara pra te machucar, Jimin.
Tensionei a mandíbula. Detestava que me dissessem o que eu já sabia. Detestava mais ainda quando estavam certos.
— Eu sei. — Segurei sua mão, tirando-a de mim com uma rispidez de que imediatamente me arrependi. — Eu sei disso.
Não era justo com Taehyung. Para ser sincero, também não era justo comigo. Eu estava cansado de ouvir as mesmas coisas e sabia que Taehyung estava cansado de repeti-las. Tínhamos nossos motivos para perder a cabeça, mesmo que nos esforçássemos para evitar isso.
— Desculpa. — Ele foi o primeiro a largar a espada. Um de nós sempre precisaria cumprir esse papel. — Eu sei que você sabe, foi estúpido dizer. Só me preocupo, sabe? Fico triste por não poder ajudar.
Eu era um idiota. Idiota, idiota, idiota. O que estava fazendo? Punindo Taehyung por ser meu amigo? Por me dizer a verdade?
— Nossa, soul... — choraminguei com os olhos trêmulos de vergonha. — Eu sou muito idiota. Desculpa. Não é nada contigo, é só que... podemos não falar disso? Agora não. Queria esquecer essas coisas...
Não havia, no entanto, qualquer hora em que eu quisesse falar daquilo. Taehyung sabia. Eu sabia. Todos sabiam.
De novo, eu estava empurrando com a barriga.
— Ok. — Ele sorriu, triste, e acariciou meu cabelo enquanto me olhava como se lhe doesse tanto quanto em mim.
Não dói, pensei. Você não sabe como dói. Não sabe.
Ainda com o celular em mãos, digitei uma mensagem rápida sem esperar a resposta. Não podia — e não queria — lidar com isso agora. Seria demais.
Eu:
Cortinas que arrastam no chão não fazem sentido nenhum kkkkk |
Puxa, hyung, amanhã tenho compromisso :( mas obrigada pelo convite! |
Quem sabe na próxima ^^ |
— Vamos dar um pulo na praia pra espairecer? Trouxe a sua bermuda que ficou em casa. — Taehyung percebeu pelo meu semblante que eu precisava me mexer, sair do meu coração, alma, cabeça. — Banho de água salgada pra te lavar das más energias e te preparar pras que vêm. Não soa ruim, né?
Eu não sabia se o mar seria capaz me lavar de mim, mas ri baixinho — um tanto resignado — quando respondi:
— Não, não soa ruim.
***
Samanda, 2020.
Domingo, 11h31.
A brisa ao norte de Samanda era fria mesmo no verão.
Mas era patético culpar a natureza pela tolice de levar meu coração nas mãos. O sopro do mar estava ali muito antes do mundo ser mundo e de eu decidir que meus dedos nus eram o bastante para carregar a vida por aí.
A lembrança da tarde passada veio numa pontada ansiosa no peito, a prece silenciosa de que me preparassem para uma batalha que não escolhi. Não sabia se funcionara, o sal que ainda ardia na minha pele era mais como prova de desespero do que um estímulo. Estava com saudades do Taehyung, saudades das pétalas fujonas da jacarandá, saudades das panquecas da minha mãe e dos momentos em que eu não precisava estar ali, em frente à casa de Kyuhyun, com as pernas geladas e sentimentos sublimados se liquefazendo, pingando e pingando e pingando sem parar do coração opaco nas minhas mãos.
Quando Kyuhyun me deixou entrar, relembrei com um arrepio fúnebre o porquê de sempre levar um casaco à sua casa: era o único lugar na cidade que conseguia ser tão frio no meio do verão.
Não respondi ao "entra, amor" dengoso que derreteu dos seus lábios secos, mas não por mal; tentava lidar comigo mesmo e a sensação de entrar num território estranho. Estava tudo tão diferente do que eu esperava encontrar que não consegui me tranquilizar com o timbre manso cujos tons nem reconhecia mais. Era como ouvir uma língua estrangeira remotamente familiar, a sensação esquisita de um espaço conhecido com todos os móveis, cores e adornos fora de lugar.
— Que bom que você veio.
Eu soube na mesma hora que ele não havia mentido sobre estar doente, não só pela voz rouca e pela postura curvada, mas pelas camadas assustadoras de roupa que o cobriam e que eram exagero mesmo para uma casa com ar-condicionado.
— Sua febre melhorou? — Talvez essa não fosse a coisa mais adequada a se dizer depois de três dias distante, mas pareceu uma rota segura.
— Não muito. Não tenho remédios, só tomei um banho morno. — Sem me olhar, Kyuhyun andou pouco pela sala pequena. Vi quando tocou a porta semiaberta do quarto e entrou devagar depois de dizer: — Vamos deitar.
— Eu trouxe remédios. — Porque sei que você nunca tem e que não admite estar doente. — Quer que te leve alguns?
Esperei por uma resposta; não qualquer resposta. Ele vai ficar ofendido.
— Sim. Acho melhor — disse, então encostou a porta e completou, um tanto abafado: — Depois vem deitar.
Dei à sacola da farmácia uma olhadela incrédula. Pisquei. Olhei para o quarto. Para a sacola. Pisquei.
A conclusão me beliscou na base da coluna e percebi com certo pânico me arranhando sob a pele que eu não fazia ideia de quem era o homem com quem tinha acabado de falar.
Havia algo de errado com o meu namorado.
Pouco mais de dois anos tinham me ensinado sobre Kyuhyun coisas que só a convivência poderia ensinar: alergias, vícios linguísticos, modos de gesticular, lado preferido do sofá. Eu sabia que ele só usava copos de vidro, que esquecia de colocar as chaves no lugar, que não falava com os pais e que nunca comprava remédios porque detestava a mera possibilidade de ficar doente. Nos primeiros meses juntos, havia sido um desafio me lembrar de que a cafeína era proibida por causa da enxaqueca crônica. Quando as crises aconteciam, ficava no escuro por horas a fio, em silêncio, e só tomava remédio se a dor o impossibilitasse de estagiar.
Enquanto buscava um copo no qual pudesse dissolver o chá medicinal, senti como se tentasse recuperar esses fragmentos dele que dormiam em mim. Passeei por aqueles detalhes colecionados por dois anos só para perceber que estavam com gosto estranho no paladar da mente. Qual era mesmo o sabor? Como era mesmo que eu costumava me sentir com alguém de quem sabia todas as manias?
Kyuhyun não usava copos de plástico, evitava remédios e os próprios pais; seu lado preferido do sofá era o esquerdo e ele tinha problemas com chaves. E ainda assim, entrando no quarto com o chá quente e um comprimido branco, conhecendo cada centímetro daquelas paredes, cada linha do lençol sob o qual já fora beijado, eu tinha certeza de que não sabia nada sobre ele.
— Aqui está — murmurei à medida que me aproximava. Kyuhyun estava deitado de barriga para cima, pupilas dilatadas e mórbidas como dois carrapatos. — Você está bem? Fora a gripe... Quer dizer, é uma gripe, não é?
Ele demorou tanto para responder que imaginei que não o faria. Fiquei parado ao seu lado com um calafrio indo e voltando pela espinha. Quando estava pronto para deixar o chá na mesa de cabeceira e me deitar, ele se sentou na cama subitamente e me olhou com aquelas mesmas pupilas fartas.
— Deve ser. — Pegou o chá sem agradecer (o que era esperado) e, claro, sem responder o que eu perguntara primeiro (o que era inquietante, mas também esperado).
A velocidade com que bebeu metade de uma xícara em uma só largada me perturbou, mas resolvi não demonstrar; tinha perguntas demais para fazer e não queria fracassar antes de sequer colocá-las em pauta. Precisava ser cauteloso. Todo cuidado no campo minado de Kyuhyun era pouco.
Uma vez que o chá tinha acabado muito mais rápido do que eu esperava, deitei ao seu lado como ele havia pedido. Pedido. Parecia absurdo quando pensava assim; quanto tempo fazia desde a última vez que ele me pedira para deitar na cama para qualquer coisa que não fosse transar? Talvez muito antes da noite vermelha no Jude's; muito antes do EVIL, do Festival, de Jungkook. Muito antes de nos tornarmos intoleráveis um ao outro. O que eu deveria dizer? Onde era apropriado tocar? Havia um modo certo de fazer isso?
Assim que senti o peso do seu braço na minha cintura, enrijeci de um constrangimento insuportável. Percebi o quanto parecíamos ridículos fazendo aquilo, tolos obstinados a manter acesa uma chama que sabíamos ser imaginária. Isso me atordoava demais: o fato de que sabíamos. Éramos dois palhaços miseráveis num circo vazio. A quem entretia nosso amor cênico, professado de bocas malditas como algo conhecido, decorado?
— Kyuhyun?
Não premeditei o chamado como não premeditara a brusquidão com que escapei do seu abraço. Aconteceu. Como um reflexo, um espasmo, um espirro. Só... aconteceu.
Previ a confusão no franzir do seu rosto, a retração imediata do braço com que me apertava e, claro — porque não havia como ser de outra forma —, a volta da única coisa sobre Kyuhyun que eu conhecia melhor que a mim mesmo: sua aspereza.
— Que merda deu em você? — Raiva. Com isso, sim, eu podia lidar.
— Eu não entendo. — Sentei na cama e fiz questão de olhá-lo enquanto falava. Mesmo sabendo das consequências que abrir a boca me traria, não consegui deixar o silêncio me envenenar. — Você briga com o EVIL, some da festa, não me manda nenhum sinal de vida por dois dias e então me chama para cuidar de você. Não grita, não briga, não me diz nada sobre a confusão que aconteceu e sobre a raiva que ficou de mim por ser amigo deles. Só... me chama de amor, me recebe com carinho, finge que não brigamos e que não me disse o que disse. Desculpa, Kyu, mas eu não consigo entrar aqui, deitar na sua cama e te servir um chá com remédio como se fosse normal. Você nem gosta de remédios!
As palavras se atracaram uma à outra como elos de arame que expulsei num movimento quase peristáltico. Foi tão brusco que minha cabeça latejou logo em sequência, embora me sentisse um tanto aliviado — ou oco? — por colocar para fora de uma vez.
Kyuhyun parecia tão pego de surpresa quanto eu, porque ficou me encarando com olhos nublados pelo tempo que poderia ter usado para gritar alguma coisa. De algum modo, a inércia me assustava mais; era o terror das especulações trágicas. Todas as possibilidades mais terríveis me ocorriam naqueles segundos de nada que também era tudo; ou potencialmente tudo.
No momento em que notei o quanto meu coração batia, foi impossível não prestar atenção na dificuldade dos pulmões, a tensão nos ombros, o aperto no pé da barriga. Fiquei hiperconsciente de todo meu corpo de um jeito desesperador, cada segundo como um mau presságio que só acumulava.
Foi quando — e como — Kyuhyun endireitou a coluna que o pensamento germinou e cresceu como um parasita pérfido. Lembrei, meio de repente, de Ian Reid, as palavras que me assombraram durante a leitura do seu livro no ensino médio. Um pensamento, escreveu ele, às vezes é mais verdadeiro que uma ação; podemos dizer, fazer o que quisermos, mas não podemos forjar um pensamento. Quando li, não sabia, mas naquele instante, senti como se Reid tivesse me alertado: o pensamento estava ali, ficaria ali. Grudado². Eu nunca mais esqueceria aquele lampejo assustador, a imagem da minha mãe, ereta no fim da mesa, a semelhança de sua postura com a de Kyuhyun, o modo como eu me sentia um erro ali, a forma como me sentira um erro na cozinha de casa.
O sentimento era igual. Merda, era igual.
— Aonde você vai? — Só percebi que tinha me levantado quando ele finalmente falou. Eu estava sem ar. Sem ar. Sem ar. Sem ar. — Jimin, porra! O que foi? Você falou, agora me deixa falar! Ei!
— Estou passando mal. — Por pouco não balbuciei.
— Você não deu a mínima para minha febre quando vomitou essas merdas em mim, e agora está passando mal e espera que eu fique com dó? Você é egoísta demais. — Não era justo, eu sabia, mas me perguntava se ele tinha a menor ideia do que estava afirmando. — Volta aqui! Que merda, Jimin!
Pelo som, soube que ele tinha se levantado, e logo eu já estava sendo puxado pela blusa. Claro que me desequilibrei, e claro que me senti pequeno e patético por isso, pois era a maneira como operávamos, eu e Kyuhyun.
— Você poderia ter me machucado — alertei.
— Mas não machuquei.
Eu ri.
Aquilo era ridículo. Nós éramos ridículos.
— Você não vai me contar nada, vai? — perguntei mesmo que soubesse a resposta, dessa vez ousando encará-lo. — Sobre o que aconteceu na festa.
— Por que você quer saber? É uma briga de faculdade de anos atrás, Jimin. Que merda você tem a ver com isso? — Ele parecia cansado, e talvez fosse a febre, mas eu senti que havia mais. Seus olhos não eram assim normalmente, tão... magoados. Havia raiva, sim, e desprezo, mas não costumava haver fraqueza.
— Eles são meus amigos, Kyu...
— Amigos? Você nem conhece eles, porra!
— Por que você está gritando comigo?! — E assim, eu cansei. Não era certo que eu me dobrasse e desdobrasse por ele, ou que deixasse meus sentimentos me arrebentarem por dentro até que cada parte de mim estivesse tão exaurida que eu não soubesse mais como viver minha vida. — Eu estava preocupado! Não sabia por que você estava tão alterado, nunca tinha te visto daquela forma. Você me deixou lá! Eles me acolheram, ficaram comigo enquanto eu chorava por sua causa!
— Jimin.
— E agora estou aqui! Eu... — A dor insuportável no peito me fez engasgar com a minha própria fala. Essa foi a pausa que precisei para tomar uma fração irrisória de ar e sentir o salgado de uma lágrima queimar a boca. — Eu tô aqui, feito um idiota, trazendo remédio e deitando com você. Você não se sente mal, Kyuhyun? Não existe nem uma partezinha, poxa, nenhuma partezinha em você que olhe essa situação e pense que talvez, só talvez, eu mereça um pouco mais do que você está me dando? Eu não quero que se jogue, que se mate por mim. Nunca pedi isso. Mas você... você não me considera nem humano o bastante para pensar um pouquinho em como me sinto?
Hoje penso que a coisa mais verdadeira sobre eu e Kyuhyun era que já estávamos versados em nos destruir.
Tantas brigas, afeto com prazo de validade, remendos para feridas que não podíamos ver ou tocar haviam nos convencido de que amar é sacrificar — a nós e aos outros. Já tinha estado naquela posição vezes demais para meus anos de vida. Não conhecia a faculdade, o trabalho, a vida longe de casa, mas conhecia vícios irreparáveis de um amor quebrado. Era novo demais até para lidar comigo mesmo, mas havia sido ensinado a cultuar o coração de outro alguém para conseguir suportar o meu.
Eu me esquivava tanto das brigas que quando não podia mais correr, a fadiga psíquica me levava a tal estado de hipersensibilidade física e mental que amarrar minha língua seria atestar loucura. Era nesses meus curtos momentos de escape que nossas piores brigas aconteciam; Kyuhyun nunca deixaria de explodir se encontrasse em mim qualquer centelha que pudesse inflamá-lo.
— Quer saber? — E sempre era horrível, independente de quantas dezenas, centenas, milhares de vezes tivesse estado ali. Doía de novo, me fazia chorar e odiar aquela vida tão jovem de novo. — Eu te chamei aqui porque te amo.
Não diga isso.
Não fale assim comigo.
— Saber de algo de três anos atrás é mais importante pra você do que nós dois? Se importa mais com o que aquele bando de drogado filho da puta que você conheceu, sei lá, ontem, tem a dizer sobre mim do que comigo? Esses dois anos de namoro valeram alguma coisa pra você? — A força com que segurava minha camiseta deixava seus dedos pálidos. Não preciso me prestar a dizer que ele não se importava caso eu me assustasse com isso. — Você perguntou se te considero humano e te devolvo essa pergunta: você me considera humano o bastante para respeitar o fato de que eu não quero falar sobre algumas coisas da minha vida?
— Kyuhyun. — Com os dedos tremendo, toquei a mão que me mantinha preso a ele. Sua pele fervia. — Quantas vezes você exigiu saber sobre coisas da minha vida que eu não queria compartilhar?
Algo esquisito aconteceu: Kyuhyun me encarou com aqueles olhos lindos e terríveis como se tivesse acabado de perder parte de si mesmo. Se eu não estivesse tão perto, não teria acreditado na forma como seus cílios vibraram e, por um segundo, duas lágrimas se insinuaram ao pé das írises escuras.
— O que eles te disseram?
— O quê? Como assim...?
— O EVIL, Jimin! — Tudo aconteceu rápido demais; o vermelho tingiu suas bochechas e ele se afastou como se fosse desmaiar. Tive medo que caísse, por isso tentei segurar seus pulsos, mas ele se esquivou e agarrou meus ombros com as mãos sacudindo sutilmente sobre mim. — O que eles te contaram?
De repente, pareceu claro.
Ele estava com medo de que eu já soubesse o que havia acontecido.
— Não disseram nada. Estou perguntando pra você. É você quem tem que me contar. — Eu poderia ter jogado sujo, mentido para chegar onde queria, mas não tive tempo ou cabeça para pensar na possibilidade. Não era da minha natureza.
— Eu não preciso fazer isso se não quiser.
— Ok. — Limpei o rastro da lágrima e concordei com um sorriso mórbido. — E não vai me dizer por que ficou bravo comigo e me deixou lá com a banda que você odeia? Poderia ter me explicado que é algo que você não está pronto pra falar invés de só, sei lá, me largar numa festa que você mesmo se convidou pra ir, sabendo quem estaria lá?
Seu riso desacreditado foi o impulso que eu precisava para me afastar com uma hostilidade que não era minha. Numa voz embargada que forcei à estabilidade, assenti:
— Tá. Entendi.
Não demorou; eu sequer tive tempo de me virar por completo.
— Jimin. — Agora, os traços de riso não estavam lá. — Vamos deitar. Sério, esquece essa merda.
Silêncio.
— Jimin?
A maçaneta gelada tocou minha mão. Pela primeira vez, eu estava certo de partir. Bastava de falar com o vento.
— Amor?
Mas Kyuhyun...
Ele era muito bom em precisar de mim.
Coloquei a mão no coração, dopado de vergonha, consumido pelo medo de que ele ouvisse, de que soubesse que eu havia amolecido. Quis poder arrancá-lo de mim e entregar a ele. Vá, vá! Pode ficar. Leve para longe! Eu pagaria qualquer preço por uma amostra de paz. O que mais ele queria que já não fosse dele? Por dois anos, morri tanto por nós. Se lhe desse meu coração sangrento para que bebesse as últimas gotas de vida, eu poderia finalmente morrer por mim?
— Você me chamou de mascote. — Eu não esperava que ele entendesse. Não queria nem que tentasse. Era por mim; só um pouco, quase nada. Eu precisava continuar o que comecei com as lágrimas de terça, enterrar aquele pedaço morto à beira da praia. — Se lembra? Me chamou de mascote e sumiu.
Não quis dar espaço para que ele falasse porque já tinha cedido demais, por muito tempo, em tantos aspectos. Girei o corpo com a pressa daqueles sentimentos amordaçados que imploraram para respirar.
— Fiquei em pânico quando pensei que teria que voltar de Uber. Estava tarde, não tinha ônibus, e você sabe... puxa, mais do que ninguém, você sabe que não tô podendo gastar com isso. Mas você... claro que não pensou nisso, pensou? Em como eu voltaria pra casa? Se arrumaria problemas com meus pais por isso?
— Seus amiguinhos poderiam te ajudar. Não foram eles que te consolaram?
— Ah, ele ajudou, sim. Você não perguntou e aparentemente não se importa em como voltei ou se estava bem, já que sumiu por dias, mas não se preocupe, eu sobrevivi. — Com ambas as sobrancelhas suspensas, ri para o seu desdém. As lágrimas ainda desciam, mas fiz questão de que não restassem dúvidas quanto ao que eu dizia quando firmei a voz e limpei a última trilha molhada da bochecha. — Jeon Jungkook me fez companhia a noite toda e depois me levou em segurança até casa. E de verdade, Kyu?
Meu toque vacilou quando senti seu tórax sob o meu indicador. Não era uma provocação, não era arrogância. Eu não estava vencendo nada. Tocar nele, olhar para ele, confessar algo tão humilhante doía.
— De verdade mesmo? — Por isso, pálido de dor, lânguido e dissecado, eu sorri. Não havia muito mais que fazer. — Só Deus sabe o que teria acontecido se ele não estivesse comigo.
Aconteceu outra vez, aquele relâmpago cinza nos fundo dos seus olhos escuros como a cisão de uma barreira ininteligível para mim. Eu tremia, mas não recuei. Vi com meus próprios olhos algo profundamente triste acontecer, como se puxasse as cortinas empoeiradas que não esperamos que se movam pelo bastão áspero, a esperança abrupta de um sol quente através da janela se desfazendo na constatação do céu sem nuvens. Falta uma peça, você sabe que sim, mas não a conhece, não pode sequer imaginá-la.
Eram sentimentos transmutados em metáforas que não faziam mais do que simular a verdade. Mas a verdade, o que realmente acontecia com Kyuhyun, eu não sabia, e não poderia saber. Há coisas que nem o mais sábio de nós pode intuir sobre alguém.
— Me desculpa.
Que engraçado. Eu já tinha pensado em como seria se ele me dissesse aquelas palavras, mas a compensação não chegou nem perto de me atingir quando as ouvi. Não aconteceu nada. Parecia muito com um cartão de felicitações num enterro, ou uma amostra de perfume barato num caixote de adubo. Simplesmente não fazia sentido.
— O que eu faço com isso? — perguntei a única coisa que poderia perguntar.
— Com o quê?
— Suas desculpas.
— Me diz você. Não era isso que você queria? Que eu me desculpasse? — Foi assustador perceber que ele tinha razão. Era isso, não era? O que eu queria.
Eu não sabia mais.
— Acho que... — Pausei, um tanto sem ar, sem deixar de encará-lo. — Acho que precisamos espairecer. Eu não devia ter vindo, de qualquer forma...
— Jimin, amor. — Suas mãos seguraram as minhas com pressa. Não, medo. De novo, senti como se uma serpente gigante se descamasse logo abaixo do meu nariz, mas eu não pudesse, nem se me esforçasse, vê-la. — Eu já me desculpei. Eu reconheci a besteira. Pronto, poxa! Esquece isso. Esquece essa merda. Eu tô tentando ser a pessoa racional aqui e você não tá me ajudando. Me ajuda, vai? Vamos deitar e esquecer isso.
Se Kyuhyun apertasse os botões certos, se me conhecesse como eu o conhecia nos detalhes, talvez tivesse me ganhado ali. Não era difícil. Eu ainda estava frágil e de coração partido; ele não precisava de muito para saber que eu não iria muito longe ferido daquela forma. Ele teria me abraçado, beijado minhas mãos como na formatura, dito no meu ouvido que acharíamos alguma forma da nossa bagunça dar certo. Se ele conhecesse meus modos como eu já decorara os seus, saberia que eu não precisava saber de tudo, que não ligava que mantivesse segredos, pois minha devoção seria sua se ele apenas me prometesse que tentaria confiar em mim.
Não era muito; era tão pouco que, no fim, talvez ele soubesse que não precisava beijar minhas mãos ou prometer qualquer coisa para que eu voltasse. A covardia venenosa me faria rastejar até ele. De novo.
— Não estou me sentindo bem. Acho que vou pra casa agora... ok? — Suas mãos estavam frias, suavam demais e sacudiram quando falei. Apertei-as com um carinho que, apesar de tudo, era sincero. — Você não está bem e precisa repousar. Eu também. Vamos só... dar um tempinho nisso, tá? Toma o resto do chá, tem uns comprimidos na mesa e...
— Jimin, por favor. Por favor. — O que eram insinuações de lágrimas se projetaram como bolhas sobre os cílios inferiores. Ali, eu comecei a realmente me assustar. — O que mais você quer que eu faça?
— Me deixa ir — pedi baixo, trêmulo. — Amor, por favor.
Kyuhyun apertou ainda mais minhas mãos. No seu rosto, foi como se dezenas de vermes se retorcessem e guinchassem sob cada microexpressão.
— Fiquei doente por causa do que aconteceu. Por causa do Min e do Jungkook. — Sua voz estava diferente. Eu soube no mesmo instante que, àquela altura, não poderia mais acessá-lo. — Foram eles que me adoeceram. Eu não sou o vilão aqui, Jimin! Yoongi ameaçou me bater!
— Mas eu não... Kyuhyun, para! Você tá me assustando! — Os vermes imaginários no seu rosto me nausearam. Era repentino e assustador, nada como nenhuma briga que tivéssemos tido antes de toda a situação com o EVIL. — Eu não disse que você é vilão, ok?! Eu não sei o que aconteceu entre vocês! E você não me conta, não conversa comigo, não fala nada! Nunca! Nunca!
— Amor...
— Me solta! Você tá me assustando! — Meus ossos rangiam. Vou cair, pensei, soltando-me das suas mãos e agarrando-me à maçaneta atrás de mim.
Kyuhyun parecia com tanto medo de que eu saísse que se afastou com ambas as mãos erguidas. A combustão se assentou por um momento, como se ele finalmente entendesse que não me faria ouvir nada daquele jeito.
— Ok. Calma. Viu? Tá tudo bem. — Não estava, e eu sabia. Mas convencido, ele continuou: — Você quer saber, não quer? Brigamos por causa de política. Foi isso. Não rolou nada demais. O pessoal de direito era meio barra pesada antigamente, eu entrava na pilha deles. O Min é radical, ele se posicionava contra. Nós brigávamos pra caralho por questões acadêmicas. Parou quando eles se formaram e eu me transferi. Foi isso. Está satisfeito?
Não me dei ao trabalho de digerir, estava irritado demais com o fato de que ele me achava idiota o bastante para acreditar que era só isso. Não era. Eu estava lá, no olho do furacão, quando Yoongi quase o bateu. Mas ele se atrevia a me dizer que era só isso?
Perceber o quanto ele me subestimava me deixou muito pior do que a certeza de que eu não saberia da verdade tão cedo.
— Tá — respondi. Não tinha mais nada, nada mesmo, para dizer a ele. — Eu preciso ir.
— Porra, Jimin...
— É sério. — Ele não foi o único a se surpreender com meu tom de voz. Lá no fundo, eu também não me reconheci. — Depois falo com você.
— Pra onde você vai?
Aberta a porta, pausei rente ao batente. Kyuhyun não estava com raiva, como normalmente aconteceria; tons de medo eram tudo que manchava seu timbre rouco. Um prazer devasto me consumiu pela ideia de que ele estivesse provando um pouco da minha sina, mas não durou. Não importava muito se eu tinha avançado. Eu nem queria saber por que me perder parecia tão importante para ele agora, se eu mesmo já havia perdido tanto que vê-lo sofrer não tinha mais o menor sentido.
Eu não ganhava nada com aquelas desculpas miseráveis, menos ainda com seus pedidos desesperados para que eu ficasse. Se aquele inferno, de qualquer maneira, era o lugar ao qual eu pertencia, que significado havia naquelas ilusões fantasiadas de conquistas? Nós continuaríamos presos um ao outro. Era o que merecíamos.
— Para casa.
Não fiquei para ver sua expressão de alívio, muito mais pelo fato de que precisava respirar do que por não querer assisti-lo perder o interesse em mim assim que percebesse que eu não correria para os braços de ninguém.
Estava ensolarado quando saí, azul quase obsceno de tão brilhante. A porta fechou-se muda atrás de mim — não fui seguido. De que eu valia se não estivesse em jogo? Enquanto fosse dele — a bagunça frágil e assustada só dele —, não precisava estar por perto. Eu era um estorvo até que não fosse, um prêmio até que não fosse, alguém até que não fosse. Ele tirava e colocava as etiquetas que servissem melhor às tempestades no seu ego enquanto eu ficava disposto na vitrine, torcendo por alguns minutos de sol.
Talvez por hábito, sentei no meio-fio e comecei a chorar.
Pensei em ligar para Taehyung, mas ele estava tão ansioso com o ensaio do EVIL e para falar com Hoseok que eu não achava justo estragar seu dia. Ele com certeza me chamaria para ir junto, mas eu me conhecia bem demais para saber que não era um bom dia para estar entre muitas pessoas, principalmente com Jungkook. Ele via sempre o pior de mim; eu queria que me encontrasse num dia bom, quando eu estivesse bem e feliz. Queria mostrar as partes legais sobre mim — aquelas pouquinhas que eu estava aprendendo a cultivar —, e não aparecer destruído por coisas que ele não podia mudar.
O céu estava muito bonito. Pensar que coisas bonitas podiam existir apesar de me acalmou meio de surpresa; ser positivo não era muito minha praia. Ainda assim, deixei que ficasse. Chorar na calçada parecia um pouco menos triste e um tantinho mais engraçado debaixo de um céu tão azul.
Eu sorri, com rosto inchado, e ri baixo quando duas lágrimas borraram a tela do meu celular, mas não me impediram de digitar:
Eu:
A vida é meio cômica e miserável, né?³ |
Eu não quis dizer ou ouvir nada em particular com aquela mensagem. Ela significava o que estava ali — nada mais. Não sei dizer, hoje, por que a escrevi, mas pensei que deveria parar de me questionar tanto, deixar que ímpetos fossem ímpetos, palavras fossem palavras, e só.
Deixei o celular de lado porque era indecente não assistir àquelas nuvens lentas e cremosas como bolas de sorvete. Se eu apenas tivesse colheres azuis para capturá-las...
Plim.
O celular vibrou sobre as minhas coxas. Não fazia nem um minuto e as nuvens já tinham perdido, porque era ele. E mesmo que a mensagem não quisesse dizer nada, mesmo que eu não esperasse algo de volta, ele respondeu como se conhecesse a pergunta — a que fazemos todos os dias sem saber.
Jungkook hyung:
| Acho que a vida é só ela mesma. O resto são nomes que a gente dá pra ela.
| Devem ter uns nomes mais legais pra sua. Cômica e miserável é pouco pra dezoito anos, não é?
| Quando descobrir os outros, me conta. :)
Meus dedos escorregaram pelo visor molhado e eu quis poder tocá-lo por ali. Uma risada esmorecida me escapou antes que alguns soluços viessem, porque eu não sabia se havia espaço para nomes legais naquela vitrine estreita que eu chamava de vida, cheia de etiquetas que não escrevi.
Eu:
Não acho que tenha muito mais nomes que esses |
Ah, e bom ensaio! |
Que rude eu aparecer do nada e nem desejar bom ensaio kkkk |
Jungkook hyung:
| Tá tudo bem, Cindy?
Ah. Eu estava fazendo aquilo de novo.
Eu:
Tudo ótimo! |
Ele estava digitando algo, mas logo parou. Tive medo que soubesse que eu estava mentindo, embora fosse impossível. O "digitando" foi e voltou por mais alguns instantes até que uma mensagem finalmente viesse.
Jungkook hyung:
| Não ligo que apareça do nada.
| Tinha esquecido do ensaio. Acabei de acordar.
Conferi o horário na barra de notificações e meus olhos saltaram. Os soluços que surgiram logo desceram pela garganta e eu me esqueci rapidamente da preocupação.
Eu:
Você acorda meio-dia????????? |
Jungkook hyung:
| Ok, por que subitamente sinto que esse não é um espaço seguro pra ter dado essa informação?
Eu:
Hyung KKKKKK meio-diaaaaaa |
Jungkook hyung:
| É domingoooooooo
| E eu não estava muito animado pro ensaio mais tarde, de qualquer forma.
Eu:
Aconteceu algo? Por que desanimou? |
Jungkook hyung:
| Porque você não vai. :p
Mordi minha mão de nervoso. Deus do céu.
Jungkook hyung:
| Brincadeira. Só tô cansado.
Eu:
Já acordou engraçadinho, hein, Jungkook |
Jungkook hyung:
| Uhhhh, Jungkook~
| Então consegui te arrancar um risinho?
Não era a primeira vez que ele dizia algo assim, mas eu torcia os dedos do pé e escondia o rosto entre os joelhos sempre que acontecia. Talvez nunca me acostumasse e esperava genuinamente que não. Às vezes aquela palpitação gostosa no peito era a única parte boa do meu dia.
Eu:
O que você acha? |
Jungkook hyung:
| No momento? Que meus óculos caíram debaixo da cama de novo.
| Preciso ir. A Makla tá mordendo meus brincos e ameaçou arrancar todos se eu não colocar comida.
| Bom domingo. <3
Eu:
Nessa altura seus óculos vão alugar uma casa debaixo da cama kkkk |
Apoio completamente a Makla. Já tá na hora de acordar! |
Até mais então, hyung :) Bom domingo e bom ensaio! |
Como sabia que demoraria até conversarmos de novo, guardei o celular no bolso. Tomei todo o ar que podia só para soltá-lo de uma vez. Que irônico era estar a poucos metros da casa do meu namorado enquanto sorria para mensagem de outro alguém; se eu dissesse em voz alta que Jungkook secara aquelas lágrimas estúpidas sem nem estar ali, Kyuhyun irromperia pela porta para me ter de novo? Era provável que sim. Se eu confessasse o que andava pensando, o delírio carmesim que me perseguia em noites oblíquas, isso talvez o fizesse chorar.
Eu me perguntava se seria um terço do que chorei até ali.
Peguei um ônibus vazio até casa, num daqueles assentos isolados, próximos à janela, de onde as ruas parecem menores e as pessoas são como formas vagamente humanas. Vultos. Era uma pena não ter levado os fones, detestava o barulho do motor, mas numa viagem tão curta não fazia muita diferença. Fiquei olhando pela janela, não muito consciente, meio fora de mim e fora dali. Sabe-se lá onde. A loja de conveniência em que eu e Jungkook estivemos — a Pavita — surgiu e se foi como uma lembrança. Usei aquela faísca de felicidade para me punir, como fazia com o barulho do ônibus — que eu realmente detestava e que escolhera ouvir mesmo assim. As poucas coisas sob meu controle também podiam ser muito perigosas, às vezes, porque me machucar assim já não era um ritual, era só... tão natural quanto abrir os olhos pela manhã.
Cheguei em casa sem dizer uma palavra, pouco depois. Vi de longe a TV no canal de jardinagem, meus pais sentados no sofá com Sofia, minha gata, dormindo sossegadamente entre eles. Isso me deu certa paz que só aquele tipo de cena poderia dar. Fui em silêncio até o quarto, buscando preservar a paz que, de certo modo, eu sentia depender disso: do silêncio. Meu silêncio.
Bartosh estava lambendo as patinhas quando entrei. Eu adorava suas boas-vindas e ele sempre parecia muito feliz com a minha chegada. Mamãe dissera uma vez que ele passava o dia todo me esperando, miando pela casa e se esfregando pelos móveis. Quando eu saía, ele dormia na cama ou na escrivaninha do meu quarto até que eu chegasse.
— Oi, Baba! Papai voltou! — Meu peito aquecia só de ver como ele imediatamente reconhecia minha voz. — Eu sei, eu sei... Papai voltou! Tô aqui.
Apesar de tudo, estar em casa era bom; eu resetava alguns setores da minha cabeça naquele mundo iluminado que, como Demian, descobri ser uma ilusão4. Mas que fosse. Todos vivíamos delas. Era o que sustinha nossas vidas pacíficas.
Bartosh, no entanto, vivia a vida mais verdadeira enquanto subia em cima de mim e apertava nos pontos mais doloridos sem ligar se me machucava. Ele era fofo, não precisava entender nada além dos seus lugares preferidos para tirar uma soneca; eu já ficava muito feliz só da minha barriga ser um deles.
Dormi sem chorar, porque não queria assustar Bartosh, mas ele sentia quando as coisas não iam bem e se deitava no meu peito, com o rosto colado ao meu, lambendo aqui e ali se sentisse meu coração bater errado. Dormi sem chorar porque não queria assustá-lo, e porque no fim, ele via — como Sofia e a maioria dos animais — através dos alicerces mentirosos em nome da paz. Eu não precisava chorar, porque se ninguém viesse — e nunca vinha, em nome da paz — ao menos ele, naqueles pelos brancos e rosto rechonchudo, estaria ali.
Devia estar exausto, pois apaguei completamente por pelo menos quatro horas. Bartosh não estava mais zelando por mim quando acordei — mesmo ele se cansava de ficar o dia inteiro naquele quarto —, mas Sofia estava de vigia ao pé da cama (eles não se gostavam muito, era provável que ela tivesse o enxotado de lá).
I Wanna Be Your Girlfriend vibrando pelas minhas paredes indicava que Chaeyoung estava tendo... um momento; ela tinha muito daqueles desde que começara a andar com "a garota com o nome da menina de The Last of Us", como ela costumava me lembrar. Dina. Eu a aconselharia se já não fosse unânime que amor era meu tópico proibido, e se ela não preferisse morrer a falar dos próprios sentimentos. Éramos muito diferentes nisso; ela me lembrava muito minha mãe com toda a rigidez racional e aversão quase patológica aos próprios sentimentos. Como meu pai, eu estava em contato demais com o que sentia (apesar do preço alto que pagávamos por isso), o que dificultava qualquer comunicação frutífera com minha irmã se o assunto sequer tangenciasse os sentimentos dela.
Não cogitei ir até lá, já que a porta normalmente estava trancada quando Girl In Red tocava. Ainda de cabeça nublada pelo sono, tentei, por instinto, alcançar meu celular na mesa de canto só para perceber, com Thank You, Next irrompendo abafada, que ele estava debaixo de mim. O susto foi suficiente para me acordar, então girei o corpo de modo a alcançar o celular.
Soulsoul está te ligando.
Claro que estava. Ninguém além de Taehyung e vovó me ligariam em pleno domingo.
— O que foi, soul? — atendi em meio a um bocejo, esfregando os olhos e afundando a cabeça no travesseiro. — Eu acabei de acordar, então não fala muito rápido.
— Acordando tarde, Cinderela?
Eu saltei da cama num milissegundo.
Aquele não era o Taehyung. Definitivamente não era o Taehyung.
— Quem... h-hã, quem é? — Você sabe quem é, me xinguei. Só quer que ele fale.
— Um mensageiro real que foi coagido pelo seu fiel escudeiro, um tal de Kim Taehyung, a perguntar se você vai estar livre mais tarde. — Do outro lado da linha, ouvi Taehyung gritar algo como "Diz pra ele se livrar do abutre e aceitaaaaaaaar!". — Ele disse pra você, hã... concluir seus compromissos e, por ventura, aceitar.
— Eu não disse isso!
— Bom. — Aquele risinho charmoso ecoou e ele voltou a falar: — Depois do ensaio vamos usar a jacuzzi do Hoseok pra, você sabe, espairecer e ter uma desculpa pra beber e fumar. Tem suco de melancia, se quiser.
— Não tem, não, mas ele vai comprar! — Dessa vez, era Hoseok. — Porque ele é ga-
— De qualquer forma — Jungkook interrompeu —, desculpa te acordar. Eu disse pra não te incomodarem, mas o Taehyung insistiu. Não que... bem, não que eu não queira que você venha.
— Ele quer! Demais!
— Eu vou te matar.
A linha ficou repentinamente em silêncio e eu só ouvia meu coração pulsar, pulsar e pulsar, fora do controle.
— Desculpa por isso. Enfim. — Um pouco sem fôlego, ele voltou a falar. Mesmo que tentasse parecer sério, de algum modo, eu sabia que estava sorrindo. Só de pensar, só de intuir que ele estava sorrindo, eu também sorri. — Taehyung comentou que você tinha compromissos com... o outro lá. Mas, não sei, a esperança é a última que morre, não é?
Ele era tão, tão fofo. Não devia ser permitido. Eu não deveria rir tão fácil depois de uma manhã tão difícil.
— Bom, pelo menos te arranquei um risinho de novo. — Mas Jungkook não era como eu, como os outros. Ele não precisava de permissão para ser como era. Ele só era. E essa era uma das coisas mais bonitas sobre ele. — Pensa com carinho, tá?
Ele tinha razão: havia nomes mais legais que cômica e miserável.
— Tá — respondi, sem deixar de sorrir. — Eu vou pensar com carinho.
Sem nunca ter pedido, eu vivia — porque a vida não era, realmente, nada além do que ela mesma e, como a morte, inevitável. Se passaríamos, eu e ela, um tempo indeterminado juntos até a próxima etapa, talvez fosse hora de arrumar nomes mais legais.
Viver era, sim, um pouco cômico e bastante miserável, mas podia ser muito doce e surpreendente também.
***
REFERÊNCIAS:
1: Referência do livro Ao Farol, de Virginia Woolf.
2: Referência do livro Estou Pensando em Acabar com Tudo, de Iain Reid.
3: Referência do conto "O meu ofício", do livro As pequenas Virtudes, de Natalia Ginzburg.
4: Referência do livro Demian, de Herman Hesse.
[NOTAS]: E aí? Gostaro?
Esse capítulo foi dificílimo de escrever por muitas razões. Eu fiquei insegura porque, como vocês perceberam, quase não tem interação jikook e foca mais no Jimin. Esse capítulo é fundamental pro resto da fic que, claro, vocês devem saber que apesar de ter romance, não é >só< sobre isso. É sobre muitas coisas. Esse capítulo, como outros que estão por vir, precisam acontecer pra que a fic caminhe. Espero que eu tenha transmitido o que eu queria e que vocês não tenham ficado chateados pela falta de interação jikook. A escrita desse capítulo me exigiu coisas que eu nem sabia que era capaz de escrever. Apesar de mais conciso, eu sinto que ele é bem denso em vários aspectos (não sei se vocês concordam, mas pra mim foi bem sufocante haha e era a intenção).
Obrigada por esperarem com tanto carinho. VDC tá com 740K de vieeeeeeeeeeeeeews. Isso é muito surreal pra mim. Sei que ninguém tem obrigação de ficar comigo até o final (eu nunca nem exigi isso), então sou incomensuravelmente por quem permaneceu, apesar da demora. Eu amo, amo vocês. Só espero que vocês saibam que isso (a demora) também dói muito em mim, embora muita gente goste de pensar que eu sou cuzona e demoro por querer KKKKK mas acho que as pessoas acreditam no que querem e não tenho controle sobre isso. Eu tô fazendo o melhor que eu posso com o que tenho, e agradeço de todo meu coração por vocês respeitarem isso.
Compartilhar o que escrevo é mais que um passatempo. Eu vivo disso, e não é financeiramente KKK por isso, realmente dói não ser capaz de escrever sempre, mas eu tô melhorando isso! Escrever, pra mim, é muitas vezes doloroso (porque eu tenho dificuldade de parir algo que me deixe satisfeita kkk), mas tô trabalhando nisso. Quanto ao tempo, só mais um semestre até eu concluir 95% das matérias obrigatórias e depois vou ter tempo pra escrever mais. Vai sobrar só o TCC que, honestamente, já tá meio que no papo.
Bem, é isso. Obrigada por continuarem aqui e espero que Vermelho do Caos um dia possa estar nas mãos de vocês. Eu tô mais confiante que vou escrever mais e mais rápido ultimamente, mas como vocês sabem, eu concilio VDC com Não Confie Nele, então às vezes demora um pouco mesmo D:
Com muito carinho, aprendizagem e um pouco de frustração por ainda não ter achado nomes legais pra vida,
Labadessa.
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