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04. Primeiro Passo.

[NOTAS]: EH NADA PARÇA, EH NADAAAAAAAAAAAAAAAAAA!!! MALUCO, OLHA ISSO, 227K DE LEITURA COM TRÊS CAPÍTULOS. CÊS TÃO OUVINO MEUS BRADO? KAOSKAOKSOAKOA

Na moral, MUITO MUITO MUITO MUITO obrigada. Nem se eu escrevesse oitocentos "obrigada" conseguiria expressar a felicidade que eu tô da fic ter dito tanta repercussão. Vocês são uma fonte poderosíssima de incentivo pra mim, então só tenho a agradecer incansavelmente por tirarem um tempo da vida de vocês pra ler o que eu escrevo. Vocês não fazem ideia do quanto isso me faz bem.

MAS ENFIM, tá aí, quinze mil palavras fresquinhas pra vcs se esbaldarem. A ideia era que esse capítulo fosse maior, mas resolvi dividir pra que, assim, eu pudesse escrever a outra parte e postar mês que vem (se der). E EH ISTO, espero que gostem!

Boa leitura e leiam as notas finais!

#MorangoCanhoto 🍓

***

"Há de findar o mal que fere, por acaso, tal como o desviver dos astros à despedida da noite e do dia?"

Samanda, 2020.

Terça-feira, 11h40.

Três.

Ao todo, três árduas investidas decretaram a gênese do tormento. Foram longas, quase eternas, arrastadas com a displicência quase fúnebre que perdurou pelos próximos segundos. Talvez fossem os ruídos molhados, a atmosfera febril ou, sob última hipótese, o perene ranger da madeira gasta contra a tintura corroída na parede. Talvez fossem os cascalhos no quintal, a quentura de verão, ou o tic-tac preguiçoso do relógio na estante. Na mão, a contagem de inconvenientes me tomou cada um dos dedos, embora soubesse — como sempre soube e trataria de saber — que eram todos, sem uma única exceção, elementos coadjuvantes da minha angústia.

Que todo e qualquer inferno mundano era preferível a estar ali, com ele.

Sexo: o berço de tudo, combustível das paixões que nascem, crescem e queimam na banalidade juvenil como se nada mais importasse. As recordações dos meus primeiros contatos sexuais eram vagas o bastante para que não houvesse possibilidade de distinguir um ponto de partida, muito embora ainda carregasse a sensação de nunca ter efetivamente pertencido ao êxtase do que costumavam chamar de tesão. Os relatos entusiasmados aos quais tive acesso durante a vida ainda pareciam muito distantes de quaisquer assimilações que eu houvesse feito quanto à prática. Àquela altura, o destoar remanescente entre projeção e realidade me servia como primeira e única companhia nas dadas condições.

Era suposto que me distraísse tanto quando estava sob seu corpo? Ou que me debruçasse sobre devaneios nada alusivos à fricção ardida dos nossos sexos? Sequer fazia sentido entrar naquele debate, um debate mental de incongruência persistente que não me ajudaria em nada; não ali, não com ele. Os rastros de prazer nos olhos escuros de Kyuhyun soavam como o caminho mais adequado, a trajetória mais viável para propositalmente me perder nas sensações que deveria estar sentindo e que, por causa velada, não sentia.

Tachar como horríveis nossas manhãs de sexo — como essa e muitas outras que a antecederam —, não seria de todo justo. Era apenas... frio, mórbido, como um ritual que há muito já perdera significado ou razão para continuar existindo. Atritos mecânicos e gemidos degradantes constituíam boa parte da experiência suposta a ser mágica, sem grandes mudanças ou reviravoltas comoventes. Só sexo, fluidos que iam e vinham em ritmos maçantes de eterna languidez.

Trocávamos posições como se elas detivessem algum poder místico de esquentar as coisas ou como se não soubéssemos que o problema não residia em falhas de execução, mas no cerne do que aquela relação se configurava. Teimávamos em tornar disso uma alternativa religiosa aos orgasmos pendentes que nunca, nunca vinham, conhecendo bem o final de todas aquelas tentativas e, ainda assim, persistindo no erro como dois tolos inteiramente perdidos em si mesmos.

Por que estou aqui, afinal?

Entre o intervalo de sucções estúrdias, o questionamento surgiu da desconexão evidente entre nós. Meu peito se exprimiu em um sentimento ferroso e só pude torcer para que tudo aquilo acabasse logo, que Kyuhyun e sua boca desjeitosa tomassem distância de mim. Com os olhos fechados e forte ânsia de fugir, recorri às guaritas mentais para vedar contato com a realidade e sua crueza. Era somente ali, nas saletas na minha imaginação, onde algum consolo poderia ser achado. Uma alternativa triste e desesperada, mas, ainda assim, uma alternativa.

No domínio abstrato, o manejo de ideias é raso, quase nulo. Não se pode governar pensamentos plenamente se, no fim, conjunturas materiais são praticamente determinantes para formulação daquilo que se fantasia. Não me foi concedida uma escolha; naquele instante, o nascimento involuntário de um cenário fictício pareceu se criar sozinho à minha frente, emoldurando a faceta jovial daquele que, incessantemente, reivindicava a si mesmo como único intérprete legitimo de todas as minhas loucuras, da insensatez mais tola à mais libertina, quaisquer aspirações levianas e despidas de lógica que se alentavam na imprudência da paixão.

JK.

Muito antes do surgimento de alguma frustação, deixou sua herança ali, sujeita ao delírio. Soou real, por um instante, como se cada detalhe devorasse a vitalidade das lembranças e, por conseguinte, abandonasse o posto de meras representações. Como ou por que se alastrava com tanto vigor, não sabia. Sabia, no entanto, que não possuía — da minha parte — objeções relativas ao seu caráter irrevogável; se era suposto que acontecesse, se era fatal que os lábios imorais e olhos de mel se consumassem à minha frente, eu não tinha quaisquer reclamações.

Por gloriosos segundos, Jungkook estava ali. Fábula ou não, a veracidade não era importante; ele estava ali, bem ali, uma ilusão, um sonho emergido de memórias que, embora intáteis, eram mais reais que Kyuhyun e nosso amor de mentirinha.

O romance enfermo entre nós lembrava uma passagem notável de Maquiavel, escrita e dispersada em post-its coloridos na escrivaninha do meu quarto. Falava sobre os homens e o escasso autodomínio que, a priori, por aparente doçura, dava início a algo venenoso e destrutivo a longo prazo. Uma lacuna nos instintos, se poderia assim definir; a trilha ardilosa de um caminho bonito que findava no precipício.

Jungkook era o reflexo de uma urgência, eu sabia. Nada sobre ele denotava um provável "nós", as respectivas linhas de nossas realidades corriam paralelamente e pressupunham o nunca encontro. Mesmo assim, abatido por todos os contras e desprezado por todos os prós, eu ainda o queria. Ainda desejava — como se deseja eternizar o verão em Shakespeare¹ — que fôssemos nós ali, engolidos no glamour vermelho, ardendo e fazendo amor, tremeluzindo sob um teto qualquer e desaguando um sobre o outro desde que estivéssemos sós.

O vislumbre do frenesi, no entanto, partiu tão logo se pudesse deleitar, porque alegrias violentas têm fins violentos², e prazeres momentâneos — como aquele em que me afundei — são e sempre serão fugazes; a euforia de um entorpecente cuja vida curta só nos traz mais desejo e menos controle.

Já tristemente premeditado, o resultado regular de manhãs como aquela se preservou uma vez mais: corpos suados e silêncio constrangedor, único destino imaginável para uma transa decadente. Permanecemos do modo como costumávamos ficar, sempre quietos e dispostos lado a lado, a nudez cada vez mais estranha à medida em que o relógio corria. Kyuhyun não dizia nada e eu não me arriscava a perguntar por qual razão continuava fomentando iniciativas tão ou mais frustradas que seus finais desastrosos. Não sabia dizer se ele tinha uma resposta, poucas ideias me pareciam tão sólidas quanto a certeza de não conhecer um terço sequer do que se passava na cabeça dele, mesmo que — ironicamente — devêssemos cultivar confiança e intimidade.

De todo modo, a angústia esteve expressa em ambas as partes; ao menos um único aspecto mútuo destacado meio às condutas egoístas. Estávamos suficientemente conscientes das circunstâncias para não cometermos o erro de falar sobre elas; seriam extensões desgastantes de uma conversa sem propósito, nada que pudesse restaurar um laço essencialmente rompido que há muito vivia apenas de espectros.

Pondo à parte o calor originado no sexo, Samanda havia nos celebrado com um clima ameno naquela manhã — uma verdadeira novidade em temporadas de verão, quando a atmosfera abafada não costumava dar trégua. Os seguimentos de ar facilmente me fizeram arrepiar, ainda nu entre os lençóis e sensível à disparidade de temperatura, sem disposição o bastante para me vestir.

Kyuhyun não disse nada por um intervalo impreciso de tempo. Costumava se vestir mais rápido, fugindo de fantasmas que apenas ele enxergava. Eu não o entendia; não entendia por que insistia em situações como aquela. Não entendia que tipo de conclusão eu deveria tirar de suas tentativas incansáveis quando, no fim, ele parecia tão frustrado quanto eu, distante demais para que se pudesse inferir suas razões ou sequer conversar sobre o que estava havendo.

Espíritos forasteiros: o título que, sem real pretensão, havíamos conquistado. Éramos bestas soberbas que arrebentavam os próprios corpos em nome de um amor miserável e juravam de pés juntos que havia legitimidade em conservar aquele namoro.

E, de novo: "Por que estou aqui, afinal?".

Kyuhyun já estava vestido no segundo em que retornei à realidade. Eu não sabia em que instante havia dado conta de se cobrir por completo, ou talvez estivesse disperso demais — como já era de costume — para prestar atenção nos pormenores à volta.

Em uma das suas mãos, vi meu celular alojado entre os dedos compridos. Alguma neura indômita o consumia em relação às minhas redes sociais, dizia que a checagem diária se dava em virtude da "prevenção" natural de possíveis ameaças — como se eu mesmo (ou nosso namoro, em essência) não fosse válido o bastante para dispensar esses tipos de hipóteses indecorosas. No mais, já estava habituado a ter minha privacidade apoderada por outrem — por ele, mais especificamente — e, quem sabe, houvesse ficado tão calejado pela experiência que tristemente me acomodara no sentimento de reclusão.

— Chaeyoung enviou mensagens. — Sua voz se alastrou com clareza depois de longos minutos apenas emitindo murmúrios. — Ela não deveria estar no treino?

— E está. — Notei imediatamente que precisava de um copo d'água, as cordas ressecadas rangiam no fundo da minha garganta. — Fiquei de assinar alguns papéis para um torneio no lugar dos meus pais. Eles não podem buscá-la hoje.

Ele deu a volta na cama, parando ao meu lado para entregar o celular.

— Eu te levo — afirmou e eu soube instantaneamente que não estava me dando abertura para opção. — Que horas precisa estar lá?

— Não sei bem. Cinco da tarde, eu acho — deduzi, levantando preguiçosamente.

— Você acha? — Da forma irritadiça que costumava fazer, ergueu uma das sobrancelhas. — É melhor ter certeza. Quando tiver um horário exato, me avise.

Retraí a mim mesmo, ainda embolado no lençol.

— Certo — respondi quase tão baixo que meu próprio timbre cedeu. — Desculpa.

O vício do perdão: uma síndrome fictícia que eu havia criado para designar minhas desculpas compulsórias. A tarefa de achar uma solução não me cabia, mas ainda achava intrigante examinar quão natural tinha se tornado — em algum ponto da minha vida — pedir tanto perdão. Boa parte deles não vinha acoplado ao juízo de uma situação concreta com a demanda de desculpa; no fim, eram majoritariamente um produto da síndrome e não passavam disso.

De meros impulsos.

Enquanto me vestia, os instantes precedentes voltaram a me assombrar; mais concisamente, a lembrança da miragem de Jungkook e questões envolvendo sua frequente aparição nos meus delírios. Na verdade, a simples existência de delírios, por si só, já sustentava facilmente uma série de questionamentos sobre o vínculo entre nós; se é que havia algum e, é claro, considerando a mim mesmo como sendo o único verdadeiramente importunado por todos esses pensamentos.

"Ele pensa em mim?", e eu sabia que não, porque não subestimava a maestria presunçosa das minhas aspirações, muito menos a facilidade com que se erguiam sobre tão pouco. Jeon Jungkook existia à parte do mundo colorido que eu havia criado como fuga egoísta dos meus problemas; ele era muito mais do que apenas um quadro bonito cuja admiração se apoiava em mera conveniência. Cair no erro do protagonismo me faria desumanizá-lo e reduzi-lo ao simples refúgio, destarte, mesmo que involuntariamente o projetasse como um sonho distante, ainda era capaz de reconhecer sua individualidade e, portanto, o fato de que tinha uma vida inteira se desenrolando longe das minhas suposições mais ousadas.

Havia muito que eu desconhecia sobre ele, sobre suas particularidades mais profundas. E mesmo com pão e a faca na mão, munido de oportunidades para persistir no contato, fui covarde demais para sequer discar seu número. Mais de duas semanas, dezessete dias na contagem iniciada desde o Festival de Verão; tempo o bastante para que minhas paranoias sobrepusessem a coragem de chamá-lo, a carga horária exata para que todo tipo de agouro e insegurança fizessem a possibilidade de contatá-lo ser quase impossível.

Os conflitos penosos com Kyuhyun me incapacitaram de pensar com clareza na primeira semana. Nossas brigas eram terríveis, com direito a rastros de angústia e lágrimas copiosas por duas noites seguidas; se por um lado me habituara à grosseria, por outro, ainda sentia o mundo desabar sempre que discutíamos daquela forma. Alguma parte em mim ainda desejava que ele me amasse, talvez pelas boas memórias dos primeiros meses de namoro que se preservavam tão cruelmente na minha cabeça. Eu sabia que havia deixado de ser querido há muito mais tempo do que poderia estimar, quem sabe fosse essa a razão para evitar chateá-lo a todo custo, corroendo a mim mesmo no processo. No fundo, bem no fundo, eu ainda esperava pela reviravolta que mudaria o curso dos ventos e o traria de volta aos meus braços, doce como costumava ser. Não o amava, sabia que não, mas torcia para amar de novo somente para que não precisasse dar fim a toda nossa história que, triste ou não, ainda era nossa história.

Apenas na segunda semana, portanto, fui capaz de refletir sobre o número rabiscado no papel, cuidadosamente guardado sob as roupas na gaveta. Discar alguns algoritmos e esperar pela mágica da tecnologia soava fácil como mera hipótese, mas a mecânica simplista nunca seria inofensiva àqueles que viviam acorrentados aos próprios medos. Fazer ligações não era meu forte, ao menos não quando implicava contatar um quase desconhecido que, por culpa única e exclusiva minha, havia enfrentado situações particularmente desagradáveis nas últimas semanas.

Negar o envolvimento direto de Jungkook nas recaídas de ambos os sábados antecedentes seria tão mentira quanto negar que eu pensava nele todos os dias desde então. Sob alguma lei singular do universo, fomos destinados a cruzar caminhos em ocasiões fortuitas cujo acaso me coagira a revelar muito mais do que deveria. JK, vítima fatal das bizarrices da minha embriaguez, tinha em mãos, agora, muitos dos detalhes nocivos ao meu respeito, além da gama de informações quanto à precariedade do meu relacionamento. Em suma, teve — sem verdadeira intenção — um encontro precoce e inesperado com meus demônios mais secretos.

Tendo plena ciência do inconveniente ao qual o submeti em sua própria festa de aniversário, não fui indecente o bastante para confrontá-lo outra vez. Sua elegância e polidez jamais permitiriam que não se portasse como tal; estava claro que, de toda forma, seus atos gentis não revelavam necessariamente alguma espécie de interesse, mas simples e genuína educação. Nada além disso.

Não o liguei, ainda que sendo praticamente compelido a isso por Taehyung. Decidi tomar partido de uma opção mais segura, sem riscos de aproximações perigosas que poderiam render más impressões ou, pior, situações embaraçosas. Pouparia Jeon Jungkook de ser traiçoeiramente atraído ao Tártaro da minha vida, assombrado pelos fantasmas hediondos criados na ansiedade. Daquela vez, mesmo tendo por inclinação natural almejar que nos reencontrássemos, resolvi ser franco não por mim, mas por ele, pelo reconhecimento da incompatibilidade de sua natureza sublime com meu espírito quebrado. Se manter distância significava resguardar a harmonia entre os mundos e evitar sangrar nos que não me cortaram, eu o faria.

Terça-feira, dezessete dias desde o Festival de Verão. Uma manhã relativamente fresca com vestígios rasos do calor que muito provavelmente atingiria seu ápice pela tarde. Tinha despendido a noite na casa de Kyuhyun, como já estava habituado a fazer naquela época do ano. Com sua universidade parada por um breve recesso de verão, não possuía muitos compromissos além de ver os amigos e fazer sexo nos períodos em que folgava no estágio. Nossos céleres encontros em dias aleatórios da semana não eram muito mais do que apenas transas mórbidas e conversas tediosas. Eu, sem responsabilidade alguma além de estudar esporadicamente para o vestibular — cujo objetivo já nem sabia se me serviria de algo —, passava o tempo assim, distraindo a cabeça sempre que podia e gastando parcela das minhas energias em noites ao seu lado, fingindo que ainda restavam resquícios do que fomos em eras passadas.

Chaeyoung fazia jiu-jitsu duas vezes por semana e comparecia rigorosamente a todos os treinos. Diferente de mim, que sempre pendi às artes não esportivas, seu fascínio era a adrenalina, o entusiasmo quase vicioso de embates físicos e controle total dos próprios músculos. Tinha uma faixa prestigiada dentre os limites da hierarquia no jiu-jitsu — embora eu não me recordasse bem a cor — e, dali algumas semanas, participaria do torneio para o qual fora selecionada como aluna destaque.

Ocupada com a burocracia hospitalar do tratamento de câncer pelo qual meu tio passava, mamãe não estava disponível para buscá-la na academia naquela semana. Papai trabalhava o dia inteiro e seu horário de almoço não condizia com o treino de Chaeyoung, dispensando-o como segunda opção. No fim, a maioridade havia me rendido ao menos a possibilidade de responder pelos meus próprios atos e, consequentemente, ser uma alternativa viável para substituir mamãe ao assinar os papéis necessários para a participação no torneio. Com isso, naquela terça-feira, fiquei encarregado de comparecer na academia assim que as atividades acabassem.

Após conferir as mensagens, confirmei o horário exato de término das aulas para chegar com alguns minutos de antecedência. Kyuhyun estava de carro e me levaria até lá, o que significava não ser preciso depender dos horários espaçados em que os ônibus passavam naquela região da cidade, já que a baixa densidade populacional do bairro rejeitava a possibilidade de criar mais linhas ou contratar novos motoristas.

Sendo assim, limitei-me a aguardar. Ainda era cedo para sairmos de casa, mas Kyuhyun não estava exatamente intragável naquele dia; suportá-lo por mais algumas horas não soava tão ruim naquelas condições, ainda que considerando seu humor instável e a presença quase contínua do perigo iminente cujo costume já havia me calejado, pois habituam-se à veste infame os que vendem a alma ao maligno; e como na ordem natural de tudo que acontece, assentei-me na conformidade segura de um futuro cinzento, não por mim — porque nada ali jamais seria seguimento da vontade original — e não por qualquer sujeito inteligível, mas pelo medo letárgico que em si mesmo constituía um querer autônomo.

Park Jimin não tinha identidade; o conceito de identidade, na sua essência, já havia se perdido para mim.

E por isso eu continuava ali, com ele.

***

— Você não precisa sair se não quiser. — Por reflexo, reforcei pela terceira ou quarta desde que havíamos adentrado o estacionamento.

Com os óculos quadrados um tanto folgados no rosto, Kyuhyun franziu o nariz conforme estacionava na vaga mais próxima.

— Você já disse isso e eu já respondi que quero te acompanhar. Por que está sendo tão insistente? — Ergueu a sobrancelha enquanto me olhava de soslaio, mas seu tom não continha rispidez, surpreendente; soava apenas curioso. — Passamos pouco tempo juntos essa semana.

Era verdade, de certa perspectiva. Comparado com as outras semanas do mês, não tínhamos nos visto tanto nos últimos dias, talvez em função das brigas após o Festival de Verão e a pausa usual na comunicação para que os ânimos acalmassem.

— É, você tem razão — murmurei e logo constatei que aquele era, afinal, nosso primeiro dia de trégua desde vinte e um de junho. — Tudo bem, então.

O assunto sobre JK não teve espaço em nossas discussões passadas, mesmo na tarde imediatamente posterior àquela festa. Conhecendo bem seus padrões de comportamento — especialmente no que tangia seu lado furioso —, estranhei a ausência do tópico "Jungkook" dentre as pautas de conflito. Esperava que me acusasse de traição ou qualquer absurdo igualmente característico de seus apontamentos, mas o nome do guitarrista das mechas vermelhas não foi citado uma vez sequer.

Kyuhyun parecia esquivo.

Eu me lembrava com clareza do que havia dito sobre JK na noite do solstício. "Merdinha", foi como desdenhosamente o designou, embora ainda durante um telefonema e não cara a cara. Seria tolice desconsiderar o rancor inerente à colocação, pois mesmo em se tratando de Kyuhyun e seu temperamento duvidoso, não havia motivo plausível para que dissesse algo daquele teor sobre alguém desconhecido, tampouco sem histórico demarcado de controvérsias.

Tudo aquilo ainda me soava muito estranho, como o mundaréu de sujeira encoberto por um tapete pesado e espesso. Não obstante, faltavam-me elementos que pudessem constituir suspeitas, por isso — e apenas por isso — resolvi não divagar sobre. As incertezas manter-se-iam voláteis à medida em que eu prezasse pela calmaria da ignorância.

Saímos do carro às 17h15, com os quinze minutos de antecedência que havia prometido à minha irmã. Logo ao lado, dispunha-se o Espaço Cultural Esportivo de Samanda — abreviado como ECES —, edificado por enormes paredes brancas e janelas de vidro. Era o maior centro de atividades físicas da cidade, criado sob tutela do governo como projeto de caráter inclusivo e totalmente gratuito para jovens, estudantes e idosos. Conseguir uma vaga para Chaeyoung havia sido uma luta e tanto, tendo em vista as disputas anuais para associar-se ao ECES, mas mamãe era perspicaz e fez o possível para incluí-la ali sob a justificativa de que "a pirralha boca suja precisava fazer algo além de arrumar confusão o dia todo"; um argumento contundente e muito válido, para ser honesto.

De mãos dadas, atravessamos a entrada principal com a missão de não esbarrar em ninguém. Os horários de saída eram sempre os mais lotados, já que a faixa etária dos alunos da tarde restringia-se às crianças e adolescentes que obrigatoriamente precisavam de responsáveis dispostos a buscá-los. Com isso, os portões de entrada e as calçadas do complexo ficavam inteiramente congestionados por cerca de uma hora em razão do fluxo de carros e pessoas.

Foram raras as vezes em que precisei aparecer por ali, posto que mamãe se ocupava de levar e trazer Chaeyoung todas as terças e quintas. Por estar pouco habituado com o ambiente, ficamos ao menos sete minutos perambulando como baratas tontas até finalmente encontrarmos as placas indicativas da administração, meu destino principal naquela jornada e razão mor para estar ali.

Kyuhyun, cujo rosto retorcido já revelava descontentamento, desfez a conexão entre nossos dedos em um gesto irritado.

— Você sempre faz isso, não é? — Pude captar a entonação insatisfeita no seu timbre quando entramos na sala administrativa do ECES.

Desculpa — pedi, mesmo sem verdadeiramente entender seu descontentamento repentino.

— Por que você nunca aprende a estudar os lugares onde pretende ir antes de chegar? Nós sempre ficamos andando por aí como dois idiotas. — Seus dedos longos correram por entre os fios castanhos e ele respirou fundo. — É sempre um estresse sair com você. Parece que se esforça pra atrasar as coisas.

Ouch.

— Tudo bem, amor, eu já entendi. Nós achamos a sala, isso que importa. — Um suspiro longo me escapou ao passo em que tentava atenuar o clima desagradável. — Já passou.

— É — devolveu, curto e grosso. — Mas irrita, ainda assim.

No fundo, sabia que ele tinha razão. Eu era um tolo desorganizado e sempre o introduzia naquela bagunça dos meus compromissos, aparecendo nos lugares sem planejamento prévio. Meu senso débil de direção já deveria, àquela altura da minha vida, ter estimulado o surgimento do hábito de me preparar melhor, mas tamanha era minha imprestabilidade à proporção de impedir aprimoramento.

Inércia, do tipo mais apático e insípido possível.

Pelo resto do caminho até o balcão de atendimento, não falamos mais nada. Era melhor daquela forma, o silêncio em lugar de frases cortantes. Já um tanto nervoso pela timidez, aproximei-me sutilmente da mulher alta que digitava copiosamente frente ao computador, concentrada.

— Boa tarde, hã... — Lambi os lábios quando seus olhos se voltaram para mim. — Eu estou aqui para assinar a permissão de uma aluna do jiu-jitsu. Sou o irmão mais velho dela.

A partir de então, uma série de informações foi requerida. Meus documentos, endereço, nome da aluna em questão, tipo de permissão e todas as burocracias previsíveis daquele tipo de processo. Após registrar tudo no que aparentava ser o sistema do ECES, empurrou alguns papéis sobre o balcão, indicando com a caneta onde a assinatura deveria residir.

Prestes a tingir o papel com meu nome, a ponta metálica sequer teve sua chance de rabiscar a superfície; no mesmo segundo, os ruídos agudos de choro arrebentaram com a redoma de quietude e invadiram violentamente o silêncio preestabelecido na sala. Pelas notas adocicadas do timbre, a origem dos soluços era, indiscutivelmente, uma criança. Soube disso muito antes de ameaçar girar o corpo para vislumbrar o cenário, uma vez tendo a atenção fisgada pelo susto.

À mercê dos reflexos primitivos da curiosidade, cedi aos instintos quando me permiti olhar para trás. Mente e corpo, estáveis até o presente momento e dissociados pela matéria, instantaneamente convergiram à balbúrdia do caos e se tornarem um só; uma única dinâmica derradeira de ascendência imprevista.

Ele.

Jeon Jungkook, dono dos lumes de mel.

E foi como em uma epifania literária, dessas de bambear as pernas e tirar o fôlego. Virtù e Fortuna³, as máximas maquiavélicas em sua expressão mais palpável, muito embora não houvesse em mim as lascas dessa virtù; talvez, é claro, apenas a benevolência da fortuna que ali, logo à frente, pessoalizava-se entre as linhas deslumbrantes que o delineavam. Era essa, afinal, a magia do acaso? O sentimento vivaz de correr, correr e correr para, no fim, perceber que todos, absolutamente todos e quaisquer caminhos consumam no mesmo fado? No mesmo curioso destino?

Mapas, rotas, novos trajetos ou fugas; nada disso importava. Tudo acabava nele, todas as estradas, encarnações e universos. Jeon Jungkook era meu começo, e ali, após tentar afastá-lo por duas semanas seguidas, pude finalmente entender que ele também era meu fim.

Quando pus meus olhos no rosto bonito, separado por longos dezessete dias firmado em descrença, pude entreouvir a melodia onipresente de uma música antiga, abafada e longínqua tal qual um cântico nostálgico de infância. Se esticasse os braços, sentia ser possível agarrar-me ao ritmo pêndulo que ia, vinha, vinha e ia, plano de fundo da performance solene que travei ali, naquela sala, ao esgoelar calado mediante a expressão involuntária do meu próprio corpo. Pensei estar sonhando; um daqueles delírios corriqueiros facilmente desbotados num único clique; entretanto, o choro estridente da criança presa aos braços pálidos serviu como prova sólida da minha lucidez e, em paralelo, da presença factual — não ilusória — do moço de neve.

Jungkook estava ali. Ele estava bem ali e era tão real quanto Andrômeda ou a Via Láctea.

Vê-lo naquele tipo de traje era, no mínimo, desconcertante. Usava um camiseta larga de algodão, rubra como as tatuagens, com brasão de raposa bordado em preto à esquerda do tórax. Os músculos proeminentes no peitoral largo me roubaram o resto de oxigênio disponível, demarcados de forma fascinante sob o tecido vermelho. Escondidas pelo moletom escuro, as coxas firmes não deixavam de chamar atenção mesmo em roupas tão casuais, uma vez tão espessas e chamativas quanto qualquer outro aspecto nele.

E os cabelos... ah, os cabelos...

Presos, novamente, em um rabinho despojado com fios avulsos da franja escarlate recaindo sobre o rosto. E óculos, por fim. Como se, para variar, já não fossem ultrajantes todos seus demais atributos; como se já não bastasse andar por aí como se fosse o centro de tudo, o cerne de todas as coisas boas e fascinantes que existiam.

O que ele fazia ali? A pergunta estalou como faísca. Eram elementos em demasia e pouco arranjo para absorção; sobretudo, rasa — quase nula — capacidade para evitar os efeitos compulsórios dos seus feitiços. Recolher-me no espanto era tudo que podia fazer diante de uma ocasião tão inesperada; ou, mais precisamente, tudo que eu conseguia fazer nos primeiros segundos após a colisão com aquela eventualidade.

— Preciso de alguém do departamento de enfermagem, Daya. — Soava resoluto, firme, concentrado demais em pousar a criança em um dos bancos para perceber que eu estava ali, encarando-o de maneira quase hipnótica.

Daya, a mulher atrás do balcão, esticou o pescoço para visualizar o ocorrido.

— É grave?

— Não — respondeu, ainda sem tirar os olhos do menininho no banco. — Joelho deslocado, mas parece ter voltado ao lugar. Preciso da confirmação de algum profissional e algo pra amenizar a dor.

— Vou chamar a enfermeira — Daya assegurou, pegando o telefone ao lado. — Ela deve chegar daqui alguns minutos.

— Tá doendo! — exclamou o garoto, de ombros encolhidos e parecendo agonizar.

Jungkook o tocou suavemente no joelho flexionado, analisando a região.

— Não é tão ruim. Tenho quase certeza de que seu joelho é muito forte, olhe só — declarou, apontando com calma. — Viu? Ele parece bem, não parece? Estaria com uma aparência ruim se tivesse sido grave.

Meio aos soluços, o rapaz tentou respirar fundo, atento às colocações.

— Mesmo, hyung? — A voz quebrada fez meu coração vacilar.

JK bagunçou os cabelos encaracolados do menino e, por fim, sorriu.

— Juro de dedinho.

Imediatamente, o choro amenizou. Fácil assim, sutil como mágica. A careta de dor permanecia, mas a mudança perceptível no comportamento denotou a preponderância do susto em detrimento da lesão. Foi uma cena reconfortante, para ser sincero. Havia diligência no tato de Jungkook, zelo genuíno pelo estado do rapaz. A facilidade com que conseguiu contornar o pânico desproporcional pelo machucado era, sem sombra de dúvidas, muitíssimo admirável.

Nessa mesma zona de transe pela admiração paralisadora, no entanto, foi onde me pus em xeque, pois tão logo se assegurou da segurança completa da criança, JK girou o corpo apenas o bastante para que nossos domínios visuais entrassem em confronto, ambos olhares topando em uma sequência imediata como dois polos de cargas distintas cuja atração ocasionava um único fim: o caos.

Jeon Jungkook me despia na íris caramelo como num hábito curioso de gênese anônima. Parecia ter dado vida à própria forma de invasão; rompia com as minhas barreiras e entrava arrebentando por cada fragmento de alma, destrinchando um por um os meus pedaços dispersos. Havia tanto tempo desde a última vez em que estávamos tão próximos e, ainda assim, aqueles metros pareciam milhas. A garganta ardia, as mãos suavam, tudo em mim borbulhava num grito à devoção. Um grito a ele.

Mas eu não estava sozinho e, quem sabe, houvesse sido esse o grande azar de encontrá-lo naquela tarde.

— Jimin? — Kyuhyun.

Foi quando me lembrei da sua presença decisiva ali.

Os encontros fortuitos entre Jungkook e eu eram sempre marcados por tensões que nasciam na problemática do meu namoro. Eu não era ingênuo o bastante para achar que ele já não havia tirado suas próprias conclusões acerca da minha situação; estava certo de que — por minha causa — possuía uma imagem bastante hostil de Kyuhyun. Tivemos a infelicidade de nos conhecer no contexto conturbado de um sábado quente e de encerrar nosso último contato entre lágrimas e um número rabiscado. Era esperado que preservasse uma impressão nociva do meu relacionamento, mas nunca foi como se eu contasse com a mínima possibilidade de estarmos numa situação como aquela.

Não era como se eu tivesse sequer cogitado que poderia acabar ali, ao lado de Kyuhyun e, simultaneamente, à frente do homem em quem projetava meus desejos mais íntimos durante nossas noites de sexo. Mas lá eu estava, desamparado entre o fogo cruzado, covardemente entreposto no seio do atrito silencioso que se iniciou assim que Jungkook percebeu a companhia estrangeira e arrastou os olhos até ela.

Até Kyuhyun.

E foi letal.

Intenso, severo e letal.

Tive a sensação de afogar no próprio ar, todos meus sentidos se desfazendo lentamente na acidez da atmosfera que se formou. Guerra Fria: não sobre divergências políticas, mas sobre o atrito impiedoso entre índoles substancialmente adversas em suas raízes mais elementares. Era a discórdia densa e visível instaurada sob regime de silêncio, numa batalha quieta e perigosa que poderia facilmente dilacerar qualquer um que se pusesse de intermédio.

Eles estavam encarando um ao outro e era tão desconfortável que eu não sabia para onde correr.

— Assine a permissão, Jimin — Kyuhyun mandou, os olhos ainda seguindo trajetória retilínea até Jungkook, parado a alguns metros e igualmente interessado em permanecer com o contato visual.

Abri a boca algumas vezes, mas meu cérebro ainda não estava devidamente preparado para conciliar os pensamentos com o resto do corpo. Tudo que fiz foi alternar o olhar entre as duas figuras conhecidas naquela sala e engolir em seco, assentindo timidamente.

Minha mão tremia enquanto assinava o papel, o coração batendo quase tão rápido ao ponto de rasgar o peito. Uma assinatura desengonçada e trêmula foi tudo que pude fazer, ansioso demais para dedicar minha atenção a algo que não fosse o clima esquisito que havia se instalado ali.

— Pronto — murmurei, virando-me apenas para ver que eles ainda se olhavam e que Jungkook havia encostado suas costas à parede, ambas as mãos no bolso. — Eu...

— Vamos. — Grosseiro e notoriamente irritado, Kyuhyun agarrou meu braço mais rápido do que pude impedi-lo. — Eu não gosto desse lugar.

— Mas...

Não completei o protesto. A sequência que se sucedeu consistiu puramente em uma inércia mental. Minha mente estava em branco. Em um segundo, estávamos próximos ao balcão e, no outro, deslizando até a porta de saída à medida em que cortávamos por entre a corrente densa de ar. Uma contradição estranha na percepção de tempo me fez sentir como se estivesse concomitantemente em duas extremidades: na velocidade da luz e em câmera lenta.

Foram alguns ínfimos segundos — ou até menos — de proximidade. Arrastado até a única porta de saída, a fatalidade de meros instantes lado a lado não poupou nossas íris de se abraçarem uma última vez por frações minúsculas de tempo. Os lumes rajados de verde cintilaram em nuances indecifráveis que eu não soube dizer se significavam alguma coisa. Jungkook me olhava e aquilo era tudo que eu sabia; acompanhou cautelosamente a rota que meu corpo fazia para fora da sala e, portanto, para fora do seu campo de vista.

E tão cedo nos vimos, assim, afastamo-nos novamente, privados friamente de uma simples oportunidade para dialogar. Palavras, gestos: nada, apenas desejos remanescentes e emoções não resolvidas, confissões ocultas sobre nós e as noites de sábado, sobre a paixão injusta que crescia sem freios a cada maldita vez que o via.

Pendências; nada mais e nada menos que olhares essencialmente incapazes de saciar minha urgência por ele.

Chaeyoung apareceu pouco depois de todo aquele furacão e embora fosse sagaz o suficiente para notar que algo estava errado, também era esperta para saber que não deveria cutucar o vespeiro. Eu sabia que seria confrontado algumas horas depois, preferencialmente quando estivéssemos sozinhos, mas ao menos todo aquele intervalo de tempo me permitiria pensar em como explicar a situação de modo que não soasse completamente ridículo. Precisava de um momento só para mim, isolado com meus próprios neurônios e sentimentos para tentar racionalizar os ocorridos antes de decidir expô-los a alguém.

De permissão assinada, constrangimento vivido e silêncio pairado, nenhuma voz se fez ouvida durante o caminho até minha casa. A expressão azeda de Kyuhyun salientava a seriedade quanto ao seu desprezo por JK — o porquê, no entanto, eu não sabia. Só sabia, no fim, que preferia não falar sobre, exceto se fosse confrontado. O mais adequado era evitar revirar assuntos dos quais eu não tinha total entendimento para resguardar minha sanidade. Estava habituado àquela alternativa, quaisquer fossem as condições vigentes: fugir, por vezes com o pretexto mentiroso de autopreservação.

Não havia preservação nenhuma.

Eu era um covarde autodestrutivo que mentia para si mesmo. Nada mais, nada menos.

Essa era minha natureza

***

— Espera aí... — Chaeyoung balançou ambas as mãos no ar e soltou um riso incrédulo, ajeitando-se sobre a cama. — Você tá querendo me dizer que o Jungkook, instrutor de Kung Fu das crianças do ECES, é a mesma pessoa que te deixou o bilhete naquele dia? O tal de "JK"?

Assentindo pateticamente, confirmei:

— Exato.

Ela pausou as gesticulações por alguns segundos. Mordia o lábio naquele gesto recorrente de transparecer reflexão, analisando toda e qualquer coisa que eu pudesse ter dito.

— Cara, eu jamais imaginaria — admitiu e descansou o rosto na mão, prosseguindo: — Quer dizer, eu sabia que ele era músico, mas não tinha relacionado isso com tudo o que você me contou da noite no Jude's. Já faz mais de um ano que ele trabalha ali e não tenho muito contato com as turmas de Kung Fu.

Uma tarde.

Uma única tarde foi tudo que precisei para descobrir coisas inéditas sobre Jeon Jungkook.

E nada poderia ter sido mais oportuno do que a impaciência de Kyuhyun que, irritado demais por seja lá quais fossem suas desavenças com JK, decidira de última hora que estava com a cabeça muito cheia e, logo, preferia passar um tempo sozinho na própria casa, longe de tudo. Partindo disso, não chegou a sequer descer do carro; deixou que eu e Chaeyoung saíssemos para confessar que voltaria em outro momento — mais precisamente, quando sentisse que estava bem para isso. Não esperou respostas ou avais, era como se estivesse distante demais para gastar energia em qualquer comunicação mínima ou como se, sob poder das próprias emoções, não quisesse correr o risco de mostrar mais do que podia. Desse modo, alheio a tudo, partiu com seu carro sem ao menos esperar uma despedida, pisando com tanta força no acelerador que pude ouvir o motor grunhir ao que o via desparecer no fim da rua.

Apesar de consideravelmente firme na ideia de não vasculhar sobre passados que não me diziam respeito, era impossível não divagar sobre Jungkook e suas prováveis divergências com meu namorado. A existência de problemáticas para além da minha ciência tinha se tornado inquestionável na administração do ECES, meio à tempestade invisível entre eles. Ligando todos os pontos e exercendo um raciocínio básico, sabia que o suposto desentendimento datava mais tempo que o início do relacionamento, dado o fato de que Kyuhyun raramente dispensava qualquer oportunidade de difamar seus desafetos mais recentes.

Ele nunca havia falado de Jungkook antes.

Ainda assim, seria precipitado tirar conclusões sem uma única evidência congruente. Navegar por águas inexploradas requeria um senso de direção mínimo que eu claramente não tinha; especulações não eram o bastante para determinar um desfecho e a última coisa que eu gostaria era de naufragar em mar aberto. Seguindo a premissa criada de início, resolvi me deter ao sigilo e não perdurar naqueles pensamentos. O que tivesse a descobrir viria à tona em outras ocasiões, mas ainda era cedo para tratar aquilo com tanta relevância.

Por fim, a sós com minha irmã e decidido a não pensar naquilo, todas minha faculdades mentais se voltaram à aparição de Jungkook e o contexto confuso da criança machucada. Sendo a única pessoa conhecida em uma relação cotidiana com o ECES, Chaeyoung havia me esclarecido muitas das dúvidas que surgiram com a situação na administração através de explicações sucintas sobre JK e sua função na unidade.

Ao que tudo indicava, era instrutor de artes marciais para crianças de 8 a 12 anos há cerca de um ano. Possuía faixa preta em Kung Fu e havia sido selecionado para vaga por meio uma medalha de ouro conquistada no campeonato estadual do verão passado. Chaeyoung dizia conhecê-lo como Jungkook ou apenas "Kook hyung", apelido carinhoso atribuído por algumas crianças da academia. Além disso, parecia ser querido pela equipe geral de funcionários e recebia elogios frequentes quanto à gestão de suas aulas.

Isso explicava a vestimenta esportiva e o cuidado com o rapazinho. Alguma lesão durante a prática de exercícios provavelmente resultara no cenário visto mais cedo e essa aparentava ser a razão pela qual agiu de forma como agiu diante das circunstâncias.

— Isso é... interessante. — O comentário saiu com mais espontaneidade do que eu previa. — Quer dizer, ele é tantas coisas ao mesmo tempo. Guitarrista, cantor, professor...

A risadinha maléfica de Chaeyoung não me passou despercebida nem mesmo enquanto eu dançava pelas minhas dependências imaginárias.

— Qualquer pessoa pode ser muitas coisas ao mesmo tempo. Eu, por exemplo, sou linda, talentosa e boa cozinheira — ironizou, embora não mentisse e eu bem soubesse de suas qualidades. — Você é quem tá gamadinho e acha que o cara é um bombril multiuso, bobão.

Ouch.

— Chae! — Uma beliscada leve foi o que precisei para desfazer sua pose fajuta de prepotência. — Não é verdade. Eu só acho que ele é muito, hm... instigante?

— Você quis dizer "bonitão", né? — Pirralha abusada. — Aliás, não entendi qual foi desse rolê de vocês toparem e não trocarem nem um "oi". Por que não falou com ele?

E, finalmente, aquele assunto

— O clima ficou bem esquisito. — Tentei ser sutil, sem explicitar brutalmente minha igual (ou pior) confusão a respeito de tudo. — Ele estava ocupado cuidando da criança, Kyuhyun estava com pressa e, bem, juntando tudo, nem tivemos tempo hábil pra conversar.

De olhos estreitos, Chaeyoung debruçou-se na cama ao questionar:

— Mas não é o mesmo cara do número no papel? Aquele que o Tae te deu no dia do festival?

Por vezes, eu me esquecia daquele pequeno detalhe referente à troca mútua de informações sobre mim. Minha irmã e meu melhor amigo serem íntimos implicava, afinal, nessas interseções de assunto.

— Sim, mas... — Demorei bons segundos apenas prolongando a pausa das reticências, sem saber o que dizer. — Mas eu não quero ser inconveniente de ligar ou algo do tipo. Achei que seria melhor se...

— Ih, nem precisa terminar, já entendi. — Então, subitamente endireitou a postura e voltou com as gesticulações exasperadas. — Você não mandou nem uma única mensagem desde aquele dia, né?

— Hã...

— Park Jimin! — Riu, apontando em acusação.

Ergui os braços e sinalizei minha rendição, suspirando.

— É. Eu não mandei.

— Como eu já imaginava — pontuou, revirando os olhos. — Meu Deus, irmãozinho querido, quando você vai parar com essas neuras, hein?

— É que...

— Você ficou com vergonha e achou que acabaria incomodando. Já sei, não precisa falar.

— Não é só isso — interrompi e dessa vez falava sério à medida em que apertava os lábios. — Chae, qual é? Ele teve que me levar bêbado pra casa. Como se já não bastasse, ainda teve o desprazer de presenciar em cores toda aquela situação horrorosa na festa. Você sabe melhor do que ninguém como eu costumo ficar quando brigo com o Kyu, chorei feito um bebê na frente dele e Taehyung teve que me levar pra fora dali. Foi péssimo.

Sem deixar que ela se impusesse, continuei:

— Nossos encontros foram bem mais perturbados do que realmente proveitosos, entende? Eu não... não consigo imaginar de que forma poderia enviar uma mensagem ou ligar sem me sentir totalmente patético. — Meus olhos pesaram e, logo, minha voz seguia o embalo. — E eu sei que é ridículo, covarde, sei lá... mas, sabe? Não pensei que ele trabalhasse ali. Eu sequer pensei que o veria outra vez e achei que seria melhor não ser um fardo.

Chaeyoung me assistiu por alguns instantes, nenhuma nuance da sua voz se fazendo presente. Era minha irmã e melhor amiga, conhecia meus medos e entendia minhas limitações. Apesar de saber que não me julgaria, sabia que secretamente sentia pena.

— Minnie... — Pelo uso do apelido, soube quase imediatamente que estava tentando me acolher. O peso na cama variou e a senti se aproximar. — Sério, me diz: vale a pena ficar nessa angústia só por causa de coisas que você tirou da sua cabeça? Ele te ajudou, porra! Fez a maior linha de cavalheiro e ainda fez questão de passar o número pro Taehyung. Ou você se esqueceu que foi ele quem disse que queria manter contato?

Talvez, apenas talvez, ela tivesse um ponto.

— Se não for pra bater um papo ou sei lá, ao menos envia uma mensagem pedindo desculpas pelo paradeiro e agradecendo a ajuda. O cara deve ter esperado um sinal de vida e tu ficou moscando! — As mãos pequenas na cintura a faziam parecer minha mãe. — Moscando por causa de paranoias tiradas das vozes da sua cabeça, ainda por cima.

Bingo. Todas minhas inseguranças afloraram de uma só vez e queimaram sob a pele, ardendo como brasa e rasgando como lâmina.

— Chae... — Murchando tal como folha de outono, não pude deixar de ver por aquela perspectiva e, portanto, começar a me culpar. — Você acha? Acha que... não sei, que ele ficou chateado comigo?

— Eu diria que é mais provável estar preocupado do que qualquer outra coisa. — Tentou me tranquilizar, brincando com os dedos no meu joelho. — Jungkook sunbae não parece do tipo que guardaria rancor por uma bobeira dessas, principalmente se ele sabe como você é. De qualquer forma, não sou próxima dele, acho que você é o único entre nós capaz de analisar melhor.

Analisar: o grande revés da coisa.

Se cada visão particular já conta, por si mesma, com o impasse de ser iníqua, qual seria o papel do julgamento nublado de pessoas como eu? De pessoas ansiosas? Qual o lugar para aqueles cujo ego carece do vigor mínimo para um juízo suficientemente justo das coisas? Naquele presente instante, eu não tinha uma resposta. Inconscientemente, projetava meu egoísmo em pessoas e situações como uma prevenção à potencialidade de estragar tudo. Era o que fazia com Jungkook ao evitá-lo e o que costumava fazer com todas as fagulhas de felicidade que cruzavam meu caminho.

Tinha medo de corrompê-las e por isso as afastava tão desesperadamente.

Absorvendo as colocações de Chaeyoung com tanto remorso e uma pitada generosa de amargura, consegui finalmente visualizar o quanto sua narrativa fazia sentido, ou melhor: o quanto eu tinha sido um completo imbecil naquelas duas semanas.

O fato de precisar que uma garota de dezesseis anos me pusesse na linha já nem parecia tão doloroso perto da possibilidade de ter chateado JK de alguma forma. Taehyung havia sido incisivo quando deixou claro que Jungkook gostaria de manter contato, mas talvez, por estar tão calejado com minha reclusão, não houvesse insistido mais do que achava que deveria para evitar me pressionar.

Ainda assim, no fim das contas, lá estava Park Jimin, a manifestação trágica e cômica da contradição, completamente arrependido.

Olhei discretamente para o celular ao meu lado, o estômago retorcendo quase instantaneamente.

— Eu... deveria? — perguntei e não esperava realmente uma resposta, imerso em dúvidas.

— Com toda absoluta certeza. — Chaeyoung começou, sorrindo ao concluir: — Afinal, independente da resposta, você fez a sua parte.

— Argh! — grunhi e me joguei na cama, o coração já acelerado por saber qual seria minha decisão final. — Você não ajuda me incentivando assim, sabia? Eu fico tentado a realmente fazer.

— E você vai, ué! — E, assim, apenas atirou o celular no meu peito, literalmente me entregando a arma de um futuro crime. — Eu sei que você já salvou o número, é só enviar a mensagem. Vai, vai! Um "oizinho, me desculpa a demora, estava lavando o cabelo" e ele te perdoa.

De repente, senti-me um pouco mais leve do que antes e pude me permitir gargalhar de Chaeyoung.

— Tá, tá! Eu vou enviar! — Vencido gloriosamente pela persuasão da pirralha e pelas próprias paranoias, declarei o veredito ao agarrar o celular. — Mas só quando você sair daqui, sua capetinha intrometida.

Quase tão rápido quanto o final da frase, o tronco pequeno se ergueu dos lençóis à medida em que um sorriso orgulhoso estampava os lábios rechonchudos.

— Não precisa nem pedir. Eu é que não quero ficar de vela pra ti. — Com a língua de fora e o dedo médio perversamente à mostra, caminhou de costas até a porta do quarto, pulando feito a bobalhona que era. — Boa sorte com o Jota Cá. Vê se não vacila dessa vez, hein? Senão vou cobrar.

— Abusada! — exclamei entre risos, mas a silhueta já sumia quando finalizei. — Obrigado, feiosa.

E eu estava grato. Verdadeiramente grato.

Mas os dedos presos ao telefone já suavam no intervalo que precisei para digerir o que estava prestes a fazer; minutos de prelúdio pavimentando o primeiro passo para superação de um erro primordial. Meu coração doía, daquelas dores sem caráter bom ou mau, nada mais que a simples contração pela ansiedade de um desfecho desconhecido. Quando me dei por consciente, já estava ali, no contato dele, encarando um chat vazio cujo preenchimento poderia facilmente prescrever meu luto ou, no melhor dos casos, minha ressurreição.

"Jungkook hyung", foi como salvei há duas semanas, sem coragem para ir muito além disso. A barra de mensagens piscava e eu subitamente parecia em transe, como se já nem lembrasse como manejar um celular. Articular uma mensagem decente — que exprimisse tudo que eu imaginava precisar — nunca havia sido tão complexo. Como na noite em que o conheci, desaprendi toda e qualquer palavra; conceitos e definições já existentes não pareciam o bastante para ousar pressionar o botão de envio.

Era Jeon Jungkook. Que tipo de mensagem seria apropriado enviar para Jeon Jungkook?

Pensando e repensando mil e uma vezes, gastei ao menos dez minutos só refletindo quanto ao que digitar. Reescrevi as mesmas frases inúmeras vezes e ainda me conferi a liberdade de pesquisar algumas coisas no Google só para não correr o risco de passar vergonha digitando algo errado. Prevenção nunca é demais — ou talvez fosse, mas aquela já não era uma discussão da qual eu gostaria de participar.

Após demasiada cautela — anexada às tentativas desjeitosas de manter a calma —, redigi algo sucinto e sem muitos enfeites, visando, sobretudo, não ser tão raso ao ponto de deixar lacunas e, também, não tão extenso para tomar muito do seu tempo.

Em suma, acabou assim:

Eu:

Boa tarde!

Antes de tudo, quem fala é o Jimin, o garoto do Jude's e do Festival de Verão.

Espero não ser inconveniente ao enviar essa mensagem, mas pensei que era o certo a se fazer depois de duas semanas sem dar notícias.

Peço desculpas pelo sumiço! Fiquei com medo de te dar mais trabalho e por isso resisti tanto à ideia de chamar, embora agora acredite que te deva agradecimentos sinceros e um pedido de perdão pelo meu paradeiro.

Não quero tomar seu tempo, então só queria dizer que sou muito grato e que foi bom te ver de novo. Me desculpe por não ter te cumprimentado devidamente mais cedo.

E espero que esse não seja o número errado, hehe.

Ó, céus. Minha barriga já estava borbulhando.

Joguei o celular para um canto remoto do colchão e enfiei o travesseiro no rosto. Soou como um clichê hollywoodiano naquelas cenas tão características de romances baratos dos anos 90. Gritos abafados e borboletas inquietas: uma mistura boba de juventude, amor e cenários tropicais, essas coisinhas tão doces e simplórias que sempre teriam uma carga nostálgica atemporal, eterna entre as gerações.

Para ser sincero, não sabia o que viria depois. Não sabia o que fazer quando uma resposta viesse e se viesse. Todos os assuntos que tangenciavam Jeon Jungkook se ramificavam numa teia interminável de rumos inexatos nos quais, por livre e espontânea impulsão, eu me colocava ainda que ciente de possíveis consequências. Contos marítimos de piratas enfeitiçados pelo desejo se assemelhavam muito à minha relação com ele, pois tal como afundavam no mar aqueles compenetrados no canto da sereia, meu destino não parecia tão diferente quando JK precisava de tão pouco para me tirar dos trilhos.

A surpresa de um ataque sempre se dá por meios vis, mas naquela instante, naquele verão, naquela cidade e naquele quarto, tudo foi  atípico, desde a definição fundamental de ataque até sua forma vital de perpetuação. O abate foi gentil, contrariando sua premissa geral de destruição, viabilizando-se por meio da graciosidade de um simples efeito sonoro feito pelo celular.

"Você tem novas mensagens de Jungkook hyung".

E foi o suficiente para que o universo inteiro entrasse em colapso.

Conseguindo tropeçar na minha própria cama, estive à beira de entrar em pânico ao tentar desbloquear meu celular inúmeras vezes e falhar em absolutamente todas elas. Meus dedos escorregadios e o nervosismo agudo me renderam mais trinta segundos de espera por conta do limite de tentativas, como se todo meu corpo já não estivesse em estado de síncope e fosse justo agravar os sintomas de ansiedade crônica.

Com o chat finalmente aberto, olhei para as letrinhas brilhantes na tela como se toda minha vida dependesse daquilo, como se o equilíbrio das paixões por si só estivesse naquelas palavras:

Jungkook hyung:

Ora, ora.

Se não é o dono do sapatinho de cristal e moço cujo gato comeu a língua por duas semanas, hein?

Haha, brincadeira. Boa tarde, Cinderela.

Não se preocupe, não foi inconveniente mandar mensagem. Eu mesmo mandaria se tivesse seu número, mas meu cérebro derreteu depois de tanta cerveja e esqueci de te pedir durante a festa.

Não precisa pedir desculpas. Você não tinha e continua sem ter obrigação de me dar satisfações. Eu só fiquei preocupado, para ser sincero.

De qualquer forma, também peço desculpas por não ter te cumprimentado na academia. Fiquei muito... surpreso? Acho que não esperava te encontrar numa situação como aquela, haha.

E não, não é o número errado, embora minha foto de perfil seja minha gata e não eu (ela é mais bonita e agradável de olhar).

Ele.

Ele. Ele. Ele.

Repuxadas aos seus respectivos limites, as extremidades dos meus lábios arrebentariam se meu sorriso aumentasse. Era como estar na quinta série novamente e revisitar todo tipo de memória bonita; a euforia implacável que só fazia crescer, crescer e crescer sem quaisquer precedentes à proporção de anestesiar temores.

Os receios infundados, àquela altura, soaram ainda mais tolos do que antes; talvez fosse o choque de realidade ligado à ideia de que tudo na cabeça ansiosa se arquiteta em moldes desproporcionais e aterrorizantes, completamente diferente de como as coisas de fato são ou se apresentam. No fim, Jungkook não estava — ou ao menos não parecia — chateado, apenas casual, polido e gentil, seus trejeitos essenciais e de efeitos inegavelmente acalentadores.

Eu:

Ah, oi! Não pensei que responderia tão cedo, kkkkk

Sobre hoje, não tem problema! Percebi que você estava cuidando daquele menininho, não quis interferir

Sua gatinha é linda! Eu amo, amo, amo gatos!

Jungkook hyung:

Meu expediente acabou justamente quando você enviou mensagem, haha. Por isso respondi rápido.

É, um dos meus alunos se machucou na aula. Foi a primeira vez desde que comecei a trabalhar, fiquei um pouco assustado, mas passou.

Temos algo em comum, aliás. Também amo gatos.

Eu:

Tenho dois gatinhos, hehe. Bartosh e Sofia, meus bebês

Mas, puxa, o garotinho ficou bem? Nem vi o desfecho TT


Jungkook hyung:

Ficou, sim. O joelho deslocou, mas voltou ao lugar no mesmo instante. É doloroso, ainda assim. Por isso a choradeira.

Eu:

Você agiu muito bem, hyung. Fico feliz que ele esteja melhor

E me desculpa de novo por não ter dito nada. Acho que foi um combo entre o susto e o medo de te atrapalhar.

Jungkook hyung:

Você pede muitas desculpas, não é, Cindy?

Já disse que tudo bem. Aliás, o cara do seu lado parecia prestes a me morder se eu ousasse falar alguma coisa.

Presumo que seja seu namorado.

Eu tinha me esquecido totalmente de Kyuhyun. O assunto fluía de maneira tão natural que quase dispensei a ocorrência da troca mortal de olhares.

Eu:

Ah, sim. Era meu namorado...

Kyuhyun é um pouco temperamental :(


Jungkook hyung:

Sim, eu sei bem


Eu:

Vocês se conhecem?


Resolvi me atrever ao perguntar, torcendo para não soar muito intrometido. Jungkook demorou mais que o usual para responder, mas logo soltou:

Jungkook hyung:

Há quanto tempo vocês namoram?

Eu:

Hm... dois anos e alguns meses.

Por quê?


Jungkook hyung:

Ah.

Então você não sabe.

No mesmo segundo, todos meus músculos tensionaram. Minha teoria estava certa. Havia muito sobre Kyuhyun e JK que eu não sabia e, exatamente como pensei, as problemáticas antecediam o início do namoro.

Eu:

Percebi o climão, mas... não entendi a razão.

Tem algo que eu deva saber?

Jungkook hyung:

Merda. Acabei de te deixar paranoico, não é? Haha

E não, não é nada alarmante. São só intrigas de alguns anos atrás que não foram devidamente resolvidas.

Não diz respeito a mim, também. Nunca conversei com seu namorado, só o conheço de vista.

Se ele não te contou, deve ser porque não acha importante.

Apesar de conhecê-lo há pouco mais que algumas semanas, confiava o bastante na palavra de Jungkook para não achar necessário insistir no assunto. Meu namorado era, afinal, o tipo de pessoa continuamente inserido em confusões e não haveria estranheza alguma na descoberta de uma nova controvérsia. Samanda, longe de ter dimensões territoriais e populacionais semelhantes às de uma metrópole, contava com essa particularidade própria de cidades menores: a estruturação favorável para que quase todos os habitantes conhecessem uns aos outros. Nesse sentido, imaginar que Jungkook e seus amigos já houvessem tido contato com Kyuhyun não parecia tão surreal. A possibilidade era bastante razoável, na verdade.

Oficialmente desapegado do intuito de esmiuçar a questão, retornei ao que efetivamente importava: JK. Embora estender aquela conversa não fosse o propósito inicial, o desenrolar espontâneo frutificou alegrias demais para simplesmente frearmos ali. Longos minutos de mensagens trocadas fizeram daquele fim de tarde o recorte feliz dentre um dia majoritariamente ruim.

Para mim, conversar por mensagens seria sempre mais fácil do que projetar a voz e fazer contato visual. Quem sabe fosse essa a real incitação por detrás da minha desenvoltura para dialogar virtualmente, dado o quão solto e desinibido consegui me postar em somente alguns minutos de conversa, e isso tomando por crucial a afabilidade de Jungkook que, sem embargos, responsabilizava-se pela tarefa de permitir que me comportasse assim.

Algo muito intrínseco à sua personalidade me fazia perceber a expressão intermitente de um intelecto vivaz e muito sólido. A singularidade da mistura entre a conduta terna e uma inteligência notável o tornava nessa figura especialmente atraente e fascinante. Jeon Jungkook era, ao mesmo tempo, um homem lindo e um ser humano ridiculamente virtuoso; parecia saber de tudo um pouco e era plenamente capaz de esvaziar qualquer tópico de conversa imaginável.

Não vi o tempo passar enquanto falávamos sobre mais coisas do que sequer fui capaz de numerar. Desde sua gatinha — cujo nome havia recém descoberto ser Makla — até uma exposição entusiasmada sobre obras literárias, os assuntos nunca ficavam chatos. A cada segundo, eu só aparentava estar mais e mais absorto na sua lábia perversamente instigante, babando por quaisquer fossem os temas sobre os quais quisesse discorrer desde que nunca mais parasse de falar.

Jungkook hyung:

Desculpa a demora pra responder. Estava dirigindo.

Eu:

Tudo bem!

Chegou em segurança onde queria?

Jungkook hyung:

Todos meus órgãos estão no lugar, aparentemente.

Tudo sob controle.

Aliás, Cindy, pode me responder uma pergunta rápida?

Eu:

Não, não posso.

Brincadeira, kkkkkkkk

O que é?

Jungkook hyung:


Uh, olha só, o Polly Pocket ficou arisco, hahaha.

Hm, o que será? Você tem alguma hipótese?

Eu:

Eu? Não faço ideia, hyung

Não sou tão inteligente e perspicaz quanto você T_T

Jungkook hyung:

Te acho muito mais inteligente do que eu jamais poderia ser quando tinha dezoito anos.

E sobre a pergunta, espero que não me ache um esquisitão maníaco, mas lá vai:

Você está sozinho?

Bang. Meu ar automaticamente se comprimiu, entalado na garganta.

Eu:

Minha irmã está aqui em casa, mas meus pais estão fora

Jungkook hyung:

E quanto ao idiota?

Digo, seu namorado. :p

Eu:

Hyung! KKKK

O Kyu foi pra casa mais cedo

Por que a pergunta?


Silêncio.

Pelo que pareceram alguns minutos, não houve resposta, ainda que a sinalização "online" permanecesse intacta no topo do chat. Comecei a ficar nervoso, não por pensar que ele poderia ser algum "maníaco" como havia sugerido, mas por não entender exatamente o que estava acontecendo.

Afoito, encarei as mensagens de forma ininterrupta antes de, num ímpeto, sentir o coração pular com o som estridente e já muito familiar que irrompeu subitamente. "Thank u, Next", ou, mais especificamente, meu toque de celular, vibrando à medida em que a nomenclatura conhecida pulsava na tela.

Jungkook.

Jungkook estava me ligando.

Sequer tive tempo para reagir, surtar ou me jogar na cama, apenas arrastei o círculo verde para cima e trouxe o celular à orelha antes que parasse de tocar. De olhos esbugalhados, ar preso e coração em pleno tumulto, limitei-me a eclodir quando o ouvi dizer:

Respondendo sua pergunta, Cindy... — O timbre ligeiramente rouco desmanchou-se em um risinho. — Olhe pela janela.

E assim, sob essa mesma deixa, foi quando surtei por completo.

Minhas pernas tremerem em cada milímetro do caminho breve que separava a cama da cortina azul. Era sensação de impotência junto à adrenalina corrosiva do anseio; intempérie iminente, prefácio daquilo que se sabe e, contrariamente, não se tem o menor conhecimento. Tão tímido e fraco havia sido meu toque ao ponto de sentir que o tecido da cortina desfarelaria entre os dedos, mas a sede por sanar o tormento da curiosidade já era mais forte que todo o resto; por isso, e por saber secretamente o que veria, olhei pela janela com o celular colado ao rosto.

E lá estava.

Como pensei que estaria, como desejei que estivesse e, acima de tudo, como — em quaisquer circunstâncias — deveria estar: ali, exclusivamente ali, dentre todos os outros lugares no mundo.

Próximo a mim.

Jeon Jungkook: uma dúzia exata de letras justapostas de modo a enunciar o acervo terreno da erudição divina. O decreto sagrado em sua carcaça mortal. Sua condição de sujeito concreto na realidade material e histórica soava tão absurda quanto a tentativa de corporificar um fenômeno metafísico; eu o via, podia tocá-lo, mas por toda eternidade estaria fadado ao medo de perdê-lo, à fobia de, em seu lugar, constatar um simples e inerte vazio.

Sempre que o via, sempre que era suficientemente abençoado para testemunhar ouro e esmeralda se casarem dentro do universo em seus olhos, sentia como se fosse minha primeira vez saboreando a vida. A vitalidade que nem ao menos imaginava hospedar ressurgia e uma enxurrada de dopamina ocupava cada espaço que pudesse ocupar. Meu sangue fervia, o coração pulava e, subitamente, Park Jimin era somente uma pilha de bem-estar junto à quintessência do que realmente significava pertencer.

Dali, já podia vislumbrar cada um dos adornos prateados em seus dedos e a forma como segurava o celular próximo à orelha. O então conjunto de vestimentas — completamente oposto ao uniforme esportivo do ECES — se parecia muito mais com o que meus olhos estavam acostumados a associá-lo: preto, preto e mais preto, camiseta larga, calças rasgadas e coturnos imponentes. Os cabelos lisos, agora soltos e ligeiramente molhados, formavam ondulações suaves e quase imperceptíveis que conferiam um charme familiar ao rosto corado.

Estava etéreo, embora terreno; postava-se como o pseudoproblema que facilmente arrasaria corações e acabaria com a sua vida, encostado ao carro preto no qual apoderava-se de cada espaço na cidade como um pedaço legitimamente seu. Um reinado particular.

Surpresa — murmurou e pude ouvir sua voz ressoar grave pelo telefone ao que um sorriso indecente lhe tomava os lábios.

— Hyung, você... — Ouvindo daquela forma, eu poderia jurar que minha voz falharia a qualquer segundo.

Jungkook me encarou, dessa vez com um ar divertido, as risadinhas baixas insinuando o quanto achava graça na minha falta de jeito. Após provavelmente perceber que eu não completaria minha fala, desligou a chamada e guardou o celular, endireitando-se para estender dois dedos e curvá-los de maneira a sinalizar um chamado.

— Não vai vir atender sua visita, Polly? — E permaneceu daquele modo, sugerindo um convite implícito no sorriso profano

Abracadabra.

Não foram necessários mais que alguns segundos para que eu praticamente me materializasse na porta de casa. Direcionei-me à parede lateral — a mesma da janela pela qual o vira — e logo pude encontrá-lo parcialmente sentado sobre o capô do carro, brincando com as joias em seus dedos à medida em que me acompanhava com os olhos.

Já perto o bastante para mergulhar no aroma típico de morango — com notas suaves de hortelã ao fundo —, congelei no espaço-tempo e dediquei questionáveis segundos apenas numa admiração retraída do cenário, coligando todas aquelas peças para finalmente me dar conta de que, no fim, não era um sonho.

Ele estava mesmo ali e não era um produto ardiloso das minhas quimeras.

— Sua carinha de espanto torna muito difícil distinguir se está positivamente surpreso ou só muito horrorizado. — O polegar demoradamente arrastado no lábio inferior tomou parte da minha atenção, logo fisgada pelos dentes protuberantes que sempre me faziam lembrar de um coelho. — Fiz mal em vir?

— O quê? Não! Eu, é que... na verdade, hã... — E, como usual, o mesmo sacrifício para elaborar uma oração sequer. — Eu só estou... surpreso. De um modo positivo, cla-claro!

— Mesmo? — Suspendeu uma das sobrancelhas conforme sorria, cruzando os braços à frente do corpo enquanto me apontava com o queixo. — Você parece nervoso.

Ele sabia.

Sabia que mexia comigo.

Descolando o corpo do automóvel lustroso, a lentidão em seus movimentos aparentava ser diretamente condicionada por sua natureza sorrateira. Tão sutil e delicadamente deslizou para perto de mim que não foi — e nem nunca seria — possível dissuadir seus instintos predadores a me livrarem da servidão ao bem-querer. Dependia pura e essencialmente de sua clemência, preso por correntes de algodão — estimava meu fado tanto quanto zelava por permanecer em seu domínio.

Jungkook tinha um corpo quente, ainda que, em virtude da palidez, parecesse gelado à distância. Eu havia estudado física térmica na escola, mas nunca tinha parado para pensar em toda a dinâmica da troca de calores. Ali, aquelas regras de equiparação faziam todo sentido; quase podia sentir a energia do seu corpo fervente transitando para mim e era bom, muito bom, como se estivesse, lentamente, sendo acolhido por um abraço invisível.

— Não queria te assustar. Me desculpa — pediu com a voz mansa e gentil. — Só vim me redimir pela falta de educação mais cedo. Deveria ter te cumprimentado ou ao menos evitado ficar de climão com seu namorado. Mas, em minha defesa... — Tocou meu nariz e, naquele hábito adorável, apertou a ponta, rindo em sequência. — Foi ele quem começou.

— Hyung... — Um tanto hipnotizado demais para dizer muitas coisas, só pude murmurar ao que esboçava um sorriso tímido. — Não precisava se redimir. Fui eu o único entre nós a vacilar na hora de manter contato e ser minimamente agradecido. Eu... peço perdão, de verdade. E sobre o Kyu... — Não consegui evitar soltar um riso, balançando a cabeça. — Ele é um bobão às vezes. Me desculpa por isso.

— Ele estava com ciúmes. — Jungkook riu e pendeu a cabeça ligeiramente ao lado enquanto lambia os lábios. — Talvez tenha se sentido ameaçado, já que, bem... — Seus cílios subiram e a íris de mel me atravessou. — Eu não fui muito discreto em olhar para o namorado bonito dele. — E então, antes que eu me dispusesse a colapsar, simplesmente completou com severo cinismo, levantando as mãos em rendição: — Oops. Acontece.

Afiada: Jeon Jungkook era de classe perigosa e convenientemente afiada, dono de uma conduta elegante que por vezes o tornava letal. A bel-prazer, parecia expressar sua desdém por Kyuhyun de modo incrivelmente inteligente e sorrateiro, como num jogo silencioso de sarcasmo e cortadas mortais.

Até para manifestar desprezo, seu autocontrole possuía uma vitalícia excepcional. A sensação era de não haver nada e nem ninguém que pudesse tirá-lo do sério; somente a ideia em si mesma já soava fundamentalmente inconcebível.

— De toda forma, acho que seria um tanto estranho passar por aqui só pra te encher de palavras. — Com os próprios dedos, penteou os cabelos úmidos para trás. — Gestos costumam falar muito mais e são minha preferência para "desculpas" válidas.

Ainda oscilando entre a presente colocação e a forma como tinha indiretamente admitido que me encarava na sala do ECES, demorei para entender o que queria dizer. Chacoalhei a cabeça e voltei a encará-lo, sem assimilar sua proposição.

— Mas... de que gesto você está falando? — Franzi o cenho em completa confusão. — Está se referindo ao fato de ter vindo aqui?

— Ah, não, não... — Abanou as mãos alvas no ar e riu, negando com a cabeça. — Vim aqui porque sou um homem simples que particularmente detesta conversar por mensagens e não se dá bem com tecnologia. Achei mais justo e conveniente tratar disso pessoalmente.

— Oh — emiti, surpreso, só então me lembrando do fato de que não o achara em rede social alguma. — Então... o que é?

JK se espreguiçou, logo levando uma das mãos à nuca. Por pouco não captei sua próxima fala; os bíceps de músculos evidentes pareciam especialmente firmes e hipnotizantes por baixo daquelas tatuagens, munidas de potencial para abstrair atenções.

— Não sou um cara de festas, lembro de ter dito isso no dia do meu aniversário — recordou, estalando o pescoço à proporção em que terminava de alongar os braços. — Mas há exceções, é claro. Namjoon fez aniversário semana passada e combinamos de reunir algumas pessoas da antiga universidade dele e os caras do EVIL pra comemorar. Acontece que ele é professor e escravo do Estado — ironizou, sorrindo. — E, por isso, ficou atolado de coisas pra fazer e nem pôde aparecer na festinha. Adiamos a social e, bem, vai rolar hoje, na praia. Hoseok cuidou de bancar as bebidas, comida, limpeza; enfim, essas burocracias necessárias pra evitar sujar nosso lindo litoral, é claro. Então, meio que já me arrumando pra ir enquanto conversava contigo por mensagens, eu pensei... — Agora, um jogo suave de cintura o fez aproximar-se um pouco mais, descendo os olhos até sabe-se lá onde e subindo-os mais rápido do que pude acompanhar. — Pensei em te chamar para ir junto como forma de redimir minha falta de educação mais cedo, talvez, ou... como uma desculpa esfarrapada e meio cafajeste de te levar pra sair. — Deu um piscadela, mostrando a língua em tom brincalhão. — Mas essa parte fica entre nós, não quero problemas com o Zangado da Branca de Neve, ele já deve estar putinho demais comigo.

Um golpe. Aquela soma de informações atadas à minha rés confiança não poderia resultar em nada mais do que uma pancada no meu discernimento e, logo, prejuízo na aptidão de apreender noções. De um lado, Jungkook e suas investidas ambíguas; aquela atmosfera instigante e sensual que me fazia questionar no que diabos ele poderia estar pensando ou quais suas reais intenções. Era uma obviedade escancarada do seu apreço por entrelinhas, o hábito exótico de sutilmente incitar para então esquivar. Em contrapartida, havia o convite honesto e muito doce que, embora inocente, presumia mais uma festa sem conhecimento de Kyuhyun, portanto, o desencadeamento de medo e hesitação para, como grand finale, causar angústia, notória no modo como meu rosto feliz e aceso gradativamente se apagou.

Não era como se quisesse dispensá-lo; não era, sobretudo, como se minha vontade importasse. Consequências estavam postas à prova e eu já havia tido o bastante de amargor naquelas últimas semanas. Restava avaliar: lascas de falso triunfo valiam o sofrimento posterior? Pôr-me ao risco de mais lágrimas e noites tormentosas valia se fosse por ele?

— O convite é incrível, hyung — confessei muito honestamente, fitando o chão por temer encará-lo. — Mas é tão complicado, sabe? Sair sem meu namorado, ainda mais depois daquela festa...

— Tudo bem. — Impedindo que eu continuasse, senti o aconchego inerente à sua voz me alcançar. — Eu entendo e imagino que seja muito mais complexo do que eu posso enxergar. É apenas um convite, não se sinta pressionado a aceitar ou me dar satisfações.

— Mas... puxa. — Suspirei, descansando os ombros em derrota. — Você até veio aqui. Você... você até veio me dizer isso pessoalmente. Isso é tão rude da minha parte, não é? Além de...

— Jimin. — E, mais uma vez, vedou a possibilidade de que eu continuasse me culpando conforme pousou a palma quente contra a curvatura do meu pescoço. — Eu vim porque quis. Você não pediu que eu viesse, também não me disse se poderia sair ou se estava minimamente a fim. Fiz o convite por livre e espontânea vontade, com minha conta em risco de receber um "não".

— Mas...

Shhh... — murmurou com o indicador livre pressionando os lábios, o tronco sutilmente inclinado para que pudesse atrair minha atenção. — Tá tudo bem. Sou um garoto crescido, como você precisamente deve ter notado. Você não vai magoar meus pobres sentimentos se disser que não pode ou que não quer ir a uma festa comigo. — Sua constatação veio acompanhada de um riso divertido, verdadeiramente relaxado quanto à situação. — Vai precisar de mais que isso pra quebrar meu coração, gatinho.

Eis, afinal, a evidência da fala de Hoseok: Jeon Jungkook era um anjo. Calmo, doce, e, ao contrário de muitos, extremamente paciente com a minha condição. Ele não se irritava com as desculpas compulsórias, não se afastava quando percebia meu desaire, não me tratava como uma aberração vulnerável e idiota. Ele era... gentil, descontraído, sempre tão preocupado e diligente em fazer com que não me sentisse pressionado a nada.

Pela primeira vez em tanto tempo, sentia finalmente que alguém além de Taehyung e minha família estava, de fato, prezando pela minha felicidade.

Pensei em dezenas de maneiras pelas quais poderia retribuir o zelo, desde agradecimentos verbais até um convite bobo para tomar achocolatado dentro de casa. Estava disposto a não permanecer passivo e estático naquela relação, mas fui privado da mera elaboração de um plano; subitamente, o celular que eu nem lembrava segurar começou a tocar. No visor, o codinome do problema, pulsando em letras brilhantes.

"Amor está te ligando".

Numa reação involuntária, subi com os olhos até Jungkook, cujo rosto expressava tanta confusão quanto o meu próprio. Ambos os inícios de suas sobrancelhas grossas franziram, quase como se tentasse filtrar o que acontecia.

— É ele — esclareci, engolindo em seco. — O Kyu.

O caramelo esverdeado retraiu-se instantaneamente nos raios de suas íris. Com o maxilar visivelmente travado e um semblante enigmático, Jungkook apenas respondeu:

— Pode atender, se quiser. Eu espero.

Trêmulo, hesitante e sem saber exatamente o que esperar, foi o que fiz: atender ao telefone.

Despencar no nervosismo durante o prelúdio — e duração — de uma chamada com Kyuhyun era praticamente um ritual. Não havia uma única vez em que nossas ligações me poupavam da sensação de conflito iminente; era como se todo e qualquer contato tivesse um rumo fatal, sem misericórdia, com o bônus de resultados ainda piores caso eu cogitasse evitá-lo.

Por experiência e conhecimento aguçado referente à gravidade de evadir, aceitei sua chamada sem muitos embargos. Logo, a voz grave e familiar dançou pelos meus ouvidos imediatamente.

Amor — ele chamou, sem esperar para saber se eu estava realmente ouvindo. A voz soava tranquila e, surpreendentemente, despida de irritação. — Cinema, agora. Topa? Já 'tô indo aí. Fiquei entediado feito o inferno aqui em casa, mas não tinha festa alguma pra ir. Meio da semana, sabe? Nunca tem.

— Cinema? Agora? — Arregalei os olhos e busquei o amparo de Jungkook, que permanecia em silêncio logo à frente. — Eu não sei, quer dizer...

Você tem algo melhor que isso pra fazer?Na mosca. Como se desvendasse meu tom de voz, Kyuhyun adquiriu um timbre instantaneamente mais ácido. — Se tiver, é só dizer.

Meus lábios tremiam.

O que aconteceria se mencionasse a festa? Ou se ao menos desse a entender que havia algo melhor do que assistir aos filmes chatos dos catálogos de Samanda? As possibilidades múltiplas tinham fins múltiplos e nenhum deles parecia muito agradável — com efeito, Kyuhyun e seu temperamento instável implicavam, em todo caso, na imprevisibilidade total de reação. Se responderia bem, mal ou simplesmente indiferente, não sabia, e talvez houvesse de jamais saber, pois era de praxe que me submetesse às suas vontades para evitar conflitos.

A memória fresca de luta contra a inércia, no entanto, pipocou como num lapso célere de consciência. Ser passivo e conivente era o ápice da minha atuação como pessoa? De alguma forma, eu sabia que sim — a própria conjuntura me entregava e era impossível fugir da depreciação por muito tempo. O que havia, acima de tudo, eram gatilhos esporádicos que despertavam o ânimo de agir e rebelar, como aquele nascido da vontade de retribuir ou apenas agradecer ativamente a gentileza de Jungkook.

Vigores passageiros; como drogas, orgasmos ou tão somente o verão.

Mas tamanho era o entusiasmo injetado por esses impulsos que, de repente, tudo parecia possível. Tocar o céu ou, quem sabe, colorir as nuvens; todo tipo de façanha impossível que abruptamente se tornava tão ou mais crível do que escrever um poema. Nesse sentido, por fim, como um vírus invasivo que fazia de mim sua esfera de proliferação, a presença contagiante de Jungkook ainda inflamava cada célula do meu corpo de modo a incitar uma ação, uma iniciativa. E então, recriado a partir de uma euforia momentânea, eu subitamente sentia que deveria tentar, que deveria ao menos pisar um único dedo fora da redoma cinza.

Foi alentado nessa impulsividade sem estimativa de possíveis estragos que enchi meus pulmões e, olhando para JK, decidi que ali, somente ali e naquele instante, eu não seria apenas um peso morto.

— Tem uma festa, sim. — Em uma tentativa de ser firme, pontuei para que Kyuhyun ouvisse com clareza. — É aniversário de um dos membros do EVIL, aquela banda que andei ouvindo nas últimas semanas.

Silêncio.

Jungkook, que até então se mostrava impassível, descruzou os braços e atentou-se um pouco mais.

E o que tem? Você é próximo deles? — Após minutos de silêncio, meu namorado voltou a se pronunciar. — Foi algum deles que te chamou?

Touché.

— Não é bem assim... — Embora o ânimo já começasse a esvair e o medo estivesse próximo de tomar posse, insisti: — Eles são amigos do Taehyung e acabaram tendo, hã, contato comigo. Então, eu meio que... fui convidado.

Mais silêncio.

O pânico me acometeu mais rápido do que pensei que viria quando não ouvi sua voz. No fim, eu ainda era o mesmo Park Jimin medroso, apesar de estar sob efeito da adrenalina.

— Mas tudo bem se não quiser ir! Eu imagino que você não vá se sentir confortável com gente que não conhece... — menti, fingindo não ter notado toda a tensão entre ele e Jungkook. — Nós podemos ir ao cinema. Eu só estava sugerindo...

Não. — Mas, por último, para minha descabida surpresa e ausência completa de reações que traduzissem o sentimento, ele completou: — Tudo bem. Nós vamos nessa festa.

O quê?

— Nós... o quê? — Precisei me conter para não gritar, acabando por assustar Jungkook, cuja mão segurei instintivamente pelo susto. — Ir... na festa? Digo, na festa do EVIL?

Embora demorando alguns segundos a mais para responder e soando duvidosamente remoto, Kyuhyun assegurou:

É. Na festa do... — Uma longa pausa se instalou e quase pude vislumbrá-lo respirando fundo, como se pensasse em algo que eu não entendia. — Do EVIL. Nós vamos. Eu quero estar lá.

Estranheza, o sentimento mais condizente ao que me assombrava naquele instante. Nenhum esforço adicional me conferiu o mínimo de familiaridade com a súbita "compreensão" de Kyuhyun, pois não somente escapava à sua índole como requeria um sentido inexistente na sua decisão por me acompanhar. Quaisquer fossem suas intrigas não solucionadas no passado, por qual razão estava certo de comparecer em um ambiente onde acabaria por se atritar com alguém? Eu não conhecia quem e por que — Jungkook não tinha me dado muito mais que apenas a confirmação de que havia algo —, mas sabia que não era do seu feitio concordar com as minhas vontades, tampouco ao considerar um histórico conturbado.

— Amor, você tem certeza? — Eu ainda estava incrédulo demais para dispensar outra confirmação.

Tenho, oras. Vai perguntar mais quantas vezes? — Ele bufou do outro lado da linha e apenas encolhi os ombros. — Enfim, já estou a caminho. Vê se não me atrasa, é bom começar a se arrumar.

Desse modo, sem despedidas ou ao menos um "eu te amo", decretou o fim seco e gelado da chamada ao simplesmente desligar enquanto eu falava; um adendo claro de que não dava a mínima para possíveis respostas. Vivíamos na supremacia onde sua deliberação sempre seria o parecer final, nada de considerações que ousassem coletar minhas vontades para mera averiguação. Kyuhyun era seu próprio começo, meio e fim, partindo dele, por ele e para ele; um absolutista medieval autoproclamado sob os moldes de um namoro.

Nem fiz questão de ocultar o espanto no rosto, Jungkook era perspicaz e, pelo semblante sério, estava nítido que já havia cuidado de captar a situação. Abstraiu-se de dizer qualquer coisa por tempo indeterminado, limitou-se à observação silenciosa que o fazia parecer três vezes mais intimidante que o normal. Não saber o que ele pensava me aterrorizava, a quietude um tanto resoluta parecia muito mais perigosa do que qualquer manifestação exacerbada.

— Então... — Apenas nos encarávamos fixa e intensamente quando ele resolveu falar, prendendo o lábio inferior entre os dentes. — O Zangado resolveu te acompanhar, afinal?

— Sim... por incrível que pareça — respondi, pressionando a mandíbula. — Ele não costuma fazer isso. 'Tô um pouco... não sei, acho que perdido.

Jungkook riu baixinho, fechando os olhos enquanto balançava a cabeça negativamente.

— Não costuma fazer "isso" o quê? Sair com você? — Ergueu uma das sobrancelhas e olhou para o lado, desatando em um riso incrédulo. — Que cara idiota.

Eu concordava, mas não detinha coragem o suficiente para vocalizar quando não havia álcool dilacerando meu sangue.

— Bem, também estou surpreso. — Jungkook continuou à medida em que ajeitava sua postura. — Seu namorado não tem um histórico muito legal com a galera da festa, mas... — Praticamente morrendo no ar, sua fala parou. Como se repensasse o que diria, ele apenas deu de ombros e respirou fundo. — Bem, não é da minha conta.

Quis reforçar que estava tão confuso quanto ele; quis, aliás, confessar que dois anos de namoro não tinham sido o bastante para que eu compreendesse o comportamento instável de Kyuhyun. Quis dizer muitas coisas, vomitar muitos dos sentimentos soterrados na garganta, mas minha intuição quanto à festa sugeria fins tão desastrosos que me vi ocupado demais ruindo internamente para dizer algo a Jungkook.

A ansiedade indissociável ao mau pressentimento devorava a felicidade que outrora se fez imperante.

— Quer saber de uma coisa, Cindy? — Mas ele ainda estava ali, logo à frente, irradiando a natureza inibidora de males que tão brevemente tratava de afugentar meus demônios. Seu calor característico enleou cada pedaço do meu corpo como se anestesiasse o mal-estar e, logo, meus batimentos atenuaram, tranquilos. — Eu não sei bem o que seu namorado pretende, também devo confessar que, para ser honesto, não me importo. Talvez soe um tanto canalha dizer o que vou dizer agora, e eu sei bem que tenho um rostinho de problema muito favorável pra que você pense que sou um libertino cafajeste, mas... — Perto; novamente, ele estava tão perto que pude distinguir cada nuance de cor tingida nos lumes vibrantes. — Contanto que você esteja lá, honestamente, eu não dou uma foda pro seu namorado.

Fatality. Eu era dele.

Eu era de Jungkook e cada confissão secreta dançando para fora de seus lábios nefastos se transformava em um novo veredito da minha devoção. Eu era tão dele quanto o oxigênio do fogo, tão dele como quaisquer duplas interdependentes que em si mesmas acham a razão para ser. Puramente ser.

"A história de tudo que existe se detém à narração dos embates", ouvi dizer, e por vezes frustrei a possibilidade de examinar a colocação sob outras lentes. Não me importei com a história porque não me importava comigo mesmo, e o fascínio que move e sempre moveu corações não é nada mais do que ter pelo que lutar.

Mas ali, uau...

Ali, eu finalmente entendi.

Que se toda história deriva da luta e, naturalmente, toda luta de um motivo, eu escreveria sobre nós. Sangraria versos de libertação, vermelhos como o caos, só pelo capricho egoísta de eternizar um amor. Jungkook era meu motivo, meu primeiro passo, meu começo e fim. Nele, não havia nenhuma supremacia soberba — como em Kyuhyun e sua insolência —, apenas os reflexos de zelo e juventude que gradativamente rabiscavam um provável "nós"; incerto, distante, mas completamente possível.

— Eu fico feliz, hyung. — Meu sorriso foi dos mais genuínos e inteiramente sinceros que poderiam existir quando toquei timidamente seu tórax. — Fico feliz porque você também vai estar lá.

Abaixo do peito, senti seu coração acelerar.

— É? — murmurou, encarando-me com tanto afinco que me senti desfazer. Por cima da minha, pousou sua mão de modo a cobrir cada centímetro dos meus dedos. — Que bom. Você merece estar feliz

No segundo posterior, foi como se, embora separados pelos respectivos corpos, queimássemos em sintonia, atados pela reciprocidade. Era bom. Era indescritivelmente tão bom que nenhuma adversidade parecia capaz de nos manchar.

— Bem, preciso ir embora antes que sua carruagem chegue, Cinderela — Jungkook constatou e o percebi se afastar após alguns segundos trocando olhares. — Como eu disse, não quero problemas com o Zangado.

No fundo, eu sabia que aquele seria o momento fatídico de despedida; o triste instante em que tomávamos caminhos distintos sobre as dependências de Samanda. Suas partidas eram daquele tipo muito particular de dores que não se curam; a elucidação clássica de Bill Withers em "Ain't No Sunshine"  já tinha, com muito glamour, tratado desse destino natural à paixão, porque não havia sol quando ele partia, nem calor quando estava longe⁴. Apesar de conhecer o penar de um adeus, ainda carecia da resistência para normalizá-lo. Por isso, em toda e cada mísera vez que Jungkook fazia menção de partir, meu coração vociferava como se fosse a primeira vez.

— É, acho que... — Assisti à minha mão gradualmente deslizando pelo seu peito até que o contato fosse nulo. — Que é melhor você ir...

As joias prateadas nos seus dedos refletiram contra a luz do poste que acabava de acender. Através da palidez congênita, pude ver suas veias azuladas quando trouxe a mão até a ponta do meu nariz.

E, como sempre, apertou-a.

— Até mais, Cinderela. — Ouvir a enunciação da despedida era, decerto, muito pior que apenas prevê-la. O toque cálido logo se reduziu à mera lembrança e, sem demora, Jungkook se afastou. — Nos vemos na festa.

Só fui capaz de acenar com a cabeça, desamparado e sem norte,

— Até mais, Morang-digo, J-Jungkook! Quer dizer, hã... — Aos tropeços e engasgos, apertei os olhos de completa vergonha. Por que o apelido havia ressurgido na minha cabeça assim? — Hyung. Eu quis dizer hyung.

Ao que se virava para entrar no caro, parou no meio-fio, virando para que pudesse rir da minha confusão e soltar uma última piscadela por cima do ombro.

— Você sabe, não sabe, Jimin-ah? — O sorriso ladino preservou-se até que ele entrasse no carro e, descendo o vidro, apoiasse um dos braços na janela, tombando a cabeleira lisa de modo a cobrir parcialmente seus olhos. — Que a minha quedinha covarde por garotos bonitos de presilha dificilmente me deixaria ficar irritado ao ser chamado assim.

Strike.

Opa. Escapou. — Antes que eu me posicionasse, ele riu, mordendo de forma cruelmente lenta os lábios rubros e aproveitando minha total paralisação para finalizar, mostrando a língua como uma criancinha travessa: — Brincadeirinha. Não conte ao Zangado.

Eu quis rir, rir e explodir de excitação, euforia, deleite e amor. Quis rir porque estava tão nervoso que poderia derreter. Quis, sobretudo, dizer que Zangado algum da Branca de Neve seria capaz de privá-la de um príncipe, e que se me fosse dada a oportunidade, eu facilmente cederia à libertinagem de suas brincadeiras.

O som do motor irrompeu tão logo colocou o cinto de segurança. Dali, ainda conseguia sentir o aroma cítrico de morango e analisar o contraste curioso entre a delicadeza da fruta e o conjunto geral de seu estilo mundano, sensual e imponente. Das tatuagens às mechas tingidas, até mesmo da postura despojada às calças rasgadas, coturnos pretos e anéis espessos; Jeon Jungkook era epicentro dos prazeres hereges, a humanização pretensiosa de todos os pecados mais encantadores.

Blasfêmia. Ele era a blasfêmia ao mesmo tempo em que o próprio conceito de sagrado. Uma perpétua e viciosa contradição.

— Ah... mais uma coisa, Jimin-ah — chamou, a mão direita presa ao volante.

Para poder visualizá-lo melhor, inclinei meu corpo.

— Hm?

— É sobre o seu sapatinho de cristal. — Com o queixo, apontou para mim como se denotasse uma acusação. — Tenho um pedido pendente a respeito dele

Sapato de cristal? Do que ele estava falando?

— O que você...?

Contato — exprimiu, simples, olhando-me de baixo. — Dessa vez, já que você parece ter superado algumas barreiras... — Ao erguer ambas as sobrancelhas, um lampejo cadente atravessou seus olhos. — Por favor, mantenha contato. Cinderelas sempre deixam uma peça para trás, não? Portanto... — E assim, sorriu, subindo os ombros. — Acho justo pedir pela certeza de que posso falar com você outra vez. Se não for muito, é claro.

Lá estava: um repuxar tolo e imprudente de lábios. Um sorriso idiota e apaixonado que me roubou facilmente a face e o sustento. No peito, as batidas escandalosas quase por articular sua própria sinfonia.

Eu estava feliz.

Estava tão, tão feliz e ele não havia feito nada mais do que apenas pedir para que eu não sumisse, que não o afastasse de novo e de novo como vinha fazendo desde a noite do Jude's.

— Eu prometo manter contato. — Involuntariamente, estiquei meu dedo mínimo até ele, desejando oficializar aquela promessa. — De dedinho.

Parecendo um tanto surpreso, embora não menos gentil, sorriu abertamente ao esticar o mindinho e entrelaçar com o meu, subindo os olhos até que nossas íris se beijassem uma última vez naquele fim de tarde.

— Trato é trato, hm? — Fingiu estar sério quando tomamos distância novamente. Pousou os dedos ao redor do volante e, no fim, concluiu: — Estou indo, Cindy. Lembre-se de cumprir a promessa, ou serei obrigado a morder seu pé durante a noite.

— Assim não vale. — Gargalhei, cobrindo a boca.

— Sou um homem de palavra. Fique com medo. — Piscou e logo desfez a careta séria para dar lugar ao sorriso límpido e doce. Como parecer final, fixou os olhos na estrada à frente e, sem voltar a me encarar, disse: — Até mais tarde, gatinho.

E se foi.

Vislumbrar cada centímetro somado à distância crescente me causou, como todas as vezes, a apatia crua após momentos de intensa alegria. O carro preto parecia mais e mais remoto até que finalmente sumisse ao fim da rua e levasse, junto da carcaça metálica, o cheiro de morango e seu dono celeste. Fiquei ali, parado, vendo-o esmaecer na curva da esquina. Curiosamente, todavia, conservava aquele gesto simplório como se ainda o tivesse por perto; acima de tudo, a evidência escancarada de suas passagens marcantes e, majoritariamente, a certeza de que o veria de novo.

Um sorriso. A maior prova de sua presença sempre seria meu sorriso.

Era sete de julho: data sem especificações comemorativas ou razões particulares para ser considerada especial. O sol, a lua, mesmo o calor e o mar ainda permaneciam idênticos às gerações passadas. Nada havia mudado; nem um único grão de areia na praia de Samanda ou as míseras partículas de sal no oceano salgado. Nada. Absolutamente nada.

E mesmo assim, mesmo tão irrelevante naquela infinidade de existências, ainda que tão ínfimo e pequeno dentre o organismo daquela cidade, eu sentia como tudo estivesse diferente; como se aquela fosse minha primeira verdadeira chance de experimentar o mundo sob meu próprio arbítrio.

E a culpa era dele.

Naquele sete de julho de 2020, terça-feira, ao pôr do sol que tinha a cor dos seus olhos, a culpa foi toda e inteiramente dele. As razões elementares para que o universo estivesse do avesso e todas as galáxias tivessem congelado para dar vida à nova era; os calafrios indomáveis e as borboletas na barriga; o anseio, a paixão, a luta por liberdade e o primeiro empurrão vital à iniciativa.

Tudo isso era culpa dele, de Jeon Jungkook, e eu nunca, em todos aqueles dezoito anos de vida, poderia ser mais abençoado do fui naquela tarde.

Obrigado.

Obrigado por ter sido o vermelho fervente a tingir cada uma das minhas páginas cinza, Jungkook.

***

#MorangoCanhoto 🍓

[NOTAS]: IAI CARAIOOO, CURTIRO? ESPERO QUE SIM, fiquei com cagaço do capítulo se desinteressante, mas tô na fé de que vocês vão gostar um tiquinho KKKKKKK ENFIM, de toda forma, obrigada por ter lido até aqui! Se tu não me segue no twitter, te convido a seguir pq eu falo direto das fics por lá e to sempre dando algumas informações (e spoilers rsrs) sobre att. Também tem o bônus de assistir meus vídeos aleatórios, IRRA.

Mas é isso ae rapeize, máximo respeito e gratidão pelo carinho, vou esperar vcs lá na tag da fic pra ver todas as reações a respeito do cap, blz? APAREÇAM LÁ SENÃO VOU MORDER O DEDÃO DE VCS

REFERÊNCIAS:

1: Referência ao soneto 18 de Shakespeare.

2: Passagem de Shakespeare em Romeu e Julieta, ATO II, CENA VI.

3: Virtù e Fortuna são dois conceitos presentes nas obras de Maquiavel. A virtù é a capacidade de um governante de se adequar da melhor forma a qualquer situação, ou seja, à fortuna. A fortuna nada mais é que as eventualidades, os acontecimentos, destinos e ocorrências.

4: Trecho da música "Ain't No Sunshine" do Bill Withers.

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