Chào các bạn! Vì nhiều lý do từ nay Truyen2U chính thức đổi tên là Truyen247.Pro. Mong các bạn tiếp tục ủng hộ truy cập tên miền mới này nhé! Mãi yêu... ♥

01. O Cinza torna-se Vermelho.

"O cinza, então, torna-se no vermelho como a água há de virar vinho, na mudança drástica que todos anseiam durante toda a vida."


Samanda, 2020.

Jude's, 00h00.

— Este é o quinto, Jimin.

Eu sabia.

E as últimas duas horas marcavam o tempo necessário para que as doses ingeridas dilacerassem meu esôfago a cada sentença vocalizada pela figura ao lado. Muitas foram as paráfrases que cuspiu, um produto previsível do seu teatro, bancando o preocupado ao citar meus pais ou imitar a forma como me repreendiam para soar responsável e maduro, mesmo quando ambos sabíamos quão distorcidos eram seus valores e motivações para me fazer companhia em saídas de domingo.

Seria comovente se não o conhecesse há bons anos. Todo aquele espetáculo particular sobre como eu deveria parar de beber tanto era somente uma desculpa dentro do seu leque interminável de pretextos ridículos para começar uma confusão, sempre naquele complexo doentio de caçar motivos para me deixar sozinho e, no dia seguinte, encher minha caixa de mensagens com textos cansativos e munidos da mesma ladainha habitual, objetivando me atribuir a culpa por tudo de ruim que nos acontecia.

"Você é a causa de todos os pontos negativos do nosso namoro. Espero que saiba disso."

A íntegra daquele relacionamento era um ponto negativo.

O motivo da minha ingestão desenfreada de álcool tinha nome e sobrenome: Do Kyuhyun, meu namorado. Acumulando todo aquele tempo de relacionamento, nenhum de nós precisava estabelecer mais que um raciocínio simples para entender que minha compulsão alcoólica se dava pela incapacidade de permanecer sóbrio na presença de sua conduta abusiva, permeada por todos aqueles mecanismos de controle e psicologia reversa.

Há algum tempo incalculável, meu título de namorado rapidamente cedeu ao de posse. Sua companhia já não era agradável, seus beijos não me davam frio na barriga e sua mão na minha cintura não se configurava como nada além da forma mais viável de mostrar que me tinha, como um alerta tosco e soberbo para que outros caras mantivessem distância.

A razão para que eu ainda suportasse estar com ele era desconhecida. Nenhuma pessoa devidamente sã submeteria os próprios valores e sentimentos às dadas circunstâncias; ainda assim, lá estava Park Jimin, doando a si mesmo sem decifrar o porquê. Àquela altura do campeonato, a única conclusão lógica era a de eu buscava fazer com Kyuhyun o mesmo que fazia com todos os obstáculos da minha vida: empurrar com a barriga.

— Que porra, Jimin?! — Sua voz petulante chegava embolada aos meus tímpanos. — Vai tomar a sexta dose? Virou a porra de uma vagabunda irresponsável?

— Não fode, Kyu. — De petulância eu entendia bem, então virei a dita dose num único solavanco, chacoalhando a cabeça em resposta à ardência na garganta. Momentos de bebedeira eram os únicos onde eu tinha o mínimo de disposição para rebater suas constatações egoístas. — Se fosse para encher a porra do saco, era melhor nem ter vindo!

— E você viria como, idiota? De ônibus? — Ergueu a sobrancelha, prepotente. — Você sabe que precisa de mim para voltar. Não vai entrar no meu carro desse jeito.

— Que se foda a droga da sua lata-velha! — esbravejei, recheado da ousadia que originalmente não me pertencia, mas à manifestação do álcool no meu sangue. — Se ama tanto esse carro fodido, vai com ele pra bem longe de mim, seu pé no saco! Me esquece!

Dentro de poucos segundos, nossa pequena discussão se ramificava em cochichos paralelos por entre as mesas do Jude's, atraindo atenção indesejada. Ainda que ciente do show desnecessário, eu estava tão inerte pelos efeitos do álcool que não me restavam quantidades eficientes de neurônios funcionais para dar importância à plateia. Não era a primeira vez que passava por algo parecido — certamente não seria a última —, portanto, meu desejo momentâneo era que Kyuhyun sumisse junto de seu carro velho para um lugar bem longe de mim — algumas boas e generosas léguas marítimas, se me fosse permitido escolher.

Minha vida já estava suficientemente saturada com os malefícios inerentes à ansiedade, dispensar meu namorado de merda numa noite já fodida em essência era somente a cereja do bolo, nada mais que o habitual e nada menos do que o esperado para um domingo quente como aquele, dentro do contexto lamentável do que eu por vezes chamava de vida.

Kyuhyun foi mais rápido do que nas outras vezes. Cinco minutos de farpas e sua imagem virou somente um fantasma naquele banco marfim, evaporando junto da sua presença à medida que sentia meu corpo mais leve a cada centímetro contabilizado na distância entre nós. Ele tinha ido embora. Xingou por algum tempo e depois sumiu, para grande e ilustre alívio aos meus nervos e paciência escassa.

Soltei o ar que já imaginava ter retido durante as horas ao lado dele, afastando-me do balcão do bar com algumas cambaleadas de praxe. O momento de glória havia chegado, mas eu estava bêbado demais para aproveitá-lo perfeitamente; Kyuhyun partira, mas do que adiantava continuar ali quando eu mal conseguia contar os dedos da minha mão sem estimar números acima de dez? Não fazia o menor sentido. Aquela já era uma noite desperdiçada entrando para a minha coleção vitalícia de decepções, como de costume.

O objetivo, agora, era encontrar a porta de saída sem grandes problemas no caminho. Meus pulmões bradavam por ar puro, fora da atmosfera quente e abafada do Jude's, levando em consideração a chegada do verão e as massas quentes usualmente comparadas à suposta fornalha do inferno. Se já não havia qualquer lucro em permanecer ali dentro para assistir às cantorias mal articuladas dos cantores pós-meia-noite, minha prioridade seria respirar com dignidade, distante dos cochichos, calor e cantadas imbecis.

Pensei — e somente pensei — em notificar Taehyung sobre minha partida, considerando sua participação na organização de um evento que aconteceria daqui alguns minutos ou horas — meu senso de tempo já havia se perdido em algum lugar na terceira dose. Não me recordava se era uma banda, um stand-up daqueles de quinta categoria ou seja lá qual fosse o tipo de evento com que Taehyung costumava lidar, mas sabia que não estava com cabeça para continuar ali, tampouco me encontrava em condições de curtir qualquer coisa, então apenas deslizei por entre os corpos de pessoas aleatórias em cantos diversos do estabelecimento e — com algum senso de direção guardado nos últimos resquícios de racionalidade que eu tinha — abri a porta de saída com um empurrão mais forte do que o necessário.

Meus primeiros segundos em contato com a brisa marítima foram bons. Pouco à frente, a praia se estendia numa imensidão deslumbrante, mais deslumbrante do que meu cérebro embebedado podia suportar sem deixar-se engolir por sentimentos questionáveis, posto que olhar para a água espelhada do mar — dentro de uma paisagem tão idílica como aquela — me fazia questionar e refletir sobre coisas das quais eu costumava fugir.

Quer dizer, Samanda era bonita, não havia o que contestar acerca disso; sua costa marítima estava sempre brilhante, limpa e não cheirava mal. Foi considerada, sem oposições, a cidade litorânea mais encantadora do país, diferente da morbidez e da ausência de expressividade nos meus trejeitos, mesmo houvesse morado ali — próximo à praia — durante toda minha vida.

Um paraíso como aquele não tinha espaço para pessoas como eu; a sensação era sempre de uma falta de pertencimento enorme, como uma mancha cinza acidentalmente respingada num quadro colorido. Eu falhava em atingir as expectativas naturalmente impostas por um ambiente como aquele, também falhava em atingir todos as demais metas que me foram apresentadas durante a vida, fossem elas internas ou externas. Era como se não houvesse lugar para mim; nem em casa, na cidade ou dentro dos confins da minha própria cabeça.

Fiquei alguns minutos daquele modo, parado na calçada em plena madrugada, entretido nas formas engraçadas e distorcidas da lua refletida na água. As ondas que quebravam no mar pareciam sempre mais bonitas à noite, embora soassem igualmente tristes e solitárias. A madrugada na praia era o único momento em que me sentia parte daquela cidade, ainda que não como desejado. Envolvido por esse sentimento, tudo que fiz foi rir, bêbado e um tanto mole, gargalhando dos reflexos da lua como se eu mesmo já não fosse uma piada.

Após um período que não saberia calcular com precisão, dei-me conta do fato de que estava estático há mais tempo do que previsto. Pensei em Kyuhyun quando desbloqueei a tela do celular para verificar o horário, sabendo que a barra de notificações explodiria na manhã seguinte com inúmeras mensagens dele, todas carregadas de palavrões e argumentos falaciosos que buscariam me culpar pelo ocorrido no Jude's.

Bem, não importava mais; não era como se tivesse importado uma vez sequer, aliás — ou ao menos me esforçava em fingir que não.

De todo modo, eu precisava ir embora e essa era a única informação que parecia fazer algum sentido; o nível de álcool no meu sangue não dava indícios de que baixaria, então não houve surpresa quando cambaleei, tonto, prestes a me virar. Equilíbrio e coordenação motora eram duas coisas das quais eu carecia naquela noite, mas isso não foi uma preocupação quando girei meu tronco com uma velocidade muito maior do que a recomendada para um bêbado, visando voltar para dentro do Jude's com o único objetivo de avisar Taehyung que voltaria para casa.

Foi no momento de entrar novamente, no entanto, que uma colisão repentina ocorreu, vedando meu caminho conforme dava origem ao barulho inconfundível de algo batendo contra o chão. A rapidez com que o atrito se perpetuou não me deu qualquer abertura para saber no que havia esbarrado ou o que derrubei; minha única reação foi cambalear para trás, refém dos meus sentidos afetados pela bebida.

Fechei os olhos, esperando a dor no traseiro pela queda, mas não houve impacto ou sensação alguma além do calor nas minhas costas. Era um cara, sustentando praticamente toda minha estrutura corporal em um único braço como se todos meus quilos não passassem de pouquíssimas gramas, atuando como salvador da minha integridade física ao segurar meu tronco com mais firmeza do que qualquer decisão já tomada em toda minha vida.

— Ei — chamou, grave e profundo, obrigando-me a abrir os olhos pelo arrepio inevitável que rasgou minha espinha de uma só vez. — Tome mais cuidado. Você derrubou a minha guitarra.

Foi quando aconteceu.

Eu deveria me desculpar, dizer que sentia muito ou verbalizar alguma das infinitas formas que existiam de pedir perdão, mas desaprendi toda e qualquer palavra quando olhei para ele. O torpor pelo álcool era tolo e ínfimo perto daquele que me acometeu no instante em que os olhos de chocolate se tornaram a única verdade do mundo, cintilando como galáxias inteiras condensadas em dois globos castanhos.

De repente, todos meus devaneios se tornaram coadjuvantes. Coisas que segundos atrás se manifestavam como causa de grandes frustações, subitamente, consumiram-se em fogo, crepitando e morrendo em cinzas à medida em que se reduziam às suas respectivas insignificâncias, tão pequenas e irrelevantes quanto jamais pareceram desde que nasci. Diante dele, a briga com Kyuhyun já não soava tão ruim, e a noite não parecia desperdiçada. As ondas não eram tão tristes quanto pensei segundos atrás, e a vida, no todo, parecia tão bela como nunca esteve na história de Samanda.

Estava tudo igual, mas eu sabia, de algum jeito, que agora estava tudo diferente.

Alguma coisa aconteceu dentro de mim, algo que eu não entendia, uma palpitação estrangeira que, numa brevidade escandalosa, revitalizou todos meus sentidos mortos e soterrados pelos anos perdidos na morbidez sem fim. Nenhuma definição precisa e lógica tinha o necessário para explicar o que senti; na mesma proporção, palavras e teorias já criadas meramente comportavam a densidade da sua essência ainda desconhecida. Ele parecia uma música, uma sinfonia fantasiosa, mas eu não entendia o porquê. Podia sentir seus acordes, sua harmonia, seus tons e a melodia proibida, detentora do que eu sentia que precisava conhecer, dos meus desejos obscuros e remotos — até então escondidos — abruptamente despertados por uma simples troca de olhares.

— Eu... — Abri a boca mais uma vez, totalizando quatro tentativas de falar algo que simplesmente não saiu.

Enquanto uma pequena parte do meu cérebro buscava racionalizar os eventos, o resto dos meus neurônios pareciam infinitas vezes mais interessados no dono da voz macia, poucos centímetros longe de mim. Ele era muitas coisas, muitas palavras e definições bonitas transcritas num corpo só. Toda espécie de detalhe ridículo e irrelevante aos olhos humanos, nele, eram como elementos de exímia importância em uma composição artística quase etérea.

Foi a primeira vez que meu coração bateu tão forte. Foi a primeira vez, sobretudo, que meu coração bateu de verdade naqueles dezoito anos de vida.

Meu peito queimava; meus olhos, antes atraídos por cores suaves, efervesciam de paixão pela mecha vermelha na franja alheia, lustrosa e brilhante, destacando-se do resto dos fios, pretos como ébano. Todos em Samanda eram bronzeados, ostentando peles douradas de caramelo; ele, em contrapartida, parecia completamente fora da curva naquela palidez cegante, a pele tão leitosa e alva que poderia facilmente enrubescer ao toque. Seu nariz avantajado estava brevemente queimado, pintado com um rubor charmoso e típico de exposição excessiva ao sol; o formato do seu rosto, como um todo, tinha moldes simétricos, a derme imaculada me lembrava pinturas renascentistas gravadas em livros de história, aquelas que só vemos na escola ou na internet.

Ele era um perfeito anjo caído, com rosto gentil, olhos caóticos e boca profana.

— Algum problema? — Foi ele a se pronunciar, dessa vez. Meu corpo, ainda paralisado, estremeceu quando sua mão deslizou pelas minhas costas, afastando-se na sequência.

Em contrapartida às mil e uma hipóteses articuladas na minha mente — todas envolvendo gritos e violência —, o timbre dele permanecia sereno e estável, sem quaisquer alterações que denunciassem raiva ou descontentamento. Não houve escândalo ou confusão; ele apenas abaixou o próprio corpo, agarrando o instrumento — coberto pelo estojo — e voltando a ficar de pé, impassível e ridiculamente indiferente.

— Me desculpa — pedi numa voz quebrada e débil, uma mistura louca entre nervosismo e náusea. — Eu não queria derrubar o seu... Quer dizer, a sua, hm... guitarra.

Minhas pernas mal exerciam suas devidas funções quando ele endireitou a postura, mostrando-se inúmeras vezes mais alto à medida que colava os olhos nos meus, nenhum temor ou hesitação presentes na íris castanha. Touché. Meu coração disparou pela segunda vez na noite, rápido como um tiro.

— Não farei nenhum escândalo, se é isso que está pensando. — Ele riu baixo, entretido e melodioso, acalmando meus ânimos sem que eu precisasse dizer que estava tenso. — Foi sem querer, de qualquer modo. Não faria sentido arrumar uma confusão por algo tão idiota. — Terminou, simples. — Só tente prestar mais atenção nos arredores. Está tarde para andar sozinho por aí, gatinho. Nem todos são legais por esses lados.

Havia muito o que dizer, muito o que pensar e digerir, mas nada em mim estava funcionando com destreza naquele instante. Eram as bebidas, o estresse, o calor, mas principalmente a elevada tensão corporal ocasionada pela presença marcante dele. Era como prender a respiração e esperar por uma avalanche, algum fenômeno próximo e avassalador que não se sabe de onde vem ou por que vem. A sensação de caos iminente me deixava instigado, como se o mundo pudesse explodir e virar do avesso sem antes permitir um próximo passo.

Eu soube, a partir disso, que seu cheiro de morango, brincos de prata e sorriso sacana eram tudo que eu precisava achar sem antes saber que procurava.

Somente quando ele deu as costas para mim, segurando o estojo da guitarra nas costas, pude notar as inúmeras tatuagens no braço esquerdo, todas pintadas com a mesma pigmentação vermelha da mecha. Não era um vermelho gritante, como o de anúncios publicitários e ofertas de mercado; era o vermelho do vinho e do sangue: perceptíveis, mas sorrateiros.

Não soube identificar formas exatas nos desenhos da sua pele, pois antes mesmo que pudesse elaborar alguma frase que fizesse sentido para agradecer sua ajuda, ele sumiu para dentro do Jude's, numa sequência de aparição e partida tão célere e curiosa que me fez pensar, durante alguns segundos, sobre a possibilidade de toda aquela situação ter sido somente uma alucinação momentânea. A hipótese de delírio pela embriaguez não era dispensável, mas eu sabia, lá no fundo, que a sensação deixada era real demais para uma mera ilusão.

Era verdade. Ele era real, de carne, osso, mecha vermelha, tatuagens bonitas e palidez cegante; mais real que aquilo, somente o fato de que, agora, encontrava-se dentro do lugar que desejei abandonar alguns minutos antes de topar com seu instrumento, criando uma cadeia mental de ocorrências que me fez constatar o óbvio.

Taehyung; evento organizado; guitarra; garoto tatuado e Jude's.

E então, magicamente, recordei.

Durante todo o mês anterior, Taehyung só sabia comentar sobre a performance de uma banda famosa com quem andava negociando para apresentar no Jude's naquele domingo. Conectando as informações — com a dificuldade natural de um bêbado —, não demorou para que as coisas começassem a tomar encaixe na minha mente.

A guitarra, as tatuagens, até a camiseta dos Beatles e as calças rasgadas; tudo naquele garoto gritava o evidente: ele era guitarrista da banda que tocaria no Jude's naquela noite.

Sem estudar minhas motivações, entrei no estabelecimento novamente, mas, dessa vez, sem pretensão de falar com Taehyung. Hipnotizado por alguma força imaginária, obedeci aos impulsos que sussurravam — no canto mais remoto do meu consciente — que eu precisava vê-lo novamente. Os tons escarlates da sua mecha me assombravam como fantasmas tormentosos, causando aquela sede, aquela vontade, aquele desejo infindável de, só por mais um segundo, poder sentir meu coração bater de novo, do modo como bateu perto dele.

Por fim, resolvi entrar, despido do sentimento corrosivo que Kyuhyun antes deixara para me ver definhar, sozinho. Em questão de segundos, estava lá dentro mais uma vez, mas não era por Taehyung ou pela obrigação de sair de casa, tampouco por Kyuhyun ou pelo nosso namoro falido; era pelo garoto da mecha vermelha, dono do aroma de morango e do sorriso proibido.

Já acomodado no primeiro banco ao lado do bar, aguardei ansioso pela hora em que a programação começaria, batendo com o pé contra a madeira do balcão como uma criança inquieta. Com o pouco dinheiro que ainda me restava, pedi uma garrafa d'água para atenuar a embriaguez, determinado a não derrubar o instrumento de mais ninguém.

Cinco minutos foram mais que suficiente para Taehyung aparecer subitamente ao meu lado, sorrindo de orelha a orelha, completamente deslumbrante naquela jaqueta de couro sintético e cabelos cinza.

— Onde você estava? Pensei que tivesse ido embora. — Seu braço gigante passou por cima dos meus ombros e segundos depois eu estava espremido no seu aperto. — Kyuhyun sempre arruma um jeito de te estressar o bastante para que me deixe sozinho em todos os rolês.

— Não faço por mal, você sabe — comentei, resmungando para que me largasse antes que meus ossos quebrassem. — Nós brigamos. Eu tinha ido lá fora respirar um ar, pensei em ir embora, mas...

— Mas...? — Ergueu a sobrancelha.

— Mas... — Vi o cara mais bonito da Terra e resolvi voltar. — Queria assistir à banda.

— Mesmo? Desde quando você gosta tanto assim de rock? — Taehyung me conhecia muito bem, era bastante improvável que acreditasse na minha ladainha, considerando quão patético sempre fui como mentiroso. Ainda assim, sustentei seu olhar, confiante. — Certo, não vou perguntar a razão. Deve estar cansado de dar explicações para o seu namorado de araque.

— Obrigado. — Suspirei, abraçando-o pelo alívio de não precisar articular argumentos ou histórias sobre o que exatamente me motivava a estar ali.

— Já está bêbado, Jimin? — Taehyung riu, acariciando meu cabelo. — Vou te perdoar porque sei que Kyu é insuportável, mas isso não muda o fato de que você precisa parar de beber tanto.

 Taehyung, não aja como meu pai, por favor... 

— Eu te amo. Não estrague seu fígado por causa de homem, apenas termine com ele, oras! — Suas soluções sempre pareciam muito mais simples quando faladas, embora fossem impossíveis se eu sequer pensasse em colocá-las em prática. — Jimin... Você está fodendo contigo e com teu emocional por causa desse cara.

— Taehyung, não agora. Por favor — pedi, respirando fundo, sentindo meu estômago girar. — Eu não quero falar sobre ele, pensar nele ou ouvir dele. Vou acabar vomitando.

— Não 'tô duvidando. — Riu, concordando com a cabeça. — Certo, assunto sobre Você-Sabe-Quem encerrado. Não está mais aqui quem falou.

O incrível sobre Taehyung era como ele se preocupava na mesma proporção em que sabia quando parar. Ele estava certo sobre Kyuhyun e todo o resto, mas compreendia que aquele não era o momento para discorrer sobre o assunto, bem como entendia que nenhum dos seus conselhos seria absorvido enquanto eu estivesse alcoolizado.

Conversamos por pouco tempo antes que ele fosse para outro canto com um moço alto e bonito. Ofereceu uma carona para casa, mas eu garanti que ele não deveria se preocupar e menti ao dizer que chamaria um Uber quando o show acabasse. Não era do meu feitio estragar suas noites, e ainda que insistisse, culparia a mim mesmo para o resto da eternidade se ousasse envolvê-lo nos meus problemas ou fazê-lo de babá. Taehyung não merecia dar assistência ao amigo irresponsável e sozinho; ele merecia dançar, sorrir e se divertir, longe da minha apatia contagiosa. 

Ali fiquei, portanto, balançando minhas pernas minúsculas à espera do espetáculo. O palco estava bonito e iluminado por luzes com espectro rubro — tons de vermelho pareciam me perseguir na última hora —, a bateria e o pedestal para microfone já estavam dispostos sobre o que parecia ser um piso de borracha, ao passo que alguns funcionários  ajustavam coisas aqui e ali nas caixas de som.

Não muito tempo depois, as luzes de todo o resto do estabelecimento se apagaram, restando somente o brilho vermelho e um tanto diabólico criado pela iluminação do palco. Um rapaz baixo, magro e cheio de tatuagens entrou pela porta dos bastidores, sentando-se atrás da bateria, seguido de mais dois. Eram todos incrivelmente bonitos, desde o baterista até o garoto alto e robusto acompanhado de um outro com sorriso grande e corpo esguio. Os assobios entre a plateia começaram antes de qualquer música ser emitida, evidenciando a fama da banda e o fato de que eu parecia ser o único ali dentro sem nunca ter escutado aqueles rapazes.

Foi quando ele entrou.

E como se já não esperasse pela sua aparição, meu coração tomou-a como inédita, ou como se, ainda naquela noite, não houvesse ficado a centímetros de beijá-lo quando me segurou na porta do Jude's. Eu sabia que ele estaria ali, naquele palco, mas estar ciente disso não me isentou de prender a respiração quando projetou-se próximo ao microfone, ceifando toda e qualquer possibilidade de tirar meus olhos daquele sorriso travesso, cuidadosamente esculpido pelas mãos do Diabo com fins cruéis de sedução.

— Boa noite. Conforme a tradição da banda, seguiremos com a apresentação dos membros antes de darmos início às músicas. — Sua voz mansa e profunda ecoou por cada canto do recinto, nublando meus sentidos. — À minha esquerda, Jung Hoseok toca guitarra e faz a segunda voz. — Sorriu, apontando com a cabeça para o membro em questão. — À minha direita, RM, nosso baixista. Atrás, nosso baterista, Min Yoongi. — A cada integrante apresentado, as palmas estalavam com fervor. Arrastando os dentes pelo lábio inferior, rindo baixo naquele timbre atraente, o garoto da mecha vermelha fechou os olhos, segurando o microfone à medida em que o tirava do pedestal. — Sou guitarrista e vocalista principal. JK, à sua disposição. — JK. Era uma sigla para um nome?

Encarei a guitarra vermelha próxima ao seu corpo, suspensa por uma alça preta. Havia a gravura "JK" nela, em baixo relevo, junto dos demais adesivos colados no instrumento.

— Nós somos o EVIL. — Sorriu, continuando a apresentação. — Tocamos indie rock, rock de garagem e essas paradas. Todas as músicas são autorais e de nossa humilde produção. — Riu, colocando o microfone no pedestal novamente e segurando a guitarra com as mãos. — Espero que curtam o show.

Antes que a música começasse, pude notar que sua guitarra estava, literalmente, ao contrário; quer dizer, o braço do instrumento não estava virado para o lado convencional, como era o caso de Hoseok e RM, respectivamente guitarrista e baixista. Eu só tinha visto algo parecido em... Paul McCartney? E Kurt Cobain, talvez. Não era fã de rock, tampouco entendia de música, mas sabia que era um tanto incomum achar musicistas que tocassem com a mão esquerda. Ele era canhoto, talvez? Tocava tudo ao contrário?

Não tive tempo para divagar sobre o tópico, a música começou logo na sequência, inibindo os questionamentos inúteis que eu costumava fazer quando estava bêbado. Minha atenção, agora, tinha ponto fixo e demarcado; o rosto de JK, o vocalista bonito e enigmático cuja guitarra derrubei mais cedo. Seus olhos estavam fechados, a aura marcante e intensa proliferando-se em toda aquela magnitude, impedindo qualquer alma daquele lugar de desviar o foco dele e somente dele. Era um imã, um astro de luz autêntica. Não foi difícil entender que o talento era nato; a voz mansa e simultaneamente firme era um diluvio de informações, veiculadas perfeitamente na melodia da música e naquele timbre mágico. Eu soube, no mesmo instante, que ele tinha nascido para aquilo.

JK não era bom no que fazia; ele era, definitivamente, muitos níveis acima disso. Era difícil não sucumbir ao seu feitiço quando sua voz ricochetava flamejante em todas as paredes, quente e brilhante, completamente afinada. A confiança, a postura, a conduta dominante que adotava em cima daquele palco eram convites irrecusáveis para uma paixão de verão, daquelas de perder o fôlego e madrugar sob sonhos lúcidos. Se todos os filmes antigos de romances adolescentes fossem refletidos em um prisma, seus espectros seriam ele, a quintessência de personagens fictícios cujo amor é desejado por todo jovem sonhador.

Ele parecia muito certo e muito errado, o contraste perfeito entre o deslumbrante e proibido. JK era o conjunto de tudo que mais fascina, a sensação gostosa de amar sem temer e a lamúria infinita daquilo que se deseja intensamente e não se pode ter.¹

À medida em que as músicas passavam, descobri a mim mesmo como um novo fã de indie rock. A banda era incrível, todos os integrantes possuíam talento e, dentre as músicas apresentadas, nenhuma decepcionou. O EVIL tinha fôlego, além de uma presença de palco incomparável; os aplausos e assovios prévios ao show, de repente, estavam mais do que explicados.

Não deu outra; tudo o que fiz foi ficar ali, hipnotizado, escutando as músicas com os olhos presos no vocalista. Meu bom senso jamais permitiria que ficasse olhando tão fixamente para alguém, mas meu filtro mental de vergonha na cara tinha se despedido muito antes daquele show começar, em algum momento perto da quarta ou quinta dose de álcool. A manhã seguinte me aguardava com um prato cheio de ressaca e arrependimento por secá-lo tão descaradamente, mas enquanto o sol não dava o ar de sua graça, eu permaneceria ali, bêbado, babando na pessoa mais bonita na qual meus olhos já haviam pousado.

Quando o show acabou e a figura sublime de JK sumiu para os bastidores ao som de muitos elogios, palmas e assobios, tomei o resto de água da garrafa, inserido num curto momento de reflexão acerca dos últimos ocorridos. Uma noite terrível com meu namorado idiota tinha se tornado, de repente, uma experiência maluca de descoberta, paixão e calafrios constantes.

Era estranho pensar que todo o êxtase vivenciado naquelas poucas horas tinha uma única origem, embutida em duas letras solitárias: JK. Eu poderia mentir e colocar a culpa no álcool pelo pane em que entrei quando o vi pela primeira vez, da mesma forma, poderia fingir que não senti as coisas que senti, ou dizer que não desejei o que desejei. Embora estivesse munido de todas aquelas desculpas, eu sabia, dentro de mim, que aquele garoto era... algo. Não entendia o quê, nem por quê. Carecia de certezas, mas contraditoriamente, não possuía qualquer vontade de tê-las.

De modo curioso, bastava-me apenas senti-lo sem entendê-lo.

Aquele cenário pensativo perdurou por mais tempo do que consegui contar. Por estar tão imerso nos meus próprios devaneios, não percebi todas as pessoas indo embora, e quando finalmente despertei, o Jude's estava praticamente vazio.

— Nós estamos fechando, senhor. — Um deles alertou, olhando-me com um quê de preocupação. Mal pude imaginar quantos vômitos ele deveria ter limpado de bêbados como eu, então lhe dei uma trégua e levantei, concordando com a cabeça e caminhando até a porta.

Ainda cambaleando, quase caí umas três ou quatro vezes até chegar do lado de fora. Próximo à porta, meu corpo começava a dar indícios de náusea, pois embora não houvesse bebido o bastante para perder a consciência, as doses tomadas tinham bastante potencial para me fazer vomitar. Eu esperava, ao menos, que pudesse chegar em casa sem botar todo meu jantar para fora.

Foi no momento de começar a andar, no entanto, que pela segunda vez na noite — meu recorde particular —, esbarrei em alguma coisa. Dessa vez, porém, era algo quente.

— Que sorte, hm? — Aquela voz. Meus pulmões estancaram. — Agora minha guitarra está em segurança.

Ele.

Quais eram as reais probabilidades daquela situação não ser fruto do meu imaginário? Foi exatamente o que pensei quando percebi meu tronco colado ao peitoral coberto pela camiseta dos Beatles, o cheiro inconfundível de morango acomodando-se no meu nariz sem devida permissão. Meu corpo travou. Vacilante, olhei para minhas mãos trêmulas e agarradas ao tecido escuro da sua jaqueta jeans cheia de bottons personalizados, caracterizando uma tentativa desesperada de buscar por equilíbrio.

Subi a visão somente para me sentir estupidamente minúsculo diante dos seus olhos pesados, os mesmos que encaravam meu rosto sem um resquício sequer de hesitação, como se tudo aquilo fosse fácil e comum para ele. A boca era bonita, mais bonita do que o permitido nos limites da minha sanidade. A vontade de me inclinar para um beijo veio forte, mas os gestos engessados pelo choque me deixaram paralisado.

— Você não parece bem — ele disse baixinho e risonho, levemente espantado quando precisou me segurar assim que uma tontura súbita surgiu e meu corpo cambaleou para trás. — Ei, ei, vai com calma. Não quer arrebentar sua coluna no chão, quer?

Eu... — Soltei num som estranho que transitava entre suspiro e miado, a voz fraca e um tanto desafinada. — Acho que 'tô apaixonado.

Eu não sabia que droga estava dizendo e de onde havia tirado coragem para vocalizar algo do tipo, mas JK riu, ou ao menos achei que estivesse rindo, posta minha dificuldade em distinguir muita coisa em meio à tontura.

— Certo...? — respondeu em tom de pergunta, talvez confuso e perdido com meu devaneio vergonhosamente verbalizado. Sua risada era amável, mas eu só conseguia prestar atenção no quanto aquela pintinha debaixo dos lábios apresentava-se como uma completa injustiça comigo e com meu coração.

Era como uma manchinha de chocolate eternizada na sua pele.

— Por você. Estou apaixonado por você. — Ri como um idiota, bêbado demais para sentir vergonha de mim mesmo ou das merdas que estava falando a um desconhecido.

— Hm... ok...? — Dessa vez ele soou divertido, como se tivesse percebido que não deveria levar o que eu dizia a sério. Estávamos em pé na porta do Jude's, encarando um ao outro dentro de uma bolha ilusória, presos a nós mesmos. — Agradeço a preferência, mas é duvidoso vindo de alguém tão bêbado.

— Por que eu mentiria? — Coloquei as mãos na cintura, birrento, pagando o mico de quase cair mais uma vez. — Estou apaixonado por você. Muito.

— Entendi. — Concordou, sorrindo, muito entretido com a situação. — E isso é bom?

— Nah... — balbuciei, risonho. — Eu namoro um idiota, nunca conseguiria namorar alguém como você.

— Ah, é? E por que não termina com esse idiota? — Agora eu sabia que ele sorria, porque fiquei bons segundos babando nos dentes brancos e ligeiramente protuberantes da frente. Lembravam um coelhinho.

Os olhos dele eram brilhantes, tão brilhantes que pareciam iluminar tudo que antes me pareceu tão ilógico. A íris escura me dava a certeza de coisas que eu não entendia, além de um sentimento quente e fervoroso que me salpicava no estômago toda vez que o castanho dos seus olhos refletia sob a luz dos postes.

— Sabe aquele ditado de que aceitamos o amor que acreditamos merecer?² Acho que é algo assim. — Recobrei parte dos sentidos e dei de ombros, sem pensar que estava literalmente desabafando sobre minha vida medíocre a alguém que sequer sabia meu nome.

— Você parece conformado demais para alguém comprometido que acabou de se declarar a um desconhecido. — Sua risada era a coisa mais bonita que eu já tinha ouvido em tempos. De algum jeito muito bizarro, ele parecia me colorir. — Não te daria mais do que vinte anos. Parece muito jovem, não seja tão pessimista.

— Fiz dezoito faz uns meses.

— Viu? Sou mais velho que você e não sou tão ranzinza. — Segurou-me pelos ombros antes que estilhaçasse meus ossos no chão. Seu toque era suave e delicado, apesar das mãos quentes e fortes. — Também não bebo dessa forma. Você é bem precoce, hein?

— Você não parece tão velho.

— Quantos anos acha que eu tenho? — questionou, divertido.

— Hm... Dezoito! Dezenove, talvez — deduzi, norteando-me pelos traços joviais.

Ddaeng. Errado. — Riu. — Tenho vinte e um, quase vinte e dois. — Ele colocou a mecha vermelha atrás da orelha, mostrando os brincos de prata e os piercings na cartilagem. — Agora... Seria legal se você voltasse para casa. Veio acompanhado de alguém?

— Meu amigo tá trepando, e meu namorado... Bem, ele é um canalha. — Cruzei os braços, bufando. — Eu voltarei sozinho, mesmo.

— Sem nem conseguir ficar de pé? Não é uma ideia muito inteligente. — Ele estava certo, mas eu não ligava suficiente para minha própria segurança ao ponto de chamar alguém para vir me buscar. — Há alguém para quem você possa ligar?

— Não! Não, por favor... — Meu timbre quebrou pelo desespero. Não queria interromper a noite de ninguém. Meus pais não estavam na cidade, minha irmã tampouco, meu irmão não morava conosco e Taehyung estava transando. Kyuhyun sequer era uma opção. — Eu não tenho ninguém. Só... me deixa voltar sozinho.

JK mordeu o lábio ao me analisar com cuidado, parecendo processar as informações. Não era minha intenção dar trabalho para ele ou qualquer outra pessoa, muito menos me vitimizar de modo que estimulasse algum sentimento de pena ali dentro. Subitamente, uma sensação ruim dançou no pé da barriga, mas não era náusea.

— Posso dar uma carona, se quiser. — Ele passou a mão nos cabelos. O comprimento dos fios era relativamente grande, batendo no queixo e dando um charme especial ao formato do seu rosto. — Não que seja recomendável aceitar esse tipo de coisa de estranhos, mas seria igualmente perigoso andar por aí nesse estado. Quer dizer, ao menos que você queira se ralar inteiro antes mesmo de virar aquela esquina.

— O que é você, hm? Algum tipo de príncipe encantado que surge em momentos de apuros para salvar o indefeso? — perguntei, erguendo a sobrancelha.

— Talvez. Que tal deixar seu sapatinho de cristal comigo? — Brincou, tornando tudo mil vezes mais leve. — Só posso garantir que não sou o lobo mau ou uma bruxa, mas cabe a você decidir se acredita, Cinderela.

Talvez eu estivesse tão habituado a ser inferiorizado por alguém que dizia me amar que me sentia estranho quando eram gentis e descontraídos comigo. Nunca ninguém além dos meus amigos tinha me trazido tamanha sensação de pertencimento, e foi quando me peguei questionando se, de algum jeito, eu não poderia voltar no tempo e me apaixonar por alguém como JK antes de me envolver com Kyuhyun.

— Não precisa fazer isso. Não tenho dinheiro para te dar — respondi, fazendo questão de frisar a ideia de que ele não tinha qualquer obrigação de me levar. — Quer dizer, você nem me conhece... Não mereço sua gentileza.

— Gentileza precisa ser merecida? — Aquilo me pegou de surpresa. Ele permaneceu neutro, sério quanto ao que dizia. — Não costumo ser gentil pensando se merecem ou não. É apenas natural.

Precisei de alguns segundos para me recuperar, pensando que tinha pisado na bola com ele. Todavia, antes que meu cérebro começasse a arquitetar milhões de paranoias, JK sorriu, calando as vozes na minha cabeça que insistiam em dizer que eu havia estragado tudo.

— Sobre o dinheiro: não esquenta. — Piscou. — Já fico satisfeito se não derrubar minha filha de novo.

Ele chamava a guitarra de filha, e aquilo não poderia soar mais fofo do que soou.

— Você é realmente um príncipe, não é? — perguntei retoricamente, sorrindo num impulso gostoso e acomodado na certeza de que meus olhos brilhavam toda vez que olhava para ele. — Um príncipe vermelho.

— Príncipe vermelho? — Ergueu a sobrancelha, curioso. — É um nome muito nobre para minha pouca dignidade.

— É um nome bonito para uma pessoa bonita. Faz total sentido para mim — expliquei, sem muito me preocupar se estava dizendo coisas toscas ou não.

Para mim, a palavra "sorriso" não possuía, até então, qualquer definição tão nobre quanto a convencional. Surpreendi-me, entretanto, quando linhas curtas adornaram o canto de seus olhos escuros, estreitos sob os cílios, fragilizando essa definição tão facilmente como um dia foi criada. Havia uma mágica singular naquele olhar expressivo, coberto por entrelinhas apaixonantes e igualmente confusas. Eu subitamente entendi, sem necessidade de pensar tanto, que olhos sorridentes agora eram os meus prediletos dentre todos.

— Príncipe Vermelho... — comentou despretensiosamente, levantando o braço recheado de pulseiras metálicas, afastando a franja dos olhos. — Criativo. Talvez seja o álcool, mas prefiro acreditar que você é genuinamente genial.

— Claro que sou! — Eu sabia que não, mas afirmava com a convicção de alguém que acredita no próprio potencial. — A bebida só deu uma calibrada.

— Sei. — Riu, levando o indicador até a boca enquanto cutucava os próprios lábios, hábito notável desde que passei a observá-lo com mais atenção. — Mas e então, Cinderela, aceita a carona?

— Eu tenho nome, Jeiquei — debochei, dando ênfase no seu nome artístico por uma razão desconhecida. — É Jimin, não "Cinderela".

— Entendi, Cinderela.

— Ei!

Ele riu novamente, inteiramente gracioso naquele sorriso de coelho. Era fascinante perceber a transição sutil entre suas múltiplas facetas, todas elas cativantes, desde a mais intrigante até a mais leve e gentil, todas gravadas num único ser humano complexo e bonito que, em tempo recorde, despertou todo tipo de borboleta adormecida no pé do meu estômago, como naquelas descrições clichês de romances literários que estranhamente faziam total sentido quando o assunto era ele.

— Saquei, então é assim que você se chama. — Bagunçou os fios ondulados, só então fazendo-me perceber que, além das pulseiras, ele parecia gostar de anéis. — Nome nada mal, Cinderela.

— Você me odeia? — questionei, emburrado.

Nah. É só que você fica muito fofo quando me contesta, Jimin-ah.

Meu nome nunca tinha soado tão ridiculamente bonito na boca de alguém.

— E qual o seu nome, afinal? "JK" não é alguma espécie de marca? — Cruzei os braços e o desafiei, indignado por revelar meu nome sem que tivesse o direito de saber o seu.

— Meu nome? — Prendeu o lábio inferior nos dentes, fingindo pensar, somente para me olhar em seguida e lançar um sorriso cafajeste, numa harmonia perfeita com a boca desenhada.  — Segredo.

— Ah, qual é? — Bati os pés como uma criança mimada, vendo-o começar a andar. — Ei! Para onde está indo, Príncipe Vermelho? Não me deixe sozinho!

— Para minha carruagem, Cinderela. Meu carro, para ser específico. — Pontuou, parando em frente a um carro preto que parecia muito mais caro do que minha casa e todas minhas economias juntas. — Já decidiu se vai querer a carona? Está ficando tarde, é perigoso permanecer na rua.

Ponderei por alguns segundos, estático na calçada. A voz da minha mãe ecoava por cima dos meus ombros, todas as vezes em que reforçava os perigos ligados às caronas oferecidas por estranhos. Pela lógica, o próximo passo seria recusar e continuar andando, atribuindo o mínimo de honra aos ensinamentos tradicionais que prezavam pela minha segurança individual.

Minha escolha, no entanto, foi caminhar pelas linhas tortas da infâmia, longe de qualquer prudência.

Pisquei os olhos e voilà: estava dentro do carro de um homem desconhecido, sentado no banco de couro sintético, vermelho como sangue. Minha inconsequência sem precedentes certamente renderia arrependimentos posteriores, mas ali, dentro dos meus limites comprometidos de consciência, aquela situação não poderia soar mais certa.

Pelo reflexo do retrovisor, observei JK guardar o instrumento no porta-malas, ajeitando sua tão amada filha em um outro estojo mais sólido e resistente. Entrou no carro pouco tempo depois, prestes a ajustar o cinto de segurança quando pousou os olhos em mim.

— Coloque o cinto, Cinderela — pediu, esperando uma resposta que não veio. Continuou atento até que percebesse meu mal-estar, notório na forma como repentinamente me calei. — O que foi? Está com vontade de vomitar?

— Um pouco — confessei à medida que fechava os olhos, tentando não ceder ao enjoo. — Acho que bebi demais...

— Você acha? — Estalou a língua, rindo. — Tudo bem, todos nós já fizemos isso alguma vez na vida.

E sem dizer mais nada, virou para mim, esticando os braços de modo que pudesse colocar o cinto de segurança da forma adequada sobre o meu tronco. Por um instante, a mal-estar sumiu; tudo o que restou foi aquele calor familiar do seu corpo quente, tão sutil e confortável que poderia me prender ali por dias e mais dias a fio.

Na mesma brevidade em que se aproximou, ele logo estava distante, as mãos presas no volante e seu calor evaporando lentamente do meu corpo. Desejei que ele estivesse perto outra vez, mas não fiz nada além de morder o lábio em descontentamento.

— Preciso saber seu endereço, gatinho. — O bombeamento regular do meu coração entrou em colapso ao captar a última palavra. — Espero que não esteja bêbado o bastante para esquecer onde mora.

Murmurei o endereço, ainda um pouco aéreo e derretido pela fala anterior. Era simplesmente muito injusto, injusto como precisava de tão pouco para me fazer queimar, injusto como lambia os lábios e transformava — sem qualquer entrave — um apelido bobo em algo tão doce. JK era uma injustiça, em essência. Uma injustiça bonita e encantadora.

Somente com o carro em movimento pude me atentar às minúcias interiores do veículo, constatando comigo mesmo a discrepância entre ele e os outros carros em que já estive.

— Seu carro... — comentei, cutucando o estofado e em seguida as janelas. — É o mais caro em que já entrei.

Ele me olhou de canto, sorrindo.

— Não é tão caro quanto parece. Eu só mandei fazer alguns ajustes no painel, tenho um amigo que mexe com essas coisas. — Continuou dirigindo, pressionando o botão que permitia a abertura do vidro ao seu lado. — Consegui esse garotão por um preço bacana, não teria grana suficiente para bancar o orçamento original.

— Filha, garotão... Você dá nomes para tudo, não é? — Virei o corpo e pressionei a bochecha no banco, uma posição simultaneamente estranha e perfeita para vê-lo com clareza.

— É, sempre me dizem isso — respondeu num tom risonho e nostálgico, quase como se lembrasse de algo engraçado. — Costumo dar nomes para todas as coisas com que estabeleço algum vínculo. É parte de um hábito que não entendo muito, para ser sincero. Talvez seja a forma de torná-las algo só meu.

Ao fim de frase, notei os pontos luminosos enfeitando sua íris. Todos seus detalhes eram imensuravelmente atraentes, desde a forma de falar até a simplória inação, quando estava somente ali, dirigindo, sem fazer absolutamente nada e, ao mesmo tempo, representando tantas sensações e cobiças estranhas que pela primeira vez me visitavam.

Através do vidro aberto ao seu lado, vi que percorríamos a avenida principal de Samanda, paralela à praia. O vento causado pela movimentação do carro, combinado à brisa marítima, brincava com as ondulações do seu cabelo ao misturar os fios tingidos por entre os naturais, jogando-os para trás conforme revelava a testa alheia.

Inúmeras coisas poderiam ser anexadas à lista dos seus belos detalhes, mas a mecha na franja soava especialmente instigante dentre todos seus componentes. Por que vermelho? E por que na franja? Foram as perguntas que fiz a mim mesmo, deparando-me com uma curiosidade repentina e fugaz que não parecia ter qualquer motivo plausível para existir.

Sob minha ótica, até aquele instante, o vermelho nunca se apresentou como uma tonalidade atrativa. Era indispensável, porém, confessar-me devoto da cor assim que seu caráter real me soou tão claro. Caos, era o que sintetizava o vermelho, em especial aqueles fios marcantes no cabelo de JK. A beleza do contraste nunca fez tanto sentido, pois a imensidão preta do resto dos fios era como o prelúdio da tempestade vermelha na franja. Lembrava um aviso, um alerta; ou, quem sabe, fosse somente um elemento estético, e eu estivesse apenas divagando demais sobre coisas que não entendia.

— Ei, JK — chamei, sorrindo.

Entre um segundo e outro, ele me olhou.

— Hm? — E logo já encarava a estrada novamente, concentrado.

— Essa mecha vermelha. — Apontei, desenhando círculos no ar para demarcar as arestas da mecha. — Ela me traz boas sensações. Gosto dela.

Um sorriso discreto pintou seus lábios.

— É um elogio e tanto — admitiu, rindo. Enrolou a mecha em questão no indicador esquerdo, soltando-a lentamente. — Obrigado, também gosto dela.

— Sua namorada gosta? — Quando percebi, as palavras já estavam soltas, dançando no ar como prova viva da minha completa falta de noção.

Encarando seu rosto com atenção, meus olhos chamejavam ansiosos. Aquilo, com toda certeza, não era da minha conta. Não éramos amigos, colegas, tampouco nos conhecíamos o suficiente para forçar aquele tipo de intimidade; mesmo assim, no entanto, lá estava eu, guiado pelas insanidades do meu corpo embebedado, depositando esperanças ilógicas em uma pergunta que sequer fazia sentido.

Estando em um relacionamento ou não, garotos como ele jamais ficariam comigo. E garotos como eu, na mesma proporção, estavam fadados a romances azedos.

— Isso foi uma tentativa de ser discreto para saber se estou solteiro? — JK perguntou, atirando-me para fora das controvérsias mentais. Não soube dizer se ele sorria, estava hipnotizado pelos fios rubros esvoaçados à frente dos seus olhos. — Não namoro, Jimin-ah, se essa é de fato sua dúvida.

— Oh... — Foi o único som que consegui emitir após o baque, absorvendo as informações ao mesmo tempo em que tentava inutilmente domar meu estômago borbulhante. — Desculpa.

— Pelo quê? — Ergueu a sobrancelha, apoiando um dos braços na janela do carro.

— Por ter feito essa pergunta idiota. — Moldei um bico manhoso nos lábios, emburrado comigo mesmo. — Eu só queria saber se tinha uma chance.

E lá íamos nós.

— Você não tinha dito que é comprometido, Cinderela? — Apesar do questionamento sério, percebi o tom divertido na sua voz. Ele parecia apreciar a comicidade no meu desaire.

— Eu sou, mas não é como se não pudesse desistir dele pelo seu amor, Príncipe Vermelho. — Pisquei, tosco, bêbado e igualmente enfeitiçado por ele.

Sua gargalhada ecoou por todo carro, destacando sua incredulidade.

— E o que te faz pensar que meu amor é melhor que o dele? — Girou o volante, fazendo uma curva suave para rua perpendicular à avenida da paia.

— O amor dele machuca. — Apertei os lábios, sentindo a cabeça latejar pela simples lembrança de Kyuhyun.

JK diminuiu a velocidade do carro, cortando por entre as ruas que já me eram familiares. Seus olhos chegaram até mim, firmes, apenas para que sua voz me atingisse na sequência, mansa e sincera:

Então não é amor.

Engoli em seco.

No fundo, eu sabia que ele estava certo.

— Quer saber de algo muito valioso, Jimin-ah? — Voltou a encarar o trajeto. — Não insira qualquer tipo de expectativa nas pessoas, principalmente em homens. A tendência é cair em decepções e se frustrar constantemente.

Com uma bagagem de vinte e um anos de vida, JK parecia saber muito mais do que aparentava. A tranquilidade nos seus trejeitos difundia uma maturidade cristalina, embora suas feições denotassem juventude. Era um charme, se me fosse permitido dizer; um charme só dele.

— Tem razão. — Sorri, fechando os olhos enquanto me remexia inquietamente no banco. — Mas eu não coloco expectativas no Kyu. O problema é justamente não ter nenhuma esperança nele. Acho que já somos um baaaaaaita fracasso. — A risada que ecoou foi mórbida e amarga, uma conformidade quase trágica acerca do meu futuro amoroso.

Alguns segundos — ou minutos, eu já não saberia identificar — de silêncio vieram à tona. O atrito dos pneus contra o asfalto foi a única sonoridade presente durante o tempo em que JK levou para fazer a curva até minha rua, estacionando frente ao número que murmurei mais cedo, pendurado na parede amarela da minha casa.

Era uma construção simples, mas adorável. Luxo nunca foi uma preferência de mamãe, ela gostava do nosso jardim humilde, do conforto básico e da tintura amarela que combinava com os girassóis na varanda. Eu não tinha opinião formada sobre a arquitetura do nosso lar, mas estava satisfeito com o que tinha e isso parecia bastar.

— Presumo que esse seja seu castelo, Cinderela. — A voz de JK me puxou à realidade, atraindo meus olhos e completa atenção. Mais uma vez, ele apoiou o braço na janela, segurando o volante em uma única mão. — Está entregue.

Alternei o olhar entre minha casa e seu rosto bonito, sentindo as pálpebras pesarem.

— Oh, você não me sequestrou. — Constatei em voz alta, rindo. — O Príncipe Vermelho é realmente bonzinho.

JK soltou um riso nasalado, fechando os olhos à medida que exibia os dentes branquinhos. Quando seus cílios levantaram, olhou-me sorrindo, belo e charmoso, sem pressa alguma de partir.

Você é muito fofo, Jimin-ah.

Não me custou, portanto, notar que todas as esperanças mortas em Kyuhyun estavam ali, vivas, palpitando nervosas no meu peito, mas em prol de outro alguém. E numa contradição curiosa, o conselho de JK sobre expectativas e decepções rapidamente esmaeceu, como uma lembrança longínqua que agora já não resguardava significado algum.

Ciente da ameaça iminente de frustração, disparei no escuro, arriscando a mim e aos meus sentimentos no instante em que admiti, preso nos olhos de chocolate e naqueles fios vermelhos, que todas minhas expectativas toscas e imprudentes de amor estavam depositadas nele, detentor do aroma de morango e dos orbes sorridentes.

Minhas expectativas estavam em JK, e eu sequer sabia seu verdadeiro nome.

— Acho que essa é nossa despedida — disse, mexendo no cabelo de forma que dividisse a mecha vermelha em duas, recaindo sobre as laterais do seu rosto.

— É... Acho que é — respondi num timbre quebrado, mordendo o lábio. — Esse é o momento em que eu saio do carro, entro em casa e você some, não é?

— Teoricamente, não sumo; só não estaremos mais no mesmo ambiente. — explicou, mais lógico do que eu esperava. — Mas, sim, resumidamente, é isso que acontece.

Nós nos encaramos, calados, conectados por uma cordinha imaginária que atava nossas atenções, impedindo-me de sair daquele carro. Era um adeus, e despedidas nunca soaram tão cruéis quanto naquele momento, frente à possibilidade de nunca mais vê-lo. A sensação era ácida, sufocante e incongruente. Por que eu temia a partida do que não conhecia? Por que razão, sobretudo, via-me tão murcho diante do afastamento de alguém cujo mundo era tão diferente do meu?

— Você... me acharia muito idiota se eu dissesse que não quero que vá embora? — Recheado de coragem e estupidez, soltei numa voz embargada e rouca. — Não faz o menor sentido, não é?

— Não te acho idiota, mas certamente acho que está bêbado demais para entender suas próprias vontades ou sequer saber se elas são reais. — JK tinha aquela voz mansa e macia que, mesmo quando estava indiretamente me dando um sermão por beber demais, ainda parecia doce e gentil. — Mesmo assim, devo admitir que você é perigosamente fofo e, com todo respeito, é uma pena que tenha namorado.

Instantaneamente, meu coração disparou.

— Uma pena...?

— É. — Desceu os olhos pelo meu rosto, pousando-os na minha boca somente para demorar bons segundos ali. — Uma tremenda pena.

E antes de me dar o tempo necessário para captar a mensagem ou sequer ligar os pontos, JK abriu a porta do carro e se retirou, naquele seu recém descoberto costume de incendiar um palheiro e deixar que tudo ao redor ruíssem em chamas, ardendo à sua mercê, à sua vontade e benevolência.

Mantive-me estático, quieto até perceber a porta ao meu lado abrir, revelando seu corpo atlético. Ele se inclinou o suficiente para me deixar nervoso, mais próximo do que o tolerável dentro dos parâmetros da minha plenitude. Seus olhos buscaram os meus quando ele esticou um dos braços para soltar meu cinto de segurança, acabando por tocar nossos troncos de forma breve e sutil.

Quando se afastou, eu me senti frio.

— Pode sair agora, Vossa Alteza. — Estendeu a mão esquerda ao passo que acomodava a direita sobre o abdômen, curvando-se como súdito de uma suposta realeza.

Inevitavelmente, eu sorri, gargalhando da sua pose. Ele era um príncipe, sem qualquer sombra de dúvidas.

— Você é o príncipe aqui, esqueceu, moranguinho? — Ergui a sobrancelha, sem nem perceber que havia atribuído um novo apelido a ele.

Toquei sua mão quentinha, aceitando a ajuda para sair do carro, posto que ainda me encontrava tonto e cambaleante.

— Sua genialidade para apelidos só me surpreende a cada minuto. — Puxou o braço com firmeza, trazendo meu corpo de encontro ao seu por conta do impulso que precisou para me deixar em pé. — Príncipe Vermelho, Moranguinho... Qual o próximo?

— Você me chama de Cinderela, é justo que também tenha apelidos — justifiquei, baixinho, minhas mãos involuntariamente tocando seu tórax.

JK ergueu o pulso cheio de pulseiras, aproximando a mão do meu rosto. Dedilhou meus fios soltos de cabelo, cutucando uma das presilhas que eu usava para evitar que a franja caísse nos olhos.

— Gostei das presilhas. Combinam com seu rosto. — Eu estava tão enfeitiçado em quão perto estávamos que mal ouvi o elogio. — Retiro o "Cinderela". Agora é Polly.

— Polly? — Perdido, indaguei.

— É. — Deu um peteleco na minha testa, rindo. — Pequeno, adorável e enfeitado como um bonequinho.

— Gostava mais do Cinderela... — murmurei, vendo-o dar um passo para trás e, consequentemente, fazer com que minhas mãos deslizassem pelo seu tronco até que nosso contato fosse nulo. — Polly parece nome daqueles cachorros de rico.

— Eu estava me referindo à boneca Polly, mas agora que mencionou, parece mesmo. — Gargalhou, soprando os poucos cabelos que atrapalhavam sua vista. — Bem, o significado não muda tanto. Pequeno, fofo e enfeitado... Como um cachorrinho de patricinha.

— Ei!

E foi como se a relevância de todo resto se perdesse no limbo, engolida por alguma força misteriosa ou entidade desconhecida que, boa e misericordiosa, concedia-me de bom grado aqueles segundos mágicos com JK, rindo à toa de apelidos idiotas e, só por um único instante em toda minha história, sentindo que a vida não era tão ruim quanto pareceu durante todos os outros anos.

A ideia de um adeus só se tornou mais espinhosa do que antes. Mesmo mergulhado em álcool, eu sabia que entrar naquela casa significaria voltar à estaca zero: dormir, acordar e retornar como um gato ferido aos braços negligentes de Kyuhyun. Tive medo do amanhã, medo do brilhar do sol que traria junto a si as mazelas da minha rotina, bem como o distanciamento dos calafrios e sentimentos gostosos vivenciados na noite incrível no Jude's.

— É um tanto rude não olhar as pessoas nos olhos enquanto elas falam com você, Polly. — Pela enésima vez na noite, JK me enlaçou para fora do meu palácio mental.

Mais rápido do que deveria, virei a cabeça na sua direção e fui agraciado com um súbito mal-estar.

— O quê? — perguntei, ainda um tanto desnorteado por ter perdido alguns segundos devaneando. A tontura pelo movimento brusco apenas contribuía para minha completa confusão. — O que disse?

— Eu estava dizendo que vou embora. Está tarde. — Apontou com a cabeça na direção do carro.

— Ah, certo... — Enquanto o respondia, minhas pálpebras conseguiram ficar ainda mais insustentáveis, pesadas ao que eu tentava manter os olhos abertos. — Eu...  entendi.

Esperei que começasse a caminhar, mas JK não moveu um único músculo. Ele me encarou por mais alguns segundos, estudando todo meu corpo como se quisesse ter a certeza de que não precisaria me socorrer a qualquer instante.

— Por que eu tenho a sensação de que, assim que eu virar as costas, você vai simplesmente desmaiar? — Estreitou os olhos, curvando-se o suficiente para ficar com o rosto na altura do meu. — Jimin-ah, estou falando com você.

Àquela altura, sua imagem estava reduzida ao borrão desbotado diante dos meus olhos nublados. Meu organismo, longamente maltratado pela massiva ingestão de álcool, começava a denunciar as consequências da minha irresponsabilidade: minha cabeça doía, o estômago girava e os músculos responsáveis por me manter em pé, por fim, amoleciam como manteiga.

Não precisei dizer nada, sequer olhar nos seus olhos; numa fração de segundo, JK já me tinha nos seus braços pela quinquagésima vez dentro de um período ridiculamente breve. Despido de quaisquer reações, apenas desfaleci, confiando minha total segurança àquele rapaz praticamente desconhecido 

— Tonto... — balbuciei mediante aqueles murmúrios inteligíveis. — Eu estou... meio tonto.

Com os braços robustos desenhados ao redor da minha cintura, JK firmou meu corpo, garantindo que me mantivesse em pé por meio da força que exercia ao me puxar para perto. Dotado de uma agilidade surpreendente, virou-me de modo a alcançar minhas pernas com braço direito, erguendo-me tão facilmente como ergueria um ínfimo saco de batatas.

Lá estava Park Jimin, enfim, totalmente debilitado e vulnerável no colo de um guitarrista que conhecia há algumas horas.

— Já me desculpo previamente por estar te tocando dessa forma. Parece a única maneira de não te deixar quebrar a cara ou ter um traumatismo craniano — comentou risonho, caminhando sem nenhuma dificuldade até a porta da minha casa, ainda me sustentando em ambos os braços. — Parece loucura perguntar isso a alguém que já perdeu qualquer noção do que está acontecendo, mas por respeito, é melhor questionar da mesma forma: pode me dar a chave da sua casa? Quer dizer, não vou passar mais que cinco minutos aí dentro, somente o estritamente necessário para garantir que está seguro na cama ao invés de inconsciente no chão.

Demorei alguns segundos para entender exatamente o que estava querendo dizer, mas assim que meu cérebro pareceu processar a situação, dei alguns tapas no bolso da minha calça, sem nenhum sucesso na tentativa de pegar a chave que estava ali dentro.

— Tudo bem, deixa que eu pego. — JK soltou minhas pernas com sutileza, sem nunca abandonar meu tronco. Respeitosamente, vasculhou o bolso indicado e puxou a pequena chave prateada com um chaveiro de estrela. — Prontinho, Cinderela.

Sem mais delongas, em movimentos rápidos e precisos, abriu a porta da minha casa ao mesmo tempo em que dava conta de continuar me segurando. Constatei comigo, no instante em que o observei adentrar a sala, que JK era um príncipe legítimo, e que todos os contos de fada, sem uma única tola exceção, inspiravam-se nele. Tive absoluta certeza da sua utopia, de que não havia, naquele imenso universo, alguém que representasse tão bem a irrealidade romântica de ficções juvenis.

Naquele ponto, eu sequer conseguia convencer a mim mesmo de que ele era real.

— Onde fica seu quarto? — perguntou baixinho e rouco, bem próximo do meu ouvido. — Certo, deixe-me adivinhar... Naquela porta azul com uma plaquinha de "Não Perturbe", não é?

Bingo.

— Você é bom. — Sorri fraco, bêbado de sono e ainda muito tonto. — Acertou, Moranguinho.

Alguns fios vermelhos escaparam da sua orelha quando tombou a cabeça ligeiramente à esquerda, cobrindo parte do seu rosto e entrando numa harmonia bonita com o rubor das suas bochechas branquinhas queimadas pelo sol. JK sorriu, e o carmesim suavizado do seu nariz pareceu corar ainda mais.

— Vai me explicar o porquê do "moranguinho" ou ficarei no mistério? — Alguns passos na direção do meu quarto foram suficientes para que perguntasse, confuso quanto à origem daquele apelido.

— Sabe que nem eu sei ao certo? — Fechei os olhos e ri, só então percebendo que o fato de ainda não ter perdido equilíbrio se dava por estar com o braço por cima dos seus ombros. — Hm, não sei, deve ser porque você cheira morango. É! É isso! Você tem cheirinho de morango.

— Já me disseram que tenho cheiro de problema, mas morango... — Balançou a cabeça negativamente, rindo. — É a primeira vez.

— Cheiro de problema, é? — Passamos pela porta do meu quarto, mergulhando por entre a escuridão até que JK ligasse a luz. — Eu deveria temer?

Antes de me sentar na cama de solteiro forrada por um lençol branco, ele me encarou por céleres segundos, como se seus olhos pudessem dizer o que a boca proibia. Subitamente, todos os pelinhos do meu corpo estavam em pé, oriundos do arrepio que trafegou pela minha espinha ao sentir sua íris pesada sobre a minha.

— Não sei. Deveria? — A última parte saiu sussurrada, semelhante à partilha de um segredo.

Aquela pergunta, portanto, passou a ecoar nos cantos da minha mente tal qual uma maldição, sua voz macia repetindo-se diversas e diversas vezes até começar a fenecer, sumindo gradativamente. "Não sei. Deveria?", e eu sabia que sim, que deveria temer, embora não guardasse comigo absolutamente nenhuma vontade ou força para voltar atrás.

JK endireitou a postura tão rápido quanto se despediu da aura ambígua que há pouco o assolava, voltando à faceta tranquila e gentil que em nada se equiparava aos olhos travessos que me acorrentaram segundos atrás. Ele sorriu, simples e despreocupado, tocando meu peito com os dedos médio e indicador esquerdos — ambos preenchidos por anéis de joias grandes —, induzindo-me a deitar.

Desarmado, obedeci ao toque e à minha própria condição, suficientemente ébrio para sucumbir àquela sonolência aguda. Assim que deitado — um tanto torto e desleixado —, girei o corpo na direção de JK, que me assistia silenciosamente sem nunca desviar o olhar.

Eu estava tão atônito que não podia distinguir seus traços com clareza, mas nem mesmo a embriaguez, o sono ou o mal-estar tinham potência o bastante para abafar sua beleza estonteante, tampouco sua maestria em me entorpecer. Derreti ali mesmo, naquela cama, desmontando ante seus olhos e piscando lentamente ao encará-lo de baixo.

Ele era tão bonito que não existiam definições humanamente capacitadas para abranger sua graça.

— Essa é a hora em que você sai por aquela porta, não é? — disse mais a mim mesmo do que a ele, lambendo os lábios antes de prosseguir com a voz fraca e baixinha. — E eu continuo aqui, vivendo a mesma vida chata que vivo desde sempre.

Sem verbalizar uma única sílaba, JK aproximou a mão do meu cabelo, desprendendo ambas as presilhas que seguravam minha franja. Colocou-as na mesinha de canto, calado, para só então me encarar novamente e dizer:

— A vida só é chata se deixarmos que ela seja. — E puxou o cobertor fino na ponta da cama, ajustando-o no meu corpo. Quando terminou, colocando o tecido por cima do meu ombro, deixou um último peteleco na minha testa. — Você é jovem demais para dizer algo assim, Jimin-ah. A vida é complexa demais para categorizá-la como chata em somente dezoito anos. Dê uma chance a si mesmo.

Uma luz — daquelas esplendorosas, brilhantes e bonitas — acolheu uma parte obscura e remota do meu consciente, iluminando aquilo que, até aquele presente momento, nunca foi uma opção: dar uma chance a mim mesmo. E pareceu patético quando notei que aquela era a primeira vez que ouvia algo como aquilo, algo tão verdadeiro e igualmente triste. Nada, nem mesmo os conselhos e repreensões de Taehyung, soaram tão profundos e reais como aquelas palavras.

Foi meu primeiro contato com algo que me fez acreditar genuinamente que merecia uma chance de ser feliz, e absolutamente nenhuma sensação anterior àquela me causou sentimento tão, tão acalentador.

Mas o acalento, tal como toda sensação mágica e poderosa, saudou sua morte sem antes me dar chances de aproveitá-lo. No instante seguinte ao de intensa felicidade, a fome dos meus demônios se fez voraz, ameaçando voltar quando, num triste relance captado pelos meus olhos opacos, observei JK se afastar, pronto para partir.

E doeu. Doeu porque eu soube que não o veria novamente, porque sabia, tal como se sabe que o sol nascerá amanhã, que aquela era a última vez que viveria algo tão belo e tão finito.

No batente da porta, ele parou, olhando para trás. E foi como naquela primeira vez, quando o mundo todo congelou na porta do Jude's e seus olhos se tornaram a única verdade no planeta, refletindo todos meus sonhos, medos e cobiças.

Num último parecer, o dono da mecha vermelha sorriu, concedendo-me aqueles curtos e tortuosos segundos de absoluta admiração antes de, por fim, sair daquele quarto:

— Foi bom te conhecer, Cinderela. Tome cuidado com guitarras, tente não esbarrar em nenhuma outra vez.

E partiu bem como chuva de verão³, sublime e efêmero, deixando somente seu aroma e rastros de uma noite feliz. Nos cantos da minha mente, restaram somente aqueles lapsos de um sonho distante, uma quimera bonita e encantadora cujo único vestígio eram memórias quebradas do que um dia foi real.

Antes de cair no sono, enfim devorado pelos demônios da angústia, olhei para o espaço que ele antes ocupava, agora frio e vazio. Com o fechar dos olhos, engolido pela perda e embebedado pelas lembranças, só pude me agarrar a uma única e singela esperança que ainda flamejava em mim, brilhando naquela cor caótica e proibida que o representava tão bem, a mesma tonalidade que, curiosamente, parecia me dar uma ideia desconexa e infundada de que, talvez, apenas talvez, pudesse encontrá-lo uma outra vez.

Era o vermelho. Um enigmático, indomável e deslumbrante vermelho

🍓 #MorangoCanhoto

***


Desenhos da Mare (@ byjooniesz) dos jikook de VDC! Dêem amor ao talento dela!

JK

JM

***

REFERÊNCIAS:

Alguns trechos são referência a Correntes de Algodão, uma fanfic também minha que dediquei a etthereall e que ainda não foi postada. Esses trechos estão sinalizados com ¹ e ³.

A referência ² refere-se ao filme "As Vantagens de Ser Invisível".

Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro