Capítulo 2
O som metálico do choque de espadas ecoa em meu ouvido. A poeira do campo de treinamento irrita meus olhos, mas mantenho a guarda levantada. O golpe frustrado do oponente logo se converte em outro ataque sagaz, desta vez mirando minha jugular. Rapidamente, bloqueio o movimento deixando minha espada na vertical. Em seguida, revido atingindo horizontalmente a costela.
Obviamente não utilizei força, mas foi o suficiente para simular a derrota total do inimigo.
— Vitória de Aloys! — anuncia o nosso juiz improvisado.
— Maldito sortudo. — resmunga meu oponente, guardando a espada.
— Você chama de sorte, eu chamo de treino, Tristan.
— Contando piadas antes do desjejum? Teremos um dia glorioso, então.
Tristan, meu amigo — e cobaia de treinos, por assim dizer — ria alto jogando o longo cabelo vermelho para trás. O seu físico robusto e forte chama a atenção de algumas mulheres por onde passamos, mas estou mais preocupado em manter a postura com a pesada espada presa às costas. Mesmo após tantos anos, nunca vou me acostumar com tamanho desconforto.
— Já encontrou uma noiva, gigante? — ele brinca focando seus olhos verdes em minha careta, segurando outra risada.
— Eu sou jovem, cabeça de fogueira. Não preciso me preocupar com essas coisas!
Tristan abre a boca para revidar a ofensa, mas se cala diante da figura imponente a se aproximar. Os passos de Letholdus Bailey quase fazem o reino tremer. A sua capa azul balançava majestosamente contra o vento do campo de treinamento, localizado aos fundos do meu castelo. Metade do seu longo cabelo preto e ondulado estava preso em um coque, perfeitamente alinhado onde podemos ver alguns dos fios brancos. Um sinal de sua idade, mas, acima de tudo, de sua experiência.
Letholdus é o homem mais habilidoso em lutas que eu conheço — fora Lorcan De'Ath, antigo duque de Icarus e atual rei de Velorum. Ele travou inúmeras batalhas ao lado do meu pai para proteger nosso reino, Valfem.
— Pode não ser uma preocupação sua, mas aconselho repensar. O povo não está contente com essa incerteza, Alteza. — Letholdus se pronuncia com seu tom rouco que retumba no ambiente. Ele tem esse poder de atrair toda a atenção para si, assustando até mesmo os mais bem treinados guerreiros. Não havia nenhum vestígio de um sorriso na barba grossa. — Valfem precisa de estabilidade.
Por mais que odeie admitir, Letholdus está certo. Valfem se uniu à Velorum e outros reinos para se tornarem um império, mas, mesmo assim, é necessário que a nobreza continue administrando seus antigos reinos e enviando constantemente relatórios para o nosso rei, Lorcan. Se não houver nenhum herdeiro e eu morrer, Valfem passará para as mãos do próximo da sucessão, um primo distante que possui um envolvimento duvidoso com Velstand, o maior inimigo de Velorum.
E ninguém quer seguir ordens de um príncipe que não se preocupa com a estabilidade do seu povo.
Não que eu faça questão do título que carrego, pois ele mais parece um fardo. Contudo, o meu povo não merece passar por nenhuma tormenta por causa do meu descaso.
— Eu sei, senhor. Mas...
— Sem "mas". O tempo de desculpas passou desde o seu nascimento, Alteza. Você foi treinado a sua vida inteira para assumir as responsabilidades da coroa, independente do seu reino ser subordinado a um império ou não.
Fecho os punhos ao lado do corpo e balanço positivamente a cabeça. Letholdus não tem culpa de ser tão ríspido, não quando jurou no leito de morte do meu pai que protegeria seu filho mais amado e o legado que construiu em Valfem.
— Eu o farei pensar com cuidado sobre as possibilidades, conheço algumas belas moças de boa conduta que matariam para se casar com o Aloys. — diz Tristan cortando o clima tenso. Ele tem o dom de reconhecer as situações em que preciso ser "salvo". — Não seja tão ríspido com nosso bebê.
— Sou quase da sua idade, seu maldito. — resmungo baixo.
Letholdus arqueia a grossa sobrancelha preta.
— Não sou idiota, sabia?
— Claro que não, senhor.
— E ser de boa índole não é o suficiente, Tristan. — comenta lançando um olhar repreensivo em direção ao meu amigo que, em questão de segundos, fica branco. — Precisamos reunir mais poder para o nosso reino, então uma aliança com alguma princesa é a melhor escolha.
Desvio o olhar para minhas botas de treino, pensando em todos os jantares e viagens cansativas que um príncipe precisa se submeter. Não estou a fim de apertar mãos de nobres falsos e forçar sorrisos, mas já vi que sacrificar minha vida pelo reino não é uma opção.
É uma escolha. A única escolha.
— Ao menos, não precisará da aprovação dos pais para casar com sua noiva. — dizia uma voz debochada enquanto o homem se aproxima.
Eu e Tristan reviramos os olhos de maneira instantânea com a presença de Fausto Reeves, o inimigo que dividimos o mesmo teto no palácio. O homem de bigode e nariz empinado para ao lado de Letholdus, sorrindo sarcástico. Seu porte baixo e magro o faz parecer inofensivo, mas é um disfarce para esconder a língua afiada.
Ele é o Conde de Dolphin, alguém que ajudou financeiramente o meu pai em várias batalhas. Mesmo não sendo tão confiável, era inegável a sua dedicação para destruir qualquer reino que ameaçasse Valfem. Mas, em compensação, ele não perdia uma chance expor sua aversão a mim.
— Cuidado com a língua, condezinho. — ameaça Tristan, adotando uma postura defensiva ao seu lado.
Era compreensível sua reação, Fausto não perdia a oportunidade de jogar na cara de Tristan a sua origem: um garoto filho de uma prostituta. Não que eu me importe com títulos, até porque, para mim, todos merecem ser tratados de forma igual. Para o meu azar, tal pensamento não é uma verdade universal.
Mas hoje parece que sou o único alvo.
Fausto olha com desdém meu amigo antes de direcionar o total desprezo a mim.
— Aconselho não ser criterioso demais, Alteza. Ou encontrará uma esposa ambiciosa e acordará no calabouço novamente.
Por um instante, minha mente se encontra presa no passado. Naquela noite onde descobri sobre a morte do meu pai e a traição da minha mãe. A forma como ela me encarava, com todo aquele... Ódio. E a risada psicótica do meu irmão. Se fechar os olhos, posso sentir a carícia gélida das noites de inverno, convidando-me para ter um lugar entre as estrelas e, finalmente, encontrar meu pai.
Mas contenho qualquer emoção, abrindo um sorriso descontraído.
— Obrigado pela preocupação com meu futuro, Fausto. Gostaria que tivesse esse mesmo zelo pelo seu.
— Assim não estaria à besteira da falência. — completa Tristan.
Fausto está pronto para rebater, mas Letholdus estica a mão, silenciando-o no mesmo instante.
— Somos todos adultos e, creio eu, estejamos no mesmo lado do tabuleiro. Então, vamos deixar as desavenças pairarem em seus pensamentos. — ele estreita o olhar ameaçador, alternando entre nós três. — Apenas neles. Estou entendido?
Eu e Tristan respondemos com um "sim, senhor" e Fausto se limita a um resmungo, dando as costas e seguindo pelo outro lado do corredor. Letholdus suspira com pesar, fazendo uma breve reverência para mim antes de seguir pelo caminho oposto.
— Conde filho de uma puta! Eu não entendo como pode manter essa cobra no seu palácio, Aloys!
— E me resta escolha? Ele é um dos poucos nobres que ainda continua ao lado da família Rilley.
— Encontre outro e livre-se dele, ora!
Massageio as têmporas, sentindo um peso absurdo em meus ombros.
— Tenho uma ideia!
— Qual, Tristan?
Os meus olhos cor de mel reluziam à luz da manhã, junto com minha pele levemente bronzeada.
— Vamos à taverna da cidade encher a cara!
— Espera, o reino de Valfem pode ruir se eu não der um herdeiro o quanto antes e você quer beber até o amanhecer?
— Não poderia ter resumido melhor as minhas intenções. — comenta iniciando uma caminhada em direção ao interior do castelo. — Vamos logo!
— É essa a forma de lidar com o problema que temos?!
— Eu disse que tinha uma ideia, não uma solução. Ao menos, beber um pouco irá tirar o peso dos seus ombros, amigo. Não suporto vê-lo com essa cara emburrada, não faz bem para a sua pele de bebê.
Mostro o dedo do meio e sigo Tristan ao som de suas risadas escandalosas.
♕♕♕
Além de ser o companheiro de Tristan para treinos, sou seu companheiro nas noitadas. O meu amigo tem a mania de descontar as frustrações com bebida e mulheres — moderadamente e de forma respeitosa, é claro. Não gosto tanto de lugares cheios, mas confesso que já estou dançando em meio ao povo depois de um bom vinho.
As moças brigam por algumas músicas comigo e, como temos a noite toda, dou a devida atenção para cada uma delas. Até mesmo com os homens que sou convidado a dançar.
Por ser jovem, andar com classes inferiores e gostar de festas que as pessoas me veem como imaturo e promíscuo.
Uma grande mentira.
Desde pequeno, vivo a pressão de ser o sucessor de Valfem. Todos os dias fui treinado para agir, falar, fazer e sorrir da forma como o povo quer. A minha vida inteira é em prol dos outros, por isso aprendi a fugir da realidade junto com meu amigo. Em alguns momentos, nós dois só queremos retirar o peso das responsabilidades e usufruir da sensação de liberdade.
— Você é tão lindo, alteza. — dizia uma mulher de decote chamativo e longos cabelos loiros. Ela segura meu rosto com as duas mãos, apertando-o até que meus lábios formem um bico. — Deixe-me provar o gosto da realeza, por favor.
Ela tem uma beleza cativante, mas está bêbada. E tocar em uma dama nessas condições está fora de cogitação. Por isso, afasto gentilmente suas mãos delicadas e abro o meu melhor sorriso.
— Desculpe-me, querida. Podemos tentar em outro momento, quando puder realmente lembrar desse beijo que, garanto, será inesquecível.
A mulher ruboriza com a minha refeição discreta. Posso não ser um grande pegador como Tristan, mas sou um bom galanteador.
O meu pai me mataria se soubesse que li todos os seus romances para isso.
A minha companhia agradável se afasta mandando um beijo. Em questão de segundos, Tristan aparece imitando o gesto da jovem com um bico em seus lábios. Faço careta quando ele aperta minha bochecha.
— "Alteza, quero provar seus lábios. Alteza, qual o sabor da realeza?" Nossa, Aloys! Você podia ter comido todo o reino só pelo título, não entendo a preocupação do Letholdus em encontrar uma noiva para você.
— Cala a boca, cabeça de fogueira!
Talvez Tristan tenha dito alto demais, pois várias cabeças se viraram na direção da gente. Dou um beliscão no ruivo que resmunga, massageando o local. Como sempre, mantém o sorriso travesso enquanto profere mais alto:
— Mas o príncipe de Valfem merece uma despedida digna, não é? Quem quer ser a concubina dele? — grita a última parte, virando-se para o pessoal na taverna.
Um coro de gritos ecoa em meus ouvidos. Enquanto isso, olho para o ruivo em total descrença observando-o conversar com algumas moças por perto. Puxo o seu braço fazendo o rapaz cambalear.
— O álcool não ajuda em meu equilíbrio. Não preciso de você para beijar o chão, obrigado.
— O que deu em você, Tristan?! Concubinas, sério?
— É tradição o rei de Valfem se envolver com várias mulheres antes de encontrar uma noiva. Esqueceu?
Como poderia esquecer dessa tradição idiota? O meu pai esteve com algumas mulheres antes de firmar o casamento com Roseta. É uma maneira idiota de demonstrar a virilidade do rei, o que não passa de um monte de bobagens. Não preciso dormir com vinte mulheres para provar o que eu sei que sou, mas resistir contra tradições quando meu reino está enfraquecido não é uma boa ideia — palavras de Letholdus.
— Eu sei, mas será que não podemos deixar esse assunto para depois?
— Por mim tudo bem, só espero que não fuja dele amanhã.
— Como assim? O que tem amanhã?
Tristan vira toda a bebida no copo em um único gole.
— Letholdus pretende selecionar algumas moças para passar seis meses no palácio. Elas vão servi-lo e distrai-lo enquanto escolhe uma noiva.
Nesse momento, a música ao redor some e as pessoas puxando-me para dançar não passam de meros fantasmas da minha mente.
— Você só pode estar brincando...
— Quem me dera. Há rumores de um atentado contra você e isso preocupou o conselho de Valfem. Ninguém quer que o reino caía em mãos erradas. — dizia passando o dedo indicador na borda do copo. — Um herdeiro é a solução mais rápida enquanto fortificamos a região.
Apoio a mão no balcão da taverna, respirando com dificuldade. A essa altura, o álcool já evaporou do meu corpo.
— O que isso quer dizer, Tristan?
Já sabia a resposta, só precisava ouvir dos lábios dele para saber que não se tratava de um sonho. Ou melhor, de um pesadelo.
— Você precisa de um herdeiro o quanto antes, Alteza.
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