Capítulo 9
Nicholas abriu a porta algum tempo depois de desligar o telefone. Eu parecia um cão abandonado, estendido ao longo do tapete, olhando para a porta como se aquilo pudesse me salvar — é mais provável que mate. Seus olhos pararam em mim por meio minuto, encarando meu rosto, ansiando por uma palavra que o faça parar. Eu não disse nada, permaneci encarando-o. Nick sabia que isso queria dizer alguma coisa, sabia que isso significava mais que as palavras que eu tinha a dizer.
Nicholas piscou. Pensei que diria algo. Nicholas não disse. Piscou e só.
Por o que pareceu uma eternidade, continuamos assim, parados, sem nada dizer — nem em pensamentos.
— Tudo bem — ele sorriu, por fim, um sorriso quente e falho em pontos demais para continuar sendo chamado de sorriso. — Kai não fará mal à Brie, nem a ninguém de International Falls.
— Kai? — arrastei meu corpo para cima, apoiando o peso nos braços, como se para fazer uma flexão, e impulsionei-os para tentar levantar de uma só vez.
— Sim, Kai — Nicholas procurou uma cadeira, mas acabou se sentando sobre uma mesa de centro que não encontrou um lugar ainda. As pernas longas de Nicholas se esticaram para frente, formando uma ponte entre mim e ele. — Uma espécie de demônio da Tasmânia.
Caí sobre os joelhos, ouvindo o ruidoso som de madeiras se partindo.
— Demônio da Tasmânia?
— Parecem fofos e dóceis, mas só parecem. Se você olhar bem, encontrará garras afiadas e dentes pontudos. Isso é um demônio da Tasmânia — Nick parece preocupado com seu peso sobre a pequena mesa, mas era só isso. Ele esta receoso, vacilando entre seus próprios pensamentos, provavelmente ponderando sobre me contar sobre o Demônio da Tasmânia. Esse parece um assunto sério demais para Nicholas, algo que o envolve completamente. — Há um demônio sob aquela pele, um demônio capaz de matar um dos seus, ou um dos nossos.
— Um dos seus?
— Algo como... Lobsomens.
— Lobsomens?
— Lobsomens — ecoou. — Não sei de onde tiraram que são lobos. Lobos nunca pareceriam com eles, nem em seus piores dias. São mais como pesadelos. Coisas obscuras e sem forma, coisas com mãos de garras e...
Tentei absorver a situação: há um lobisomem fora de controle em Internacional Falls; um lobisomem fora de controle na casa de Nicholas, na nossa casa; um lobisomem falando com Brie; um lobisomem próximo à Brie; um lobisomem fora de controle e Brie.
Eu queria bater em Nicholas até não possuir forças. Queria correr até International Falls e tirar Brie e todo mundo, que não fosse uma fera descontrolada, dali.
Mas tudo o que eu disse foi:
— Certo.
Certo, lobisomens em Internacional Falls. Certo, Nicholas conhece um. Certo, ele pode fugir de seu controle. Certo, Brie também o conhece. Certo, Brie está com ele. Certo, mas Brie não sabe o que ele é, do que é capaz. Certo? Certo.
— Não precisa se preocupar. Kai possivelmente sabe se controlar. Bem, ao menos o bastante para não atacar quem estiver com ele — Nicholas parecia muito bem com a situação, embora tenha dito “possivelmente” e “ao menos o bastante” na mesma frase.
— Possivelmente — repeti.
Nicholas se ergueu, parecia calmo, tão calmo que a parte confusa do meu cérebro ficou ainda mais confusa.
— Possivelmente? — dessa vez, gritei. A ficha caiu. Ouvi quando algo fez “trim, trim, trim” em minha mente. As palavras de Nick reverberam em minha cabeça, ecoando como o guinchar de morcegos numa caverna. Possivelmente. Possivelmente. Possivelmente.
Levantei num pulo. Não há certeza alguma nisso. Não há certeza. Posso sentir o rosto quente, com todo o pouco sangue que me resta subindo até meu cérebro e voltando para onde estava.
— Possivelmente? — mais alto.
Nicholas se moveu para frente, tentando segurar meus ombros. Me esquivei. Seus olhos estão confusos, não, não é só isso. Há algo mais atrás da confusão, algo mais louco que isso.
— Brie está lá, ela está lá com um lobisomem... Eu ouvi sua conversa. Ele não é confiável. Está fora de controle. Ele pode matar a Brie a qualquer momento. Ela pode estar morta agora. E você me diz “possivelmente”? — a essa altura eu já estava descontrolado, resmungando sobre morte e sangue e prender esse tal Kai numa masmorra subterrânea até que ele evapore. — Ela não pode ficar lá, não com ele. Eu preciso tirá-la dali. Nós temos que fazer isso, criar uma ordem de evacuação, obrigar todos a sair e então matamos o Demônio. Possivelmente... Possivelmente... Não podemos deixar do jeito que está — também estou andando de um lado para o outro, parando de vez em quando para apontar para Nicholas e despejar uma porção da culpa que ele possivelmente tem nessa história toda. Parei ao perceber que também pareço descontrolado, com a raiva formando uma espada que tenta subir por minha garganta. Possivelmente ela subiria se eu deixasse. Possivelmente.
— É verão nos Estados Unidos, Ace. Você não pode fazer nada — sussurrou Nicholas, não protestei, é a verdade. Não, não protestei por ser verdade, apenas não tenho com o que protestar, o que usar como argumento, do que discordar. É verdade. — Você morreria antes de conseguir chegar à qualquer lugar. Eu também não posso fazer nada. Esqueci do Kai, desse Kai. Esqueci da existência da fera. Não... Não, eu sabia. Não queria acreditar que a besta nele ainda existia. Mas eu o ensinei, eu o ensinei a controlar, eu mostrei como se faz... A culpa não é minha. Não é minha!
Sentei novamente, no chão, com as pernas meio esticadas, formando uma ponte.
O rosto de Nicholas é uma mancha de preocupação. Posso ver claramente o que se estende por trás da confusão. É medo. Nunca pensei que Nicholas sentisse medo. Preocupação? Ele está sempre preocupado. Preocupado com tudo, com todos, com a forma de vida em que vivemos, é natural estar preocupado. Mas medo? Não. Nunca.
Tudo caiu sobre mim, como algo que deveria lembrar, pois era muito importante, mas acabei esquecendo e só lembrei agora. Entretanto, é muito tarde para lembrar. E isso dói. Era importante. Muito importante. Não posso simplesmente deixar para lá. Não é algo que se possa deixar para lá. É importante. Extremamente.
A culpa também não deve ser toda do Kai, possivelmente. Ninguém tem culpa. Mas é preciso fazer alguma coisa. Qualquer coisa. Não pode ser tão tarde. Não pode. Ainda não.
— Vou ligar para a Brie — decidi, por fim, tentando armazenar toda aquela informação em arquivos organizados em minha mente. — Qual o número dela? — quero jogar os arquivos organizados do alto de um penhasco, quero pôr fogo neles. — Só quero saber se ela está bem. Quero pedir que tenha cuidado. Sei que você fez isso, mas quero fazer também. Me deixará melhor. Vai impedir que eu faça besteira.
Nicholas assentiu, parece atordoado. Ou será que sou eu aparentando estar muito calmo? Preciso estar calmo. Preciso.
— Esta sobre a mesa, ao lado do telefone ou próximo à algum livro — Nicholas sentou novamente. — Está lá. Eu anotei para você. Sabia que estava com saudades e que não tinha o número dela — então levantou-se, mais uma vez, enquanto falava.
— Obrigado — a palavra não saiu como seu significado manda.
O papel com o número do celular da Brie estava mesmo ao lado do telefone. E havia outro pedaço de papel, com o mesmo número, sobre um dos livros. Agradeci mentalmente. Nicholas não ouviu. Se ouviu, não quis responder.
Digitei o número no telefone vermelho de Nicholas. É um telefone antigo, como os de cabines telefônicas inglesas, com fio e tudo, só que menor, sem espaço para fichas ou cartões ou moedas. Um item de colecionador. Pensar em coisas que não importam me deixa mais calmo. Nick ensinou isso. Nick.
Enquanto ninguém atendia, olhei para os livros de Nicholas, todos jogados pela pequena sala. Um laptop branco estava jogado sobre um banco de madeira, meio fechado, mostrando claramente a imagem de violetas, campanulas e um punhado de rosas e verônicas. Uma revista sobre cozinhas gourmet está aberta sobre o teclado do laptop, numa entrevista com uma mulher chamada Elizabeth Marshall, uma chefe de cozinha, falando sobre o sucesso de seu restaurante, em Crown Heights, no Brooklyn.
Caixa postal.
Digitei o número outra vez, tentando não enlouquecer, tentando não abrir o arquivo organizado. Pense em qualquer coisa, Ace, qualquer coisa mesmo Kai.
Brie está bem. Ela está muito bem. Está assustada, mas está bem. Kai, o Demônio da Tasmânia, não fez nada à ela. Ele pode ser legal. Ele pode estar tentando não se apaixonar por ela pois Nicholas ficaria bravo. Ele pode estar pensando em algo mais prático que carne humana, algo que não grite tanto enquanto tenta engolir. Pizza, talvez. De calabresa. Nada como assassinar alguém. Pepperoni. Palmito. Talvez ele não goste de palmito.
Pense em algo, Ace. Outro algo.
Caixa postal.
Dígito o número mais uma vez, rápido.
Ela pode estar na escola. Aulas na madrugada. Kai pode ser preguiçoso, não gosta de escolas. Ele prefere assistir algumas séries. Nicholas assinante Netflix. Ele pode estar assistindo nesse momento. Ele pode ser alguém mais sério. Ele gosta de ler. Romances Históricos. Não. Não. Ele não gosta de romances. Ele acha muito meloso, dramático. Ele prefere suspenses. Ele com certeza gosta de suspense. Algo envolvendo um assassinato...
Atende. Atende. Atende.
— Oi? — a voz não é a voz da Brie. É uma voz masculina. Jovem. Kai...
— Onde está a Brie? — tentei ser calmo. Não perca a cabeça, Ace. Continue calmo. Ele não a matou. Ela está viva. Ela está bem. Todos eles estão bem. Ele não é uma besta agora. Ele sabe se controlar. Nicholas o ensinou. Nicholas, que é bom em ensinar.
— Ah, vou chamá-la. Só um instante — o garoto correu, ouvi sua respiração e os pés descalços contra tapetes ou carpetes. — Brie? — ele gritou. — Brie, o celular.
Estou ofegante, mesmo sem respirar, mesmo sem ar, estou ofegante. Ensaiando movimentos de sobe e desce em meu peito vazio.
— Quem? — é a Brie, a voz dela. Frágil, calma, ofegante. É ela.
— Quem é? — o garoto perguntou, acho que é comigo, então respondi.
— Ace.
— Ace — ele repetiu.
— Ace? — ela repetiu.
— Ace — ele afirmou.
Houve uma série de barulhos, algo como passos, uma porta se fechando, um sorriso, dois.
— Ace? — é ela, expulsando o garoto que havia atendido a ligação. — Ace, ainda está aí?
— Estou — eu disse, parei de tentar simular uma respiração. Mesmo se respirasse, não conseguiria agora.
— Ah, Ace... — sua voz soou como se ela estivesse entrando num túnel, embargada e falha.
— Você está bem? — perguntei, relutante.
— Estou. Estou sim. Você está bem?
— Estou. Estou sim.
Por um momento, a respiração acelerada de Brie foi tudo o que ouvi. E não quis parar de ouvir, não quis que ela dissesse mais nada, apenas respirasse, apenas continuasse ali, respirando.
Ela está bem. Está bem.
— Estou com saudades — ela disse. Acho que devo dizer que também estou, mas ela sabe disso. Eu sei que ela sabe.
Ela está bem. Está bem.
— Kai está aí? — pareceu ruim perguntar algo como isso, eu deveria mantê-la respirando, só isso. Mas isso não é algo que se possa deixar passar, não é vago o bastante, preciso perguntar.
— Sim...
— Onde?
— No quarto — algo caiu, algo como uma almofada. — No seu quarto. Ele estava olhando os quadros... — Brie se autointerrompeu. — Parece gostar.
— Ele te fez alguma coisa?
— Não. Ele não se aproxima muito. Não fala muito também — inspirou profundamente, engolindo o ar em pequenas doses. — Quem é Kai, exatamente? O que ele é? Nicholas me disse mas... Acho que ele está tentando esconder algo. Sempre é assim quando se trata de mim.
Ela sorriu.
— Um Demônio da Tasmânia — respondi, cauteloso.
Brie pareceu aceitar, já que não perguntou o que aquilo significava. Talvez Nicholas tenha dito a mesma coisa, já não lembro mais.
— Tenha cuidado — sussurrei, mais para mim que para Brie. — Tenha muito cuidado.
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