Capítulo 2
A comuna de Macul, umas das trinta e duas que existem em Santiago, no Chile, é uma cidade deveras agradável. Há uma população grande para os padrões do Nicholas, mas é um bom lugar para se viver no inverno.
É engraçado como o tempo muda do outro lado de uma linha que ninguém impôs. A Terra simplesmente disse que queria verão e inverno ao mesmo tempo, e o universo a ensinou a tê-los. Simples — talvez nem tanto.
O frio não é intenso como em International Falls, a neve não atinge metros inimagináveis e você não vê notícias de mortes por hipotermia no jornal. Claro, é uma língua diferente e nós somos o destaque sempre que saímos de casa — isso não é uma coisa fácil de lidar. Porém, contanto que o sol não venha até Agosto, conseguiremos suportar a fama.
Ao lado direito de nossa casa, vivem dois gatos siameses chamados Carlos e Anna e eles adoram espiar por entre as janelas. Sua mãe, Dolores, se desculpa todos os dias pelo incômodo por mais que Nicholas goste de preparar muffins de pêssego para eles.
Crianças sempre animaram os olhos de Nicholas. Talvez por a única pessoa mais parecida com um filho que ele já teve, ter nascido velho, mordido e transformado, numa noite conturbada de mais para querer lembrar. Ou, talvez, Nicholas tenha filhos, filhos que não conseguiram acompanhá-lo até aqui.
— O passado é passado, boneco de neve — disse o causador das cáries dos vizinhos. Sobre seus braços estendidos, uma caixa térmica gigante e mais duas outras de papelão, equilibram-se majestosamente. — Viva o agora no momento em que ele acontece e o amanhã, amanhã. Mas me ajude antes de qualquer coisa.
Rindo, livrei-o das caixas de papelão.
— E o que houve com a sua força, Senhor Músculos? — pus as caixas no chão e sentei sobre as mesmas.
— Ah, mas só me contaram sobre força, o equilíbrio não estava incluso no meu pacote Seja Um Vampiro — após pôr a caixa térmica sobre o balcão, abri-la e espiar lá dentro, Nicholas escorregou a caixa na minha direção. — Conte.
A peguei e despejei todo o conteúdo sobre o balcão.
— OK! — comecei a recolocar os saquinhos de sangue fresco de volta dentro da caixa, contando-os. — Acho que o pacote Super-Man é mais eficiente. Talvez eu o peça da próxima vez.
Nicholas gargalhou enquanto abria algumas caixas e organizava o conteúdo sobre os móveis. Em frente a nossa casa, do outro lado de uma rua abarrotada de crianças e neve, numa casa pintada de vermelho vivo, o velho Ramirez dança ao som de uma música local, sempre estendendo uma mão para qualquer moça que o encare da janela.
— Temos vizinhos calorosos de mais, não acha? — comentei sorrateiro, tentando não sorrir com a dança embriagada.
— É, eles não se parecem em nada com todas aquelas árvores de Minnesota. Acho que vou levar um pouco desse rebolado para as pobrezinhas. — Nicholas batia os dedos como castanholas e os pés afundavam no chão como uma dança espanhola. — Arriba, arriba!
— Eles dançam flamenco também?
— Uh — ele ergueu os braços como se tivesse cometido um crime. — Acho que me enganei.
Enquanto gargalhavamos e as crianças arremessavam bolas de neve umas nas outras e o velho Ramirez finalmente encontrara uma parceira de dança, os muffins ficaram prontos e eu terminei de contar os saquinhos de sangue.
— Chocolate... Esses serão de chocolate! — anunciara Nick, recolhendo barras de chocolate e cacau em pó no armário.
— Cinquenta e sete litros — disse recolocando a tampa da caixa térmica. — Isso é o suficiente para todo o inverno? Você sempre exagera no seu vinho humano.
— É, é sim. O banco estava meio vazio, isso me fez perceber que, não da mesma forma, humanos também precisam desse tipo de sangue. Não deixar para eles seria como matá-los. — Nicholas parecia bem convicto de suas palavras. — Além disso, se precisarmos de mais, o Rod ou a Felon resolvem — ele continuou recolhendo os ingredientes.
— Quem são Rod e Felon? — abracei a caixa e a ergui.
— São meus contatos no banco de sangue da Argentina. Turistas.
— Oh, então você está falando sobre nós à turistas? Onde foi parar o seu bom senso? — com as mãos na cintura, como uma mãe mandona, tentando não levantar a voz, encarei Nick por alguns segundos. Sua mente estava vazia até que seus lábios estalaram.
— Não esse tipo de turistas — imagens de um casal de ruivos, talvez irmãos, piscaram em seus pensamentos. A mulher, Felon, cumprimentava um de nós enquanto Rod trazia uma caixa igual a do Nick. — Eles viajam nessa época do ano para garantir que os vampiros, que também o fazem, tenham "artigos de vampiro" para todo o inverno.
Tentei não pensar na pergunta que faria a seguir, no entanto, todas as colunas da minha mente foram preenchidas com acusações.
Como eles souberam de nós? E como conseguem o sangue? O que os outros vampiros acham de fazer comércio com humanos? E se alguém descobrir o que eles fazem? E se descobrirem o que eles carregam na bolsa para nós?
— Somos uma bela fonte de dinheiro, Rei do Gelo. Uma hora ou outra alguém descobre que um magnata compra cinquenta litros de sangue humano por mês no mercado negro e quer ser o próximo mercado negro dele. — Nick balançou a mão no ar, como em uma reverência. Após dobrar duas caixas e encostar na parede, continuou: — Faturar milhões por ano, para manter um segredo, é uma proposta interessante, não acha?
— E se um “turista” não conseguir manter segredo?
— Pensarão que estão malucos, ou serão mortos. Das duas, uma. Ah, mas... Eles estão sempre com tanto medo e tão felizes com o dinheiro, que é possível dizer que, com certeza, farão de tudo para manter sua descoberta longe de ouvidos alheios.
Assenti. Realmente não há motivos para os falsos turistas espalharem a notícia de que mortos-vivos vagueiam por sua terra. Isso só traria desespero, bagunça, medo... E os de nós que ainda se alimentam de humanos, usariam esse bug para espalhar seu vírus.
Nicholas pensou em sua própria resposta por um tempo, talvez em busca de uma falha, ou algo que pudesse me fazer entender melhor.
— Brie poderia se tornar uma turista. Ela sabe sobre nós. Poderíamos conversar com Rod e Felon, eles a ensinaram...
— Não, Ace — muito atento aos meus pensamentos, aproximou-se. As mãos levemente curvas, prontas para agarrarem meus ombros. — Esse trabalho é secreto e perigoso. Brie é só uma estudante. Tem uma família pra suspeitar e questionar qualquer movimento. Ela não poderá ingressar em uma escola diferente, do outro lado do seu mundo, sempre que o clima mudar.
— É, eu sei — entreguei-lhe um sorriso amarelo, sem graça.
— Uma garota não pode viver a mercê de um homem, mesmo que o ame profundamente. Ela tem seu próprio caminho para trilhar. Por ser um homem estranho e o amor ser forte, você estará ali, no acostamento, acompanhado-a, e, ao mesmo tempo, em constante pausa. Você seguirá em frente quando o caminho dela tiver um fim. É assim que tem que ser.
— Mas, é tão difícil ter que seguir em frente com o peso de outra vida nas costas — Nick soltou meus ombros, desviando seus olhos taciturnos dos meus indecisos. — E algo me diz que abandonar essa vida é ainda pior que arrastá-la por aí.
— Nós temos uma vida longa de mais para vivê-la inteiramente em tristeza. Ame mais, outras mais, outros mais. Faça amigos, diga a si mesmo que é mortal, finja que pode envelhecer. Quando não conseguir mais esconder, haverão sempre telefones, Internet, aplicativos, aparelhos celulares, computadores... Você não precisa ser tão solitário, Friagem.
— É, você tem razão. Talvez eu deva viver um pouco mais e ser menos como você, Papi — abri a última caixa. Agendas e canetas se amontoam ali, todas com o sobrenome de Nicholas e o meu, gravados lado a lado com tinta dourada.
Nicholas me deixou encarregado de levá-las para a biblioteca, no sótão. Os tapetes vermelhos estão espalhados por sobre o carpete azul, a escrivaninha de cedro reluz com todo o verniz que foi esfregado por todos os lados. Os livros, imaculados, preenchem as prateleiras, sempre deixando espaço para novos.
— Pode deixar em qualquer lugar — a voz melodiosa escorregou por minha mente.
— Si, si.
Pus a caixa sobre um dos tapetes e desci as escadas de volta à sala.
— O que acha de dar uma volta? — Nick bateu as palmas no balcão. — Preciso aprender sobre a cultura local.
— Quer dizer, sobre a comida local? Claro, claro.
Após vestir todos os casacos, calçar botas, luvas e toucas, saímos. Nossa nova casa é um grande retângulo invertido, com um jardim pálido e quadrado em frente às portas coloridas de vermelho, onde sei que rosas florescerão mais tarde, em meio ao frio e a neve de um novo inverno.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro