Capítulo 68
A adaga atravessa a garganta do meu adversário. Enquanto o sangue banha minha face, já estou procurando outro oponente para perfurar. A desvantagem numérica não irá impedir minha diversão, pelo contrário, é um incentivo perfeito para finalmente lutar para valer.
Além de ser divertido vê-los perder o brilho nos olhos, também preciso lutar para voltar aos braços da minha amada. Que, por sinal, está lutando como um anjo da morte ao meu lado. A forma como Tanandra atinge os inimigos com flechadas certeiras causa um calor agradável em meu peito.
As suas pernas, firmes de anos de treinos, avançam contra o massivo exército sem hesitar. Desde a primeira vez que nos conhecemos, soube que estava diante de uma pessoa forte. Alguém que não teme a morte como eu.
— Divertindo-se, meu amor?
Ela sorria de forma tímida após acertar a garganta de uma soldada. Não contenho o sorriso ao ver as suas bochechas rosadas quando a chamo assim.
— Sempre irei se estiver com você, querido. Mas acho melhor se concentrar na luta, lembre-se de que estamos prestes à morrer.
Aproveito o recuo de alguns inimigos covardes para entrelaçar nossas mãos. Levo os lábios aos nós de seus dedos, depositando um beijo demorado na região.
— Iremos sair dessa e ter uma casa no campo. Eu prometo.
— Pensei que quisesse viver na guerra.
— Porque eu nunca pensei que encontraria a verdadeira paz em alguém... Até você aparecer.
Abaixo-me desviando de uma espada ágil e, em seguida, acerto o queixo do oponente de baixo para cima, rasgando sua pele com minha afiada adaga. Logo após, abro um sorriso apaixonado em direção à ruiva.
E a nossa conversa desta madrugada invade minha mente quebrada.
Tanandra traz o lençol contra o corpo nu, focando sua atenção na pequena tocha da nossa cabana. O fogo esculpia o seu rosto, destacando os lábios finos e os cílios longos. Paro-me analisando seus belos traços, a forma como a garganta oscila o que, com um pouco de observação, notei ser o seu sinal de nervosismo.
— O que a aflige, meu amor?
— Não acha que há uma luz incandescente sobre o Lorcan depois que ele conheceu a Diane?
Gosto que minha ruiva seja uma mulher imprevisível, mas não faço a mínima ideia de onde essa conversa nos levará.
— Sim. Ele mudou muito depois que aceitou a Diane em sua vida.
Ela abaixa o olhar para os próprios dedos.
— Sempre o vi como um homem solitário, alguém que passará a vida inteira sem ninguém mas...
— Após vê-lo tão feliz com a Diane, não consegue imaginá-lo sozinho, estou certo?
— Como sempre.
Sorrio convencido aproximando-me de Tanandra e a puxando contra meu peito.
— E provavelmente, você está se colocando no lugar dele... Presa em um mundo sem o seu amado.
— Sim... Eu...
— Não vivemos para sentir medo, meu amor.
A ruiva ergue a cabeça encontrando meus olhos curiosos.
— Posso muito bem viver sem você, eu só não quero. Não quero abrir mão desse maldito sentimento, não quero relembrar de momentos como esse com lágrimas nos olhos. Não posso olhar para o passado com dor.
Toco suavemente seu rosto quente, acariciando-o com o polegar.
— Então, olhe para o futuro com alegria. Diga-me, meu amor, qual o seu maior sonho?
— Ah... Você vai me achar uma boba. — murmura desviando o olhar.
— Sabe que não.
Com certo receio, ela restabelece o contato visual. Mesmo tímida, Tanandra se permite dizer o que há no interior do seu coração. É a primeira vez que consigo extrair a verdade de alguém sem precisar arrancar suas unhas com um alicate ou perfurar seus olhos com pregos.
— Eu quero viver em uma casa no campo, longe de todo esse caos. E ter mais galinhas do que qualquer um possa contar.
Seguro seu rosto com ambas as mãos antes de beijá-la ternamente. Ao ser atingido pela maciez dos seus lábios, a marcha dos soldados fora da cabana é abafada pelas batidas do meu coração. Logo, precisaremos nos preparar para mais um dia de batalha — e provavelmente o último.
— É um belo sonho.
— Obrigada por não rir de mim. Mas e você? — dizia afastando-se um pouco, analisando minha expressão com uma curiosidade fofa. Amo quando seus lábios ficam entreabertos, fico com vontade de passar o dia inteiro os saboreando das formas mais profanas e sinceras possíveis. — Qual o seu?
— Viver o seu sonho ao seu lado. É tudo o que um homem sem esperança deseja.
Quando ela entrelaça nossas mãos e ilumina a cabana com o seu sorriso, sei que esse sonho está mais próximo da realidade do que nunca.
— Morra, seu desgraçado! — Tanandra grita antes de atirar a flecha em um soldado de Avery.
Pisco os olhos, atordoado. Raramente divago em lutas, mas estou mais sentimental do que da última batalha que participei. E o mais surpreendente é que não vejo esse fato de forma negativa.
Queria poder admirá-la por mais tempo, só que a guerra não perdoa bobos apaixonados.
Somos cercados por um grupo de soldados e, agilmente, defendo a minha mulher lançando adagas escondidas. Os inúteis tentam me acertar mas desvio de suas espadas pesadas com leveza. Infelizmente, enquanto brinco com meus inimigos, um dos malditos avança contra a ruiva.
Tanandra tenta defender erguendo a espada na vertical, mas erra a posição da arma. Então, a sua mão direita é arrancada brutalmente diante dos meus olhos. Em seguida, sou atingindo por um grito estridente de dor.
O mesmo grito que passei a vida admirando como um festival, mas não agora. A minha Tanadra está sangrando enquanto cai de joelhos, tentando estancar o machucado.
Uma raiva incontrolável me cega por completo. Pego uma espada caída avançando contra os vários soldados ao nosso redor. Não me importo em estar na desvantagem, só quero destruir cada um que cruzar o meu caminho.
Corto a garganta de um soldado, já correndo em direção à outro onde há um encontro de seu olho com minha adaga. Desta vez, o sangue a banhar meu rosto não traz nenhum conforto. Tudo o que sinto é dor. A mais profunda e agonizante dor. Por isso, não perdoo o próximo alvo ao me abaixar cravando a lâmina em seu joelho. Sinto os ossos dele e, mesmo sendo divertido em outro momento, o único grito de dor em minha mente é o de Tanandra.
— Você está bem, meu amor? — questiono correndo em sua direção, após matar todos ao nosso redor.
Então, esse é o medo de perder alguém?
A agonia afogava-me de maneira angustiante até algo perfurante atingir minhas costas. Outro golpe e mais outro. Sei que há três flechas em minhas costas mas a adrenalina bloqueia qualquer sinal de dor. Avanço até a minha mulher, ajoelhando-me ao seu lado.
— Você... Você está bem? — repito, desta vez com mais dificuldade.
— Não é comigo que deveria se preocupar! As suas costas... Elas...!
— Eu vou ficar bem.
Forço um sorriso, pouco convincente para uma guerreira tão inteligente. Tanandra fez um curativo improvisado com um pedaço rasgado da camisa. Não sei definir quem é o real dono das suas lágrimas, só quero abraçá-la e nunca mais soltar.
Uma horda de soldados se aproxima, mas estou preocupado demais com Tanandra para tentar algum ataque. Contudo, uma flecha atinge a testa de um deles fazendo os demais recuarem.
— Não ousem se aproximar, seus filhos da puta! — exclama Katlyn indo ao nosso encontro.
O estado da arqueira não é dos melhores. A sua perna direita está cheia de cortes e todo o seu corpo possui arranhões profundos. Ainda assim, a mulher nega aceitar o convite da morte enquanto nocauteia um por um dos soldados ao nosso redor.
— E não é que sua mira é boa mesmo? — brinco.
Katlyn lança-me um olhar severo antes de se ajoelhar entre mim e a ruiva. Ela retira do bolso um pequeno recipiente com um creme verde.
— É uma mistura feita pela nossa rainha. Ela ajuda a aliviar a dor. — explica enquanto passa a pomada no ferimento de Tanandra e, em seguida, nos meus. — Precisam se retirar o quanto antes. Não é magia, apenas medicina. É óbvio que não poderão lutar como antes.
— Eu...
— Nós continuaremos a lutar. Por Icarus e pela paz que tanto sonhamos. — dizia Tanandra com determinação. O seu corpo parou de tremer como se aceitasse a dor de ter a mão decepada. — Lutaremos por nossos sonhos, Katlyn. Não é, querido?
Assinto em silêncio. Essa mulher é a única capaz de me deixar sem palavras, e nem precisa arrancar minha língua. É algum tipo de dom ou seja simplesmente...
— Eu amo você.
Pego-me dizendo essas três palavras que, por muitos anos, não possuíam significado. Ela apoia a mão restante sobre a minha, retribuindo o olhar apaixonado.
— Eu também amo você.
— Que meloso. — comenta Katlyn revirando os olhos e se levantando. — Se ao menos quer lutar, nanico, precisa tirar essa droga.
— Sim, mas eu... Ei!
A arqueira não espera um segundo para arrancar as flechas das minhas costas. Contenho o gemido de dor mordendo o lábio e, logo após, olho para a mulher com um bico, emburrado.
— Poderia ter sido mais gentil, sabia?
— Até parece que você gosta de gentileza, tenente Raven. — debocha. — Agora, vamos. Temos uma guerra para ganhar ou, ao menos, uma morte digna para ser narrada nos livros.
Quando Katlyn dá as costas, mostro a língua mas não contenho a risada. Então, ajudo Tanandra a se levantar para, depois, pegar minhas adagas. Sei que quando a adrenalina diminuir, sofrerei as consequências, por isso preciso lutar com tudo.
— Pronta, meu amor?
— Sempre, querido. Vamos lutar pela nossa casa no campo.
Abro o meu maior sorriso girando as adagas entre os dedos.
— Até o último suspiro.
Bloqueio o golpe formando um "X" com as duas espadas, mas não percebo outro soldado avançando por trás. O golpe em minhas costas é certeiro e caio de joelhos. Antes de perder a cabeça, giro o corpo para o lado desviando da lâmina e, rapidamente, fico de pé em posição de ataque. Então, avanço contra o maldito atingindo sua garganta.
Infelizmente, não posso sequer respirar pois esquivo de mais outro ataque antes de golpear a barriga do oponente.
As minhas pernas e braços estão tremendo. Todo o meu corpo está repleto de machucados e mal consigo me manter de pé. O Sol queima minha pele e, unido com o barulho ensurdecedor dos canhões, tenho certeza de que esse é o inferno.
Não importa quanto soldados eu mate, mais aparecem.
— Não abaixe a cabeça, Vossa Graça.
Desvio o olhar para Njal que, brutalmente, arrancava a cabeça de um soldado com seu machado. O estado dele está pior que o meu mas, mesmo assim, se mantém de pé sem dificuldade nenhuma. Um olho está fechado, decorrente de um golpe que o deixou cego. Como um guerreiro de verdade, fez pouco caso da dor e continuou a avançar.
— Nunca, Njal. Chega de abaixar a cabeça.
Corrijo minha postura e corro em direção à soldada, gritando com fúria. Ela bloqueia o ataque com um lança e, usando a mão livre, saca uma adaga do cinto. Ao cravar a lâmina em meu ombro, as pernas fraquejam por um segundo mas, tão rápido quanto a dor, a determinação enche meu peito. Por isso, puxo a mulher contra meu corpo, mesmo que torne a perfuração da adaga mais profunda, e acerto o joelho em seu queixo.
Devido à força, ela cambaleia para trás e aproveito a deixa para atravessar a espada em sua barriga. Permito-me suspirar quando o corpo cai aos meus pés para, só então, retirar a adaga do ombro em um único puxão. Comprimo qualquer sinal da dor a jogando no fundo do meu coração.
— Que merda!
Apoio a mão sobre o ferimento, mordendo o lábio. Outro soldado de Avery se aproxima com uma lança e uso a mão livre para formar uma barreira com minha espada. Mas sequer movo um músculo quando somente a cabeça dele toca minhas botas. Ergo o olhar para Lorcan que retornava à postura anterior após decepar a cabeça do homem.
— Desculpe, eu devia ter sido mais rápido.
Njal faz a nossa cobertura, cortando qualquer um que ouse se aproximar. Lorcan encurta a distância, apoiando as mãos em meu rosto enquanto analisa-me minuciosamente em busca de mais machucados.
— Eu vou ficar bem.
Mas, no fundo, sei que é uma mentira. Estou quase no meu limite. Na verdade, todo o exército de Velorum está. O nosso quantitativo está diminuindo cada vez mais e, em contrapartida, estamos mais cercados do que antes.
— Temos pouco tempo antes de... — murmura apoiando a testa na minha e fechando os olhos por um momento. — Você sabe.
Antes de abraçarmos a morte.
— Eu estarei ao seu lado quando tudo isso acabar, Lorcan.
Há uma tristeza profunda em seus belos olhos.
— Eu devia entregá-la o mundo, dar todas as estrelas em sua mão, mas tudo o que posso oferecer é uma morte dolorosa no meio de um maldito campo de batalha.
Apoio minhas mãos sobre as suas enquanto sorrio.
— Estou onde eu queria estar. Não sinto medo, Lorcan. Só sinto o seu amor me envolvendo.
Quando seus lábios se abrem para falar, a expressão do rei se torna de alerta. Então, ele gira nossos corpos deixando-me escondida em suas costas. A flecha atinge a barriga de Lorcan que não perde tempo em arrancá-la e avançar contra o arqueiro.
— Lorcan, cuidado!
O maldito soldado ainda consegue atingir outras flechas antes de ter a barriga totalmente aberta. Por mais que queira correr até o meu marido, sou empurrada pelos outros guerreiros avançando. A minha visão é do Lorcan com a mão apoiada sobre a barriga, respirando com dificuldade.
Nesse momento de distração, sou atingida na perna por uma espada e caio sentada. O guerreiro tenta outro ataque, porém chuto seu joelho o levando ao chão também. Então, saco a adaga do meu cinto e subo em cima do peito dele.
— Morra! Morra! Morra!
Esfaqueio o homem com tanta fúria que o nó dos meus dedos doem. A cada golpe da faca atravessando o corpo dele, é uma súplica para esse inferno acabar. Não suporto mais ver todos que eu amo machucados. Não suporto a ideia de perder tudo pelo o qual lutei.
Saio de cima do corpo e utilizo a espada como apoio para me manter de pé. Então, dou uma olhada ao meu redor vendo os soldados de Velorum morrendo enquanto o inimigo avança cada vez mais. Sinto-me sufocada e cercada, perdendo aos poucos a esperança.
Até que vejo os soldados de Avery recuando.
— O que está acontecendo? — murmuro com um fio de voz para Mason que está ao meu lado, ofegante e gravemente ferido.
— Não sei. Talvez uma estratégia para nos neutralizar de vez.
— Isso me parece medo, Mason.
— Sim, mas do que seria?
A resposta vem com o tremor no solo. Todos olham pelas colinas vendo pequenos pontinhos subindo lentamente, seguindo um tipo de marcha. Então, arregalo os olhos ao avistar o rei William, de Mandrariam, utilizando uma armadura prata com o brasão do seu reino junto com Iris que também portava uma armadura. Em sua mão direita, havia o escudo com o mesmo brasão.
Do lado esquerdo do campo de batalha, na floresta, o som de galope torna-se mais alto. O meu coração falha nas batidas quando Aloys surge montado em um cavalo. Ele e seu exército portando espadas e lanças.
Do lado outro lado, o exército de Aryan marcha em uma sincronia impecável. A rainha Eleonor lidera as dezenas de homens e mulheres com uma confiança assustadora.
— Não é possível...
— Eles vieram. — dizia Mason abrindo um largo sorriso. — Bendita sejam as estrelas! Eles vieram! Essa droga de constituição funcionou mesmo!
William parava no topo da colina, olhando para o campo de batalha enquanto segurava sua espada, proferindo:
— Desculpem o atraso, meus caros.
Iris aponta para frente e, em um tom de voz firme, grita:
— Ataquem!
A linha de frente de Mandrariam saca seus arcos e apontam para cima. Após a ordem da rainha, lançam de uma vez o ataque. Os pelos de minha nuca se arrepiam ao ver aquela chuva de flechas cobrindo todo o céu de Velorum e indo diretamente para o exército inimigo.
Do outro lado, Aloys e seus guerreiros decepam a cabeça de todo oponente no caminho. Um soldado de Avery tenta me atacar, mas é atingindo pelo rei de Valfem que, após matá-lo ao atravessar a espada em sua cabeça, para o enorme cavalo branco diante de mim.
— Avery bloqueou boa parte das passagens que dão acesso à Velorum, mas conseguimos dar um jeito.
Não tenho vergonha das lágrimas molhando meu rosto e faço pouca questão de secá-las.
— Céus... Vocês realmente vieram.
Ele abre um sorriso radiante e largo.
— Mas é claro. Nós somos um império, Majestade. E iremos nos reerguer como um.
As palavras fogem da minha boca, mas o alívio é evidente. Aloys piscava brevemente, lançando seu charme antes de sumir junto com seu cavalo no imenso campo de batalha. Com um grito animado, giro a espada entre os dedos absorvendo cada partícula dessa nova energia a fluir pelo meu corpo.
Há ânimo e esperança entre os nossos soldados.
Quando estou pronta para outro combate sangrento, avisto uma figura conhecida percorrendo os guerreiros do oponente. Ele saltava de um lado para outro, esquivando furtivamente das lâminas. A sua presença causa embrulhos em meu estômago, por isso só consigo murmurar o seu nome.
— Jonnathan.
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