Capítulo 6
O meu café da manhã quase voltou naquele momento. Os dois guardas do portão ergueram o homem que se encontrava inconsciente. O jardineiro passava pelo local e, ao avistar a cena, correu para o interior do Palácio a fim de comunicar os demais. Enquanto isso, eu permaneço estática no mesmo lugar observando os machucados do coitado.
Com toda certeza, Lorcan não brinca quando o assunto é tortura.
Quando recuperei um pouco da coragem, corri até o portão e o abri permitindo que os três entrassem no castelo.
— Ele está perdendo muito sangue. — anuncia um dos guardas.
O conhecimento deles em medicina era restrito porque a obra se passava na Era Medieval. Contudo, tenho conhecimento o suficiente para ajudá-lo nesse momento. Por isso, ignorando o medo latente em cada veia do meu corpo, digo:
— Eu posso ajudar mas, primeiro, vamos leva-lo para dentro.
Os dois assentem e se dirigem para o interior do palácio, mais especificamente em uma sala que servia como a enfermaria real. Conforme avançávamos pelo corredor, os serviçais e os outros guardas interrompiam suas funções para encarar a cena. As minhas pernas tremiam tanto que apenas uma força divina seria capaz de me manter em pé. Provavelmente, a notícia já chegou aos ouvidos do príncipe mas não podia pensar nesse detalhe. Não agora com uma vida em risco.
Por ter uma mãe ausente, eu precisei aprender a me virar sozinha desde os meus dez anos de idade. Eu tinha uma tia distante, Beatrice, enfermeira chefe de um dos maiores hospitais de Londres. Às vezes, ela cuidava de mim e me ensinava tudo o que sabia sobre primeiros socorros. Então, sempre que uma das minhas travessuras na árvore do quintal rendia em um machucado, já sabia o que fazer.
Os guardas depositaram o homem em uma das macas e, assim, dei a minha primeira ordem.
— Peçam para uma das empregadas trazer uma bacia com água fervendo, linha, um anzol de pesca, panos limpos e uma garrafa de rum.
Eles assentem e saem do quarto em um piscar de olhos. A minha respiração torna-se cada vez mais pesada como se eu estivesse me afogando no fundo do oceano. Era difícil respirar quando se tem um ataque de pânico e, para piorar, a mente não funciona da mesma forma. Por sorte, a chegada dos guardas e outras três empregadas serviu para me distrair.
— Coloque a linha e o anzol na água fervendo. — ordeno para uma empregada e o meu olhar recai sobre as outras duas. — Rasguem a camisa dele e limpem seus ferimentos.
— E o rum? — questiona um guarda erguendo a garrafa.
— Criar coragem. — respondo pegando a garrafa de sua mão e dando um longo gole. — Alguém vai ter que costurar o ferimento, mas eu não faço a mínima ideia de como e-...
— Eu consigo. — dizia uma empregada ao se aproximar. — Eu trabalho costurando roupas, acho que não é tão diferente.
— Ótimo. Mas quanto a perna...
— Um primo meu quebrou o braço e usamos um apoio de madeira. — comenta outra serviçal. — Eu sei fazer.
Suspiro aliviada e gesticulo para que elas continuem suas funções. Então, ouso me aproximar dando as instruções para que não corrêssemos o perigo de infeccionar as feridas. O homem acordou alguns minutos depois, gritando de dor e foi preciso os dois guardas o segurando para que a sutura fosse realizada.
Após duas longas horas de tratamento dos ferimentos, as empregadas e os guardas se retiraram quando ele se encontrava dormindo. A sua respiração estava mais calma apesar do suor escorrendo pelo corpo. Um manto foi depositado sobre o homem e, pelo menos, tratamos à tempo de evitar uma morte por hemorragia.
No momento em que a adrenalina sumiu, encontrava-se ao lado da maca sozinha na sala. Lentamente, sentei no chão sentindo uma súbita fraqueza e deixei a garrafa de rum de lado. O álcool não seria o suficiente para afastar o desespero em meu âmago.
A porta foi aberta e Christian apareceu ofegante. Algumas mechas do cabelo frente ao rosto mas logo foram jogadas para trás. Jonnathan tentou entrar também mas o príncipe fez questão de deixa-lo de fora, fechando a porta na sua cara.
— Céus! Ele está bem?
Assinto com a cabeça e fico de pé apoiando-me em um dos móveis de madeira ao lado.
Christian analisa brevemente o moribundo, suspirando aliviado ao vê-lo em um estado aceitável. Então, desvia a atenção para mim aproximando-se como um raio e parando alguns centímetros de distância.
— E você está bem?
— Sim, sim.
— Tem certeza?
— Eu nunca passei por algo assim, mas para tudo tem uma primeira vez, não é? — questiono forçando uma risada.
Contudo, o semblante do príncipe continua a expressar preocupação. Gradativamente, a minha risada morre e as lágrimas escorrem pelo rosto.
— D-Desculpa, alteza. Eu... Eu...
— Está tudo bem, já passou.
Christian puxa-me para um abraço caloroso, apertando o meu corpo com um carinho indescritível. O seu cheiro primaveril invade minhas narinas e, estranhamente, sinto como se as preocupações sumissem de forma súbita. O calor do seu corpo contra o meu traz uma paz inexplicável, por mais errado que seja. Eu não podia ter um momento assim com minha criação, além de que tenho um namorado.
Mas nada disso importou quando comecei a chorar em seus braços.
Os meus braços envolvem o seu corpo enquanto afundo o rosto em seu peitoral. A mão do príncipe sobe até minha cabeça, fazendo um carinhoso e lento cafuné. Ele espera que todo o choro seja colocado para fora e, depois, se afasta um pouco para fitar a minha face vermelha.
— Está melhor agora?
— Sim, obrigada.
— Desculpa por ter que passar por uma situação assim. — ele murmura secando minhas lágrimas com os polegares. Eu fecho os olhos para apreciar o seu toque caloroso e a sua voz suave ecoando em meus ouvidos. — Prometo que nunca precisará fazer isso novamente.
— Não se preocupe comigo, alteza. — comento desvencilhando-me do seu toque e dando alguns passos para trás. O meu corpo sentiu falta do calor dele, mas contive a vontade de correr para os seus braços. — Foi um imprevisto e, por sorte, eu tinha um pequeno conhecimento de primeiros socorros.
— Deixe-me protegê-la adequadamente, Diane. — ele repreende com a preocupação estampada em sua face. — Sem ajudar feridos da próxima, deixe que outras empregadas façam isso. Não sabe como me dói te ver nesse estado.
As minhas bochechas coram com o seu cuidado e decido me render de bom grado à sua ordem. Então, balanço positivamente a cabeça e abro o meu melhor sorriso. Christian suspira aliviado e foca a sua atenção no homem dormindo.
— Um dos guardas me comunicou o ocorrido. Ele disse que houve ferimentos nas costas, uma perna quebrada e vários dentes arrancados.
— Arrancaram alguns fios de cabelo. — digo sentindo a ânsia voltar e respiro fundo. — Foi o duque.
— Eu sei. Ele me informou isso também.
— O que fará à respeito?
— Marcarei uma reunião com o duque para tratarmos desse assunto. Uma coisa é fortalecer o seu exército, outra é machucar pessoas inocentes. — responde com o olhar afiado. É nítido como se contém para não atravessar Velorum inteira e invadir o ducado dele. — O meu dever é proteger o povo do meu reino e, se isso inclui enfrentar Lorcan, farei de bom grado.
A atitude do príncipe é louvável mas, nesse momento da obra, o duque possui mais força do que a realeza. Com muito esforço e manipulação, Lorcan adquire um exército em potencial ao seu dispor.
— Por favor, tome cuidado. — comento segurando a mão de Christian, conseguindo a sua atenção. Ele abre um sorriso gentil apoiando a mão sobre a minha e puxando-me para perto novamente. O meu rosto adquire uma tonalidade rosada, mas engulo a timidez para continuar a falar. — O duque é poderoso e, talvez, enfrenta-lo nesse momento não seja a melhor opção.
— Eu não tenho escolha. Não posso permitir que Lorcan machuque inocentes por mera birra, isso é inaceitável. — ele apoia a mão em minha face antes que eu pudesse dizer algo, depositando um demorado beijo em minha testa, causador de borboletas na barriga. — Não se preocupe comigo, eu estarei pronto para qualquer conversa amistosa ou não com ele. Esses assuntos apenas irão deixa-la com dor de cabeça, acredite em mim.
Ainda estava preocupada com o bem estar do príncipe, mas a minha mente reforçou a ideia de que ele é o protagonista e ficará bem. Afinal, Christian terminará a obra com Alene tendo uma família feliz e um reinado pacífico.
Ao lembrar dele e da Alene juntos, o meu coração se aperta.
— Tudo bem, alteza. Eu realmente estou me preocupando atoa.
— Sim. Você só precisa me ajudar indiretamente a derrotar o Lorcan, mas nada de se envolver demais nessa confusão. Eu me sentiria um monstro se te colocasse no meio desse conflito entre nós dois.
Droga, Christian. Além de gostoso, você é carinhoso e protetor. Tem como ser menos perfeito?
— Você está certo. — sorrio para afastar o pensamento voltado para o belo homem à minha frente. — E quando será essa reunião?
— Creio que em duas semanas. Lorcan tem a mania de demorar propositadamente para testar a minha paciência, ainda bem que ele sempre perde. — Christian comenta descontraído, rendendo uma risada minha. — Agora, sim. Eu prefiro te ver sorrindo, sabia?
O meu coração faz uma festa em meu peito com o seu comentário e, institivamente, abaixo a cabeça. Então, ele segura a ponta do meu queixo fazendo-me voltar a focar em seu rosto e aquele par de olhos verdes como a mais bela esmeralda.
— Nada de esconder esse sorriso, mocinha. — ele repreende brincando, mas logo a sua expressão torna-se verdadeiramente séria. — No dia da reunião, evite andar pelo castelo. Eu não gostaria que tivesse um encontro desagradável com ele.
— Como quiser, alteza.
Nem seria preciso esse pedido do Christian. Por mim, evitaria Lorcan até a próxima primavera onde voltaria para o meu mundo.
***
Os boatos sobre um possível conflito entre o príncipe e o duque se espalharam como uma praga. As pessoas por todo o castelo comentavam sobre esse assunto e especulavam uma futura guerra. Bando de tolos, a guerra só ocorrerá no final da obra. A vítima do terrível ataque daquele miserável passou boa parte dos dias desacordado, mas se encontrou em uma lenta recuperação após alguns acessos de febre e dor de cabeça. Por sorte, pudemos tratar dos seus machucados antes que fosse tarde demais.
Cherly exigiu que eu contasse todos os detalhes sobre o ocorrido com aquele homem e a conversa com o príncipe, mas essa última parte preferi omitir boa parte dos fatos. A ideia de que eu e Christian possuímos nossos próprios segredos internos aquece o meu coração. Sinto uma conexão agradável ao seu lado, algo que nunca senti com Bryan.
No dia da reunião com o duque, todo o palácio ficou inquieto e os empregados optaram por não sair da cozinha ou dos dormitórios, como foi instruído pelo príncipe. Em contrapartida, o número de guardas duplicou e eles circulavam os corredores mais movimentados. Christian, com toda certeza, estava preparado para qualquer ação atroz de Lorcan, o que era um alívio pois temia vê-lo em perigo por causa do maldito duque.
Como todos quiseram se esconder no castelo, aproveitei a oportunidade para praticar na cozinha e melhorar, minimamente, minhas habilidades deploráveis.
— Por que é tão difícil descascar uma batata? — resmungo mordendo o lábio, fazendo altas caretas enquanto passava a faca pela batata.
Cherly solta uma gargalhada ao meu lado.
— É questão de prática.
— Como vou praticar se posso perder meus dedos nesse ritmo?!
Do outro lado, Martha ria descontroladamente atraindo olhares indesejados em nossa direção. Pelo visto, os empregados não gostavam muito de quem trabalha com alegria, provavelmente os deixavam com inveja.
— Você pegará o jeito, Diane. Não se preocupe.
Antes que eu pudesse responder, a governanta aproximou-se de nós três com o mesmo semblante rígido de sempre — e acredito ser o único que essa velha possua.
— Recebi ordens para te mandar ao estábulo. — ela disse secamente com o olhar direcionado à mim. — Ele precisa de uma limpeza urgente.
Em outra ocasião, pensaria se tratar de uma perseguição pessoal comigo mas, na noite passada, Christian surgiu na porta do meu quarto e avisou antecipadamente sobre esse fato. O príncipe disse que seria a melhor forma de me manter longe do duque e, assim, ele poderia fazer a negociação com maior alívio.
— Sim, senhora.
Eu me dirigi ao estábulo com um sorriso bobo. Toda essa atenção do Christian direcionada à mim está sendo a responsável por suspiros bobos e borboletas na barriga. Há muito tempo não me sentia dessa forma e, à medida que essa sensação aquece o meu peito, começo a ficar preocupada.
Será que ele me olharia de uma forma diferente? Eu não tenho nada de especial. Independentemente de estar nesse mundo ou no meu, continuo sendo a mesma pessoa sem sal de sempre.
Saio dos meus pensamentos ao sentir o cheiro nada agradável do estábulo. A minha careta é tão evidente que todos os funcionários presentes interrompem as suas atividades para rir de mim. As minhas bochechas adquirem uma tonalidade rosada por causa da vergonha. Talvez ficar alguns anos dentro de uma caverna afastada da sociedade não seja tão ruim assim.
— Se quisesse ser uma estátua, ao menos deveria ser bonita. — dizia um dos empregados, entregando-me um balde. — Ao trabalho, garota!
Por um instante, pude ver a minha autoestima rastejando-se entre os dejetos dos cavalos.
— Claro, senhor...
Então, sob o olhar divertido dos homens, fico de joelhos e começo a esfregar o chão após separar o feno em um canto. Com o tempo, eles ignoram a minha presença e voltam a conversar entre si.
— O príncipe parece tenso com a chegada do duque.
— Não é para menos. Aquele filho da puta consegue intimidar com um olhar, mas o príncipe dá um jeito.
— Eu não sei. Dessa vez, parece que a coisa é séria. — comenta um serviçal ao passar por mim. — Eu nunca o vi tão cauteloso assim.
— Quem vocês acham que ganha em um duelo? — questiona outro homem, virando-se para os demais. — Eu aposto no príncipe. Ele já serviu ao exército.
— Eu ouvi dizer que o duque dizimou um exército de cem homens sozinho, então aposto nele.
— Eu aposto em empate.
— Não vale, ora!
— Vale sim, seu merda!
Enquanto os homens conversavam civilizadamente, começo a refletir sobre a pergunta feita. Eles não sabem mas eu que distribuí as habilidades para cada um dos personagens. Christian foi moldado para ter o poder da palavra, mediação e sabedoria. Lorcan é o mais habilidoso em termos físicos e técnicos em uma batalha, já que foi educado desde pequeno para assumir um exército. A forma como ambos foram criados moldou as duas personalidade divergentes. O príncipe foi ensinado a ser gentil e complacente. O duque foi obrigado a ser frio e impiedoso até que não houvesse bondade em seu coração.
Uma parte de mim sente-se orgulhosa por criar dois opostos tão bem definidos. Eu só queria entender porque odeiam tanto a minha obra se o príncipe é carismático demais.
De qualquer forma, não adianta pensar sobre o livro. Não quando eu fazia parte dele e precisava garantir minha segurança por um longo ano nesse mundo.
— Esse lugar não está limpo o suficiente. — comenta um dos serviçais, pisando com sua bota suja no piso que eu acabei de limpar. — Seja mais eficiente, empregadinha.
E ele saiu rindo enquanto contive a vontade de chorar. Eu não podia fazer nada contra essas pessoas, pois talvez elas estivessem certas em me tratar assim. Quando você não tem nada de especial, acaba se tornando um estorvo para todos.
***
O maldito cheiro dos dejetos dos cavalos estava impregnado em mim. Cherly fazia altas caretas enquanto esfregava as minhas costas, após lavar a roupa suja. Eu me encolhi na banheira de madeira, abraçando as pernas e praguejando-me mentalmente por ficar nua na frente de outra pessoa. Mesmo sendo uma mulher como eu, a timidez e a insegurança sobre o meu corpo falaram mais alto. Por sorte, a empregada não fez nenhum comentário desconfortável, exceto pelo mal cheiro.
— Como foi a reunião entre o príncipe e o duque? — pergunto para quebrar o silêncio.
— Ele ainda não chegou. — comenta jogando o terceiro balde de água em mim e, finalmente, o cheiro ruim some dando espaço ao aroma de flores do sabonete caseiro. — É bem provável que o duque De'Ath não venha para essa reunião. Bem, é o que todos comentam no castelo.
Um longo suspiro de alívio escapa dos meus lábios.
— Espero que continue assim. O príncipe não merece lidar com aquele homem.
Cherly arqueia a sobrancelha, inclinando o corpo por cima dos meus ombros.
— Por acaso, está apaixonada pelo príncipe?
O meu rosto fica vermelho e o coração voltou a fazer uma festa dentro do peito.
— N-Não! Eu só estou preocupada com o sucessor do reino, apenas isso.
Ele estreita os olhos, pouco convicta das minhas palavras.
— Não vou julgá-la se estiver apaixonada por ele. Difícil é alguém não amar o príncipe. Ele é lindo, gentil e bondoso.
— De fato. Eu acho que é impossível não se apaixonar por ele. — murmuro com um sorriso bobo, sendo alvo novamente do olhar desconfiado da empregada. Instantaneamente, o meu rosto volta a ficar vermelho e nego diversas vezes com a cabeça. — Não é o que está pensando, sério!
Ela apenas dá um risinho em resposta, entregando-me uma toalha para que voltássemos ao trabalho. Por mais que a minha vontade fosse se jogar na cama, eu e Cherly fomos designadas para entregar o jantar de um dos nobres que estava instalado no castelo.
Após vestir um uniforme novo e limpo, prendo o meu cabelo em um coque e sigo em direção à cozinha onde me entregam uma bandeja com uma taça de vinho. Cherly carregava a comida e a sobremesa, andando ao meu lado enquanto conversávamos. Os guardas haviam voltado para os seus postos e, por isso, o corredor se encontrava vazio.
— Parece que o príncipe tem aula de equitação amanhã. — ela comenta com um sorriso de lado. — Podíamos admirá-lo secretamente.
— Eu quero manter distância de cavalos por um bom tempo. — admito fazendo careta, o que rende uma risada da jovem ao meu lado. — Mas confesso que sempre quis fazer equitação.
— Isso é para pessoas da realeza ou da nobreza, Diane. Eles possuem tempo e dinheiro para essas coisas.
— Sim...
Além de que, eu sei que seria um desastre andando à cavalo.
Cherly trata de mudar o assunto, falando sobre o seu dia e presto atenção no diálogo virando o rosto em sua direção. Ela tinha um brilho único no olhar, como se a alegria fizesse parte da sua essência e nem mesmo o pior dia poderia mudar isso. Eu a admiro por viver nessa bolha de luz, pois a torna a pessoa que todos querem por perto.
É o tipo de pessoa que Bryan iria preferir.
Por estar tão imersa na conversa, acabo me distraindo e esbarro em alguém na minha frente derramando o vinho em sua roupa. A taça cai na bandeja e o líquido escorre pelo tapete vermelho.
— D-Descul-...
Ao erguer a cabeça, encontro-me sem palavras e deixo a bandeja cair no chão. A pessoa diante dos meus olhos é a última quem desejaria encontrar.
Lorcan era uma muralha impenetrável... Literalmente falando. Ele era um pouco mais alto do que Christian e seus músculos bem mais evidentes, devido ao treinamento rígido que recebeu desde os dez anos. A pele levemente bronzeada por causa dos treinos em céu aberto. O preto estava incorporado em suas roupas. As botas, a calça de montaria, a camisa de algodão colada ao peitoral definido, o longo sobretudo de botões dourados e o par de luvas de couro preto. Tudo era preto, exceto pelo cinto que tinha alguns detalhes dourados como brasões. Ao subir um pouco mais o olhar, encontro o seu cabelo liso e preto tocando seus ombros largos. As expressões faciais desse homem eram rígidas, como se nunca tivesse sorrido na sua vida.
Os olhos azuis recaíram sobre mim e, nesse momento, senti a minha alma ser atravessada. Mesmo tendo o criado, questionei silenciosamente se o duque não tinha o poder de matar com o olhar. O olhar gélido causando calafrios por todo o meu corpo. O abraço da morte vinha junto com aquele mar azul e misterioso. Não, o mar possuía vida dentro de si e um certo agito. Era como o céu sem estrelas, sem esperança e sem amor.
Eu sei que era errado encarar um nobre nos olhos, mas passei longos segundos analisando os traços simetricamente perfeitos de seu rosto. O nariz afilado e os lábios contraídos junto com o maxilar trincado.
Ele não portava nenhuma arma, mas creio que não fosse preciso pois apenas um tolo seria capaz de enfrentar esse homem. A sua áurea pesada e intimidadora alastrava-se pelo corredor, como se fosse capaz de apagar as poucas velas presas nas paredes.
Lorcan não moveu um músculo sequer, permaneceu com ambas as mãos apoiadas nas costas enquanto encarava o meu rosto. A sua respiração calma foi o único som a ecoar entre nós dois. Era errado e arriscado olhá-lo diretamente nos olhos, mas aquele azul vazio havia me prendido como um guerreiro seguindo os movimentos de uma serpente. Como um animal caindo em uma armadilha mortal.
Era isso que Lorcan representava. Perigo e morte. Uma combinação digna do vilão mais cruel que eu havia criado, o mesmo homem que arrancou os dentes e quebrou a perna de um inocente camponês. Por isso, o mais lógico era sair correndo dali mas eu permaneci presa ao seu olhar intenso. Ele pareceu um pouco tenso por causa do contato visual e lembrei de que as pessoas não olhavam em seus olhos ou se aproximavam dele. Além do mais, o duque possuía um problema com toque e interações sociais.
E eu sou a única que sabe disso.
— O que está fazendo, Diane? — murmura Cherly ao meu lado, mantendo a cabeça baixa. — Não olhe em seus olhos.
Mas eu não conseguia desviar meu olhar. Ou talvez não queria.
Lorcan não moveu um músculo quando proferiu para a empregada ao lado:
— Saia daqui e não diga nada ou eu mato toda a sua família miserável.
A cor sumiu da face de Cherly que se limitou a acenar com a cabeça. Ela lançou um olhar preocupado em minha direção antes de disparar para longe de nós dois. Lorcan sequer a encarou, parecia interessado em não perder aquela guerra de troca de olhares. Ele claramente estava tenso, o que era compreensível para alguém que passou a vida inteira sendo evitado por todos ao redor e, agora, precisava lidar com uma empregada burra que não sabe das regras básicas do reino.
— Perdão por ter sujado a sua camisa. — consigo dizer com um fio de voz. O corpo tremendo mas as pernas, teimosamente, se mantiveram firme no chão. — E-Eu posso lavá-la se quiser ou...
— Calada. — a voz dele é como um vento frio e cortante, capaz de afastar até mesmo a alma do corpo. O seu rosto é uma máscara inquebrável de frieza e indiferença, exatamente como eu o criei para ser. — Não permitiria que uma empregada imunda tocasse em minha camisa. Eu a puniria quebrando cada um dos seus dedos. Agora, imagine o que eu faria com a empregada que suja a minha roupa?
Engoli seco enquanto minha vida miserável passou em um piscar de olhos. Lorcan retirou uma adaga prateada de dentro do seu manto e a girou entre seus dedos antes de erguer o braço. Por mais que quisesse lutar para viver, sequer tinha forças — física e emocionalmente — para isso. Eu não tinha poder nenhum contra o meu destino e, desta vez, iria morrer nas mãos do meu próprio erro. Algo digno de alguém irrelevante na trama e na vida de todos.
Uma mão firme segurou o punho do duque que travou no exato momento do toque. Christian apareceu ao nosso lado interceptando o ataque dele, lançando um olhar nada amistoso em sua direção.
— Não toque na dama, Lorcan. A sua visita no palácio é para resolver uma questão de violência, creio que não seja do seu interesse prorrogar a discussão por causa de outra ação impulsiva.
— Não preciso que me lembre do motivo das minhas visitas, alteza. — ele responde com escárnio, guardando a adaga dentro do sobretudo. Os olhos frios focaram-se em mim por uma fração de segundos antes de voltar para o loiro. — Mas em meu ducado, um ato de descuido como o dela não seria perdoado facilmente.
— Nesse momento, sinto-me na obrigação de lembrá-lo de que não estamos no seu ducado.
— E muito menos no seu reinado. — ele rebate. — Afinal, não sou vendo nenhum rei aqui, apenas um garoto mimado que está aprendendo a governar.
Christian fica tenso diante do seu comentário ácido. Lorcan parecia se divertir ao irritá-lo, mas é difícil saber o que se passa em sua mente quando sua face é tão indescritível quanto o rosto de um morto.
— Eu deixarei essa passar, desde que ela esteja na nossa reunião amanhã. — o duque comenta reposicionando ambas as mãos nas costas em uma postura militar. — E exijo modos como uma servente de verdade, senão iremos discutir sobre duas vítimas nessa reunião.
Lorcan dava as costas sem esperar uma resposta do príncipe. A sua silhueta sumia na escuridão ao final do corredor e, finalmente, volto a respirar. Christian resmunga algo sobre a atitude deplorável do duque e depois foca a sua atenção em mim.
— Você está bem, Diane? Ele te machucou?
— Estou bem e não se preocupe. O duque não tocou em mim graças à você, alteza. Muito obrigada.
— Eu disse que não deixaria ninguém tocar em você e cumprirei a minha promessa.
As palavras dele eram tão calorosas que esqueci, momentaneamente, do encontro desagradável com o duque. Christian se ofereceu para me acompanhar para o dormitório, como uma forma de saber se eu estava realmente bem e garantir que Lorcan não voltaria para me machucar. Dessa vez, não pensei duas vezes em aceitar o seu pedido pois não confiava muito em minhas pernas trêmulas.
Quando chegamos na porta do quarto, o príncipe se despediu com um afetuoso beijo na testa. Eu me encontrei toda boba com esse gesto, até ignorei as inúmeras perguntas e pedidos de desculpas da Cherly. No final, decidi deixar qualquer sensação ruim desse encontro de lado e me concentrar no outro dia, onde precisaria estar frente à frente com o vilão mais uma vez.
Antes de dormir, a última coisa que minha mente visualizou foi um par de olhos azuis como o céu noturno.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro