Capítulo 48
O barulho das panelas fazia-me encolher atrás do meu esconderijo, um cantinho na cozinha atrás dos sacos de arroz. Abaixei o meu corpo o máximo possível para que Christian não percebesse, mas os sons ao redor eram agonizantes. Panelas batendo, gritos do cozinheiro e resmungos das empregadas. Então, uma sombra surge acima de mim e ergo o olhar, deparando-me com o olhar rígido da governanta do palácio real.
— O que essa praga faz aqui?
A minha garganta seca, as palavras ficam dispersas no ar. Quando alguém fala comigo, não consigo responder. O meu pai, Sirius, disse que sou amaldiçoado pelos deuses. Uma aberração que, infelizmente, minha mãe deu à luz. Mesmo tendo apenas sete anos, entendo o significado de suas palavras: sou imperfeito.
A governanta puxava-me para longe do meu esconderijo e sou jogado contra o chão frio da cozinha. Todos os olhares voltam-se em minha direção e, consequentemente, sinto as bochechas esquentarem de vergonha.
— O seu lugar não é aqui, garoto.
— Difícil é encontrar um lugar onde ele se encaixe. — brincava o cozinheiro. — Na floresta com as bestas, talvez.
Alguns serviçais riem do seu comentário enquanto outro se aproxima, dizendo:
— Ele é estranho. Será que a mãe comeu algo errado durante a gravidez?
Novamente, sou alvo de olhares julgadores. Em resposta, encolho o máximo possível o corpo, ainda sentado no chão, escondendo o rosto entre as pernas. Tapo os ouvidos para bloquear o som, mas é impossível quando as vozes são altas demais para serem ignoradas.
— Sendo filho do miserável do Sirius, não me surpreende. — dizia a governanta, inclinando-se para puxar meu cabelo e, assim, sou obrigado a encará-la nos olhos. Para uma mulher tão jovem, suas expressões são rígidas demais. — Que os deuses tenham pena de Velorum quando ele se transformar em um monstro igual ao pai.
Os fios do meu cabelo eram puxados com tanta força que doía. E eu odiava a dor. Já não bastava as punições do meu pai, agora teria que suportar esse tipo de tratamento. Tento inutilmente me desvencilhar do seu toque mas, diferente do esperado, ela puxava mais forte ainda. Um gemido de dor escapa dos meus lábios, junto com minhas palavras, trôpegas e baixas.
— E-Eu... Eu não... Sou... Um monstro...
A mulher arqueava a sobrancelha, jogando-me contra o chão mais uma vez. Por sorte, amorteço o impacto apoiando as pequenas mãos sobre o piso. Queria chorar. Gritar. Mas sempre que chorava, o meu pai me batia. Então, como de costume, engoli o choro com uma careta nada discreta.
— Como não? Olha só para você, garoto. Não sabe nem falar direito nessa idade. Que tipo de aberração é você?
Odiava essa palavra tanto quanto a surra do meu pai. As pessoas são malvadas, elas não percebem como seus julgamentos machucam.
As risadas cessam quando uma figura imponente surgia na cozinha. Por um momento, começo a tremer imaginando se tratar do Sirius, porém a voz suave da mulher quebrava minhas expectativas.
— Espero que estejam sendo bem receptivas com nosso pequeno convidado, ou devo lembrá-las de que podem ser decapitadas pelo pai dele em questão de segundos?
O silêncio instaura-se diante de suas palavras. A rainha sorria com ternura, destacando o tom rosado de seus lábios e de suas bochechas. O cabelo loiro estava preso em um coque alto e ela trajava um vestido bege de babados. Lilian esticava a mão em minha direção, curvando-se um pouco.
— Vamos, Lorcan. Christian está no jardim o esperando.
Ergo-me ajeitando o colete preto, que havia ficado torto durante a queda. Olho para sua mão estendida e dou um passo para trás. Não gosto de toques. Eles me lembram sensações ruins, como os socos e tapas do meu pai. Então, é melhor evitá-los, já que todos os toques, aparentemente, vão me machucar.
Lilian abre um sorriso compreensivo, guiando-me para longe da cozinha. Antes de sair completamente do cômodo, olho para os serviçais por cima dos ombros e vejo os lábios da governanta se moverem, formando a palavra "aberração". Uma angustia inexplicável surge em meu coração e apresso os passos, juntando ambas as mãos frente ao peito.
Os passos da rainha eram firmes e ela mantinha a cabeça erguida, mesmo com os brincos pesados de diamantes. É difícil acompanhá-la, tanto por minhas pernas pequenas quanto pelas botas apertadas. Infelizmente, levaria uma surra se ousasse tirá-las por um instante.
— Ignore os comentários maldosos deles. — comenta Lilian tirando-me dos meus pensamentos. — São pessoas tentando preencher seus vazios, diminuindo outras. No fundo, nunca serão felizes.
Pisco os olhos, confuso. Por que iriam me machucar para se sentirem melhor? Para mim, isso não tinha nenhum sentido, mas os adultos nunca tiveram.
Lilian parava de andar, estando diante do vasto corredor de altas pilastras. Do outro lado, a grama indicava o início do jardim. Posso visualizar a imagem de Christian sentado em uma mesa de concreto, concentrado demais para notar a nossa aproximação. Aproveito para focar novamente na rainha, pensando em como essa mulher possuía um bom coração. Ela não parecia me julgar. Era uma boa pessoa, como todos comentavam pelos corredores.
Timidamente, seguro sua mão e ela abaixa a cabeça com certa surpresa no semblante.
— Ajude-me... — murmuro com a voz trêmula, antes de soltá-la. Não consigo tocar alguém por muito tempo sem sentir esse desconforto. — O papai... Ele...
— Eu sei o que ele faz.
Estou verdadeiramente surpreso e feliz. É a primeira vez que poderia falar com alguém sobre o assunto. Lilian abaixava-se e abria um sorriso triste.
— Eu não posso ajudá-lo, Lorcan. O meu marido, ele... — a rainha erguia a manga do vestido, mostrando machucados roxos por todo o seu braço. — É como o seu pai. Uma pessoa violenta que quer ter o controle de tudo e todos. Nós não podemos lutar contra eles, só nos resta sermos fortes e aguentar tudo sozinhos.
Suspiro desviando o olhar para minhas mãos trêmulas, que seguravam fortemente a calça. Silenciosamente, assinto em concordância com suas palavras. Lilian também era uma mentirosa como todos ao meu redor. Ela fingia se importar com seu povo, mas não tinha coragem de enfrentar seus perigos. Lembra-me o meu amigo e o seu comodismo, talvez ele tenha puxado da mãe.
Faço uma breve reverência antes de correr até Christian, vendo-o acenar com um largo sorriso.
— Lorcan! Lorcan! Você não vai acreditar no que eu descobri.
Forço um sorriso para disfarçar esse sentimento angustiante, sentando-me na mesa estando frente à frente com o príncipe.
— O que?
— Ontem à noite, mamãe me contou uma história para dormir.
— História para dormir? — questiono inclinando a cabeça para o lado, confuso.
O loiro compartilha da mesma confusão com meu comentário.
— Sim. Ela conta uma história para mim todas as noites, antes de dormir. A sua mãe não faz isso também?
Nego com a cabeça. Minha mãe nunca visitou meu quarto, exceto para aplicar punições como o meu pai ou falar que arruinei a sua vida, mesmo sem entender o porquê. Desvio o olhar para o hematoma do meu braço, feito recentemente por ela quando quebrei um vaso importante, enquanto treinava alguns golpes no corredor. Esse era o único tipo de contato que tínhamos mas, ao menos, ela olhava para mim.
Sorrio bobo e retorno o foco à conversa.
— Uma pena. Não sabe o que está perdendo. — dizia Christian folheando o livro. — A minha mãe contou sobre uma estrela mágica, chamada Ponte dos Mundos. Ela pode realizar qualquer pedido, se você o fizer de coração. — ele mostrava animadamente a folha onde continha a pintura do céu estrelado e uma estrela cadente atravessando as demais. Era linda e única. — Mamãe disse que ela vai aparecer em doze anos, algo assim. Eu pedi para o papai adiantar a passagem da estrela, mas ele disse que não pode. Isso é tão injusto! Meus pais são horríveis!
Enquanto Christian choramingava, puxo o livro para perto e admiro a bela estrela desenhada sobre a folha. Passo a ponta dos dedos sobre a pintura, imaginando o quão majestosa será quando cruzar os céus de Velorum. Balanço os pés sem conter a inquietude, perguntando:
— Já sabe o que vai pedir?
— Sim. Ser o melhor rei de Velorum, é claro! — comenta apoiando as mãos na cintura, empinando o nariz. Não estou surpreso com esse pedido, Christian sempre deixou claro como gostaria de ser um bom rei para orgulhar o pai. — E você, Lorcan?
Mordo o lábio com sua pergunta, pensando em algum pedido. Novamente, foco no pequeno conto ao lado da ilustração, tentando ler. Mas minha capacidade de leitura é bem limitada, por isso o meu pai diz que sou burro. As únicas frases que consigo entender falam sobre duas almas conectadas e uma tal energia cósmica. Quando ergo o olhar para o meu amigo, ele ainda espera pela resposta, impaciente. Christian não gostava de esperar, mas era compreensivo comigo. Ele sabia que demoro a responder perguntas, até mesmo as mais comuns.
— Eu vou pedir para ser o rei de Velorum também! — exclamo com um sorriso.
A expressão de Christian fica séria e me encolho no banco.
— Você não pode, Lorcan. Só eu posso ser o rei! Entendido?
Assinto diversas vezes, voltando a encarar o livro em silêncio.
— Peça outra coisa.
Dou nos ombros, devolvendo o livro para o meu amigo. Nada vinha em minha mente, além de que nenhuma estrela seria capaz de me ajudar. A rainha, o rei, o meu amigo e até mesmo minha mãe não fazem nada à respeito. Então, é inútil depositar minhas últimas esperanças em uma simples estrela.
— Tanto faz. É só uma lenda boba mesmo.
***
Levo outro soldado ao chão, quebrando o seu braço durante o movimento. Como sempre, recebo olhares de repulsa dos demais, mas os ignoro. São um bando de fracassados tentando chegar ao meu nível, só que esquecem de se esforçarem para valer. Então, nunca atingirão um alto patamar com todo esse comodismo.
Enquanto limpava o suor da testa, ouço os aplausos perante a execução perfeita de um golpe feito pelo Christian. Ele sorria sem jeito, coçando a nuca. Agia como se não quisesse toda aquela atenção, sendo obrigado a aceitá-la como o príncipe bom e humilde que era. Estalo a língua no céu da boca diante dessa cena repugnante.
— Ele é um mimado sem escrúpulos. — dizia Katlyn parando ao meu lado.
Respiro fundo enquanto faço o possível para ignorar a sua presença. Ela é uma boa guerreira, seus movimentos são precisos e a sua mira é impecável. Mas toda essa necessidade por atenção é irritante. Por que alguém iria querer tanto assim estar ao lado de outra? Para mim, nada dessa merda fazia sentido.
— O príncipe nunca se cansa de toda essa atenção? Eu me cansaria, a menos que... — ela sorria de canto. —... a atenção fosse sua.
Fuzilo a jovem com o olhar.
— Vá treinar.
Ela soltava uma breve risada.
— Rude como sempre, Lorcan. Eu gosto disso em você.
— Eu não me importo.
Katlyn continuava a rir conforme se afastava para o interior da base. Os demais soldados se dispersam para suas atividades separadas e, como a minha seria o treino com espadas, decido apressar os passos para não cruzar o meu caminho com o "adorável" príncipe. Porém, a sorte nunca sorria para mim.
— Espere-me, Lorcan! — dizia Christian ao se aproximar, andando ao meu lado. — Eu o vi conversando com a Katlyn. Nossa! Como você tem sorte. Ela é uma das garotas mais bonitas da base.
— Estamos aqui para treinar, e não buscar relacionamentos.
O loiro revira os olhos.
— Não seja careta. Precisamos aproveitar a vida, ela é curta demais.
— Temos apenas quinze anos, Christian. — comento com rispidez.
Ele dava nos ombros, fazendo pouco caso da situação, como de costume.
— Viu o meu golpe, Lorcan? Todos amaram!
Dou alguns passos para longe do príncipe.
— Vi sim. Foi o mesmo golpe que executei com perfeição, mas todos torciam para que eu quebrasse a minha perna.
Christian abaixava o olhar com um semblante triste.
— Desculpa por eles. Não sei como podem te tratar dessa forma.
— Você sabe sim, mas finge que não. É mais fácil do que fazer algo a respeito. — murmuro para mim mesmo.
— O que disse?
— Nada.
Ele estreita os olhos em minha direção, desconfiado, mas logo deixava o assunto de lado.
— Eu pedi para um dos guardas do meu pai trazer alguns livros. Quer competir para ver quem lê mais?
Arqueio a sobrancelha com um sorriso debochado.
— Você vai perder, alteza.
Christian ria alto, jogando a cabeça para trás.
— Boa tentativa. Por falar em livro, eu estive pensando recentemente sobre aquele conto da Estrela Ponte dos Mundos. Seria ótimo se o meu desejo pudesse ser realizado. Você ainda não tem nenhum em mente? Poderia pedir por uma alma gêmea, como diz a lenda. — ele debocha enquanto ria. — Parei, parei. Há coisas mais importantes do que isso.
O meu cabelo estava amarrado em um rabo de cavalo alto, mas as mechas soltas se movimentam diante da minha parada repentina, virando-se em sua direção.
— É uma lenda idiota, Christian. Por que não cresce e começa a agir como o futuro sucessor de Velorum? Não dependa de nenhuma estrela patética.
O seu semblante muda para total tristeza enquanto murmura:
— Por que precisa ser tão cruel assim, Lorcan?
Era sempre a mesma acusação. Ninguém é capaz de ver além das cicatrizes e, sinceramente, nem eu mesmo consigo.
— Eu preciso ir, tenho treino agora.
Antes que Christian pudesse me acompanhar, apresso os passos sumindo entre a multidão de soldados. Durante o trajeto em direção à sala, ouço outros comentários relacionados à minha aparência ou ao método que utilizo em combate. "Espero que ele morra", "monstro", "uma aberração renegada pela própria família", "soube que ele matou a própria mãe".
Ignoro os comentários, fechando os punhos com força. No final das contas, desviei o caminho indo até o meu quarto, em que não precisava compartilhar com nenhum soldado patético. Ao se encontrar sozinho no cômodo, encaro o meu reflexo no espelho. A cicatriz em meu pescoço lembrava-me do meu erro em relutar contra a vontade de Sirius. Lentamente, retiro a luva e a camisa para analisar as diversas cicatrizes corrompendo minha pele.
Corrompendo a minha alma.
Olho o meu reflexo e só consigo ver o que todos dizem sobre mim: um monstro. Dou um soco no espelho, partindo-o em pedaços. Não preciso dessa droga para lembrar de quem eu sou, não preciso de nenhum maldito espelho para relembrar da aberração que acabei me tornando.
Noto a mão ensanguentada e sento no canto do quarto, apoiando as costas na parede. Fecho os olhos com força, questionando-me silenciosamente o que deveria fazer para afastar esse vazio interno. Do que eu preciso para ser feliz como os outros?
A resposta é tão óbvia: ser o rei de Velorum.
***
A guerra é caótica.
Os gritos eram ensurdecedores e, para mim, inquietantes. As tropas do inimigo haviam avançado mais do que o previsto, porém não era um problema para nosso exército. Não quando minhas estratégias são infalíveis. Os guerreiros, sujos de lama e sangue, corriam pelo vasto campo chocando-se contra seus adversários. Katlyn estava escondida em uma barricada de feno, atirando suas flechas conforme a ordenava. Eu sabia os pontos fracos do meu oponente, sabia qual a parte mais vulnerável do seu exército e a usaria para obter a vitória.
Por outro lado, Njal dizimava qualquer ser vivo à sua frente, obviamente sob o meu comando. A sua força descomunal e resistência física o tornavam a pessoa perfeita para ocupar uma patente de liderança em meu exército. Os soldados do rei de Velorum estavam na retaguarda, tão assustados quanto um gato de rua. Mas os meus guerreiros lutavam bravamente para manter o reino protegido, mesmo que fossem tratados como pragas sem coração.
— A situação para eles está irreversível. — comenta Raven ao se aproximar, ofegante e coberto de sangue. Eu sabia que era sangue do inimigo, principalmente conhecendo suas habilidades em combate. — Eu já posso me retirar, Lorcan? Estou exausto depois de matar tantas pessoas.
— Não podemos parar. Isso seria subestimar o inimigo.
O espião gesticula com desdém.
— Somos os melhores, Vossa Graça. — dizia em um tom debochado. — E hoje a tal estrela vai passar. Quero pedir para que as festas em Icarus sejam mais longas.
Lanço um olhar incrédulo em sua direção. Raven nunca levou à sério as guerras, apesar do banho de sangue em suas mãos. Ele só demonstrava uma singela preocupação quando envolvia mães ou crianças em geral.
— Vá logo antes que eu me arrependa.
O sorriso em seus lábios cresce.
— Você é o melhor, Lorcan!
Suspiro pesadamente, voltando o foco para a guerra. A minha pausa de dois minutos havia acabado, então avanço contra o exército sacando a minha espada. Um soldado tenta cortar minha cabeça, mas inclino o corpo para trás enquanto corria, vendo a lâmina passar próxima ao rosto. Ao retomar à postura anterior, giro agilmente o corpo decapitando o meu oponente e já partindo para o próximo.
Não podia perder tempo, então os movimentos com a espada eram precisos. Cortava braços e cabeças em uma fração de segundos, avançando cada vez mais para o núcleo da batalha. Katlyn diminuía as forças dele usando suas flechas, mirando nos soldados de maior potencial ofensivo. E Njal continuava a atacar qualquer um que ousasse cruzar o seu caminho, pois tinha uma pessoa especial o esperando no ducado.
Lutar por alguém? Isso é patético.
Bloqueio o golpe de uma espada, deixando minha arma na vertical. O som das lâminas se chocando ecoa pelo ambiente antes que eu decapite o adversário. A sua cabeça rola para os meus pés, onde piso com desdém. Mais uma vida perdida na guerra, algo tão comum.
O sangue dos inimigos espalhava-se por minhas roupas, molhando o cabelo e minha face. Mesmo assim, continuava a avançar junto dos meus guerreiros, até que obtivéssemos a vitória. Quando o estoque de flechas acaba, Katlyn saca suas espadas derrubando alguns soldados no caminho. Logo, ela se cansava e assobia para mim. Era um sinal nosso que significava "deixo a melhor parte para você". Por outro lado, Njal terminava de derrubar os últimos do seu lado e se aproximava de mim.
— Quero ver se essa aberração de Velorum é de verdade mesmo. — debocha um homem do reino inimigo. — Tem certeza que quer enfrentar o grande guerreiro Arkin? Depois não volte chorando para a saia da sua mã-...
Atravesso a espada por seu pescoço. Finalmente o desgraçado parava de falar. Ele cospe sangue em meu rosto antes de ir ao chão. Limpo o excesso com as costas da mão, sujando a luva e logo volto a avançar. Os gritos, as súplicas, as armas se chocando e todo esse ambiente caótico deixa-me com os nervos à flor da pele.
Paro diante de uma rocha para recuperar o fôlego.
Queria cobrir os ouvidos, fechar os olhos e ir para longe dessa realidade. Mas não podia. Esse era o meu mundo, o lugar onde Sirius disse que eu deveria estar. Abaixo o olhar para a minha luva, repleta de sangue do inimigo. Não havia nenhum corte em meu corpo, ao menos no exterior, mas minha alma estava cada vez mais quebrada. Odiava as guerras com todas as minhas forças, elas me obrigavam a ser o que todos diziam sobre mim.
Por um instante, olhei para cima desejando estar entre as estrelas. Parecia tudo tão pacífico acima de Velorum. Quando menos espero, um ponto brilhante e distante se aproxima. Lembro-me imediatamente da Estrela Ponte dos Mundos, capaz de realizar desejos. É bem provável que todo o reino esteja reunido em uma comemoração idiota para fazer seus pedidos.
E eu estou preso nessa guerra, lutando por um povo que me odeia.
Ódio. É esse sentimento que ronda a minha vida, até mesmo a minha mãe não foi capaz de sentir algo que não seja isso. Quando voltasse da guerra, receberia mais ofensas e olhares de repulsa. Se eu fosse o rei de Velorum, nada disso aconteceria. Pedir não custa nada.
O fio brilhante cruza o céu noturno, trazendo consigo uma sensação calorosa. Em minha mente, lembro de todas as humilhações de Sirius, o suicídio da minha mãe, a manipulação de Erick, o perfeccionismo de Christian e o ódio que todo o reino sente por mim.
— Eu quero alguém capaz de me amar... — sussurro. — A minha alma gêmea...
Instantaneamente, cubro a boca com a palma da mão. Que diabos acabei de pedir? O guerreiro mais cruel e habilidoso de Velorum pediu por algo idiota como o amor? Sentia-me o ser mais patético de todos, principalmente por deixar que o coração guiasse as minhas escolhas.
Que seja, é só uma estrela. Nada vai mudar.
Ouço passos se aproximando e, rapidamente, viro-me em direção ao guerreiro bloqueando o seu ataque. Nossas armas se colidem enquanto ele, de forma inútil, tenta relutar contra a minha força. Após girar o corpo para o lado, desviando da sua espada, corto a cabeça dele em um movimento ágil.
Novamente, estava nesse lugar caótico e ninguém, nem mesmo uma estrela realizadora de pedidos, poderia mudar a realidade.
***
O rei Erick batia com força na mesa. O barulho é tão irritante que escondo os dedos, movendo-se inquietamente, nas costas enquanto mantenho a postura firme. Estranhamente, o seu estado de saúde tem melhorado e ouvi boatos sobre uma empregada habilidosa na medicina. Por coincidência, é a mesma maldita que derramou vinho em minha camisa. No começo, quis matá-la mas poupei sua vida depois de ouvir certas palavras que, muito à contragosto, me afetaram.
Se eu soubesse que ela seria a responsável pelo prolongamento desse miserável, teria feito algo à respeito o quanto antes. Mas sou um homem de palavra e não machucaria alguém que estava em dívida.
— Arrancar os dentes de um simples viajante? Isso é inaceitável, Lorcan!
Não pensaria assim se soubesse que o viajante é um espião de outro reino, mas duvido que faria algo para proteger Icarus.
— Não irá comparecer ao baile de primavera.
— Fico deveras triste, Majestade. — comento ironicamente, recebendo um olhar repreensivo em resposta.
— O seu pai ficaria decepcionado com uma atitude dessas! Mas o que posso esperar da aberração de Velorum?
Trinco os dentes, guardando qualquer comentário desagradável diante das palavras do rei. Ele não passa de um miserável, que usa uma falsa máscara de bondade para ter a aprovação do povo. Os dias desse maldito estão contados.
— Estou com uma terrível enxaqueca. Saía daqui antes que olhar para você me deixe pior. — Erick dizia sentando-se na poltrona do seu escritório, gesticulando com desdém como se enxotasse um cão qualquer. — Ah, sim! Suspeito da aproximação do reino vizinho. Invada suas terras e o ameace, pode matar algumas crianças. Acredito que isso seja o suficiente para alertá-lo.
Mais uma vez, ele me usava para seus serviços sujos enquanto contribuía para espalhar a imagem de que sou um "monstro". Porém, pelas costas, precisava dessa aberração para manter a paz em Velorum.
Em resposta, assinto indo em direção à porta. Antes de sair, olho para o homem por cima dos ombros, abrindo um sorriso sombrio.
— Tenha um ótimo baile, Vossa Majestade. Garanto que ele será... Memorável.
O rei franze o cenho confuso, mas fecho a porta o quanto antes. Enquanto caminhava pelos corredores, ouvia os murmúrios sobre a minha pessoa. Eles nunca paravam, mesmo após tantos anos. Com o tempo, aprendi a ignorar mas, desta vez, havia uma voz irritante cada vez mais próxima. Porém, paro de andar ao ouvir um "obrigada". Deve ser a minha mente pregando uma peça.
Viro-me em direção à dona da voz, encontrando a empregada da última vez. Ela tinha um sorriso tão radiante, como se pudesse expulsar todas as sombras entorno de mim. A brisa brincava com as mechas soltas do seu cabelo e os raios solares acentuavam o brilho avelã dos seus olhos.
Não podia negar como aquele maldito sorriso era lindo. O mais radiante de todos.
Ela agradecia pelo salvamento, mas estava distante demais desse momento. Só consegui pensar em como o brilho em seu olhar não expressava repulsa, ódio ou medo. Era um verdadeiro sentimento de gratidão, deixando-me surpreso e sem palavras pela primeira vez em anos.
Merda de sorriso.
Saio dali o mais rápido possível antes que essa áurea brilhante ofusque meus olhos.
***
Praguejava-me por meu lado impulsivo, pois estava diante da cabana da xamã. Ela é a única capaz de tirar uma certa dúvida e, por isso, entro em sua casa de maneira brusca. A mulher parava de regar as plantas da sala para sorrir de maneira cordial para mim.
— Deve ser o famoso e temido duque De'Ath.
Os malditos boatos chegaram até mesmo aos ouvidos de uma feiticeira.
— A lenda da Estrela Ponte dos Mundos é real?
Sou curto e direto. Odeio enrolações. Enquanto isso, ela limpava as mãos sujas de terra no avental bege e assentia.
— Sim. Mas por que a pergunta? Não me parece um homem que acredita em lendas.
Passo a mão entre os fios de cabelo, nervosamente. Como poderia dizer que senti uma inquietude estranha com o agradecimento daquela mera empregada? E que, por um momento, lembrei do pedido.
— E algum pedido foi realizado naquela noite?
Mais uma vez, ela afirmava com um leve balançar da cabeça.
— De quem?
A mulher dava nos ombros.
— Não posso saber, Vossa Graça.
Resmungo baixo, andando de um lado para o outro do cômodo.
— Fez um pedido para ela, não é? — Circe questiona e afirmo. — Pediu por poder? Dinheiro? Reconhecimento?
Nego em todas as perguntas e vejo um sorriso presunçoso surgir em seus lábios.
— Pediu por alguém, certo?
Paro de andar, apertando os dedos inquietamente. Maldita seja essa mania.
— E você a encontrou, Vossa Graça?
— Como posso saber? Eu nem acredito nessa lenda! E eu pedi algo impossível. Não tem como existir alguém assim...
Ela sentava na poltrona, cruzando os braços.
— Não me parece descrente da lenda. O que o levou a crer que encontrou essa pessoa?
Nesse momento, relembro daquela empregada e a forma como me olhava. Não existia nenhum sentimento negativo em seu olhar. Há muito tempo, não era tratado dessa forma. Tratado como um ser humano, e não um monstro sem coração.
— Porque... O sorriso dela é mais radiante do que todas as estrelas juntas.
Circe arqueia a sobrancelha.
— Que interessante.
Sinto como se ela já conhecesse essa pessoa, mas opto por não comentar. Então, suspiro com pesar saindo da cabana antes de ser alvo de mais perguntas. Não queria saber se a droga do pedido foi realizado ou se havia alguém capaz de...
Não, não há. Isso é impossível.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro