Capítulo 41 parte II
Os dois jovens foram mandados ao acampamento do exército real, localizado nas fronteiras de Velorum. Quando Christian desceu da carruagem, todos os soldados fizeram uma reverência em sinal de respeito. Por outro lado, houve indiferença mútua diante da presença do filho de Sirius De'Ath.
— Existem tantas garotas bonitas aqui. Estou empolgado. — Christian sussurra no ouvido do seu amigo.
Porém, Lorcan apressava os passos ignorando a sua presença. O príncipe o chama algumas vezes, mas desiste ao perceber que nada o faria olhar em sua direção.
No primeiro dia de treinamento, Christian demonstrava seus reflexos rápidos desviando de uma sequência de socos e conseguindo imobilizar o oponente, levando-o ao chão. Em contrapartida, Lorcan era preciso e direto em seus movimentos. Ele esquivou do primeiro soco do soldado e se posicionou atrás do corpo dele, chutando seu joelho para se ajoelhar e depois quebrava seu braço rapidamente. Mesmo após causar a lesão grave, o jovem continuava a puxar o membro quebrado com indiferença.
— Pare! A luta acabou! — exclama o treinador e, só então, o rapaz o soltava. — Um tipo de comportamento violento como esse não é aceito em meu exército.
— O miserável é igual ao pai. — murmura um soldado quando Lorcan passa por eles. — Por que somos obrigados a ficar no mesmo lugar que esse monstro?
— Se os deuses forem generosos, ele morrerá na primeira guerra. — o seu amigo comenta.
O filho do duque continuava o seu caminho pelo vasto corredor da base, ignorando os olhares de repulsa e os comentários maldosos. O local estava cheio de novatos e veteranos, fazendo os afazeres rotineiros. Um dos soldados se aproximava dele, proferindo:
— Por que não continuou naquele lixo chamado Icarus? Pessoas podres e sem valores como vocês não deviam pisar aqui!
Lorcan contornava o corpo dele, continuando a caminhada. Porém, o rapaz segurava seu braço o que, instantaneamente, fazia seu corpo travar.
— O que foi? Está com medo de enfrentar um guerreiro de verdade já que o papai não está aqui? Seu mimado de merda!
Aquela havia sido a gota d'água. Lorcan segurou o soldado pelo pescoço, jogando-o contra a parede enquanto o sufocava lentamente. Ele se debatia tentando respirar, balançando os pés no ar. O moreno não tremeu mesmo levantando tamanho peso. O olhar gélido e sem brilho focado na pessoa à sua frente, agonizando por falta de ar. Então, Christian surgia o empurrando para longe e se ajoelhando diante do soldado, que tossia sem parar.
— Não pode machucar ninguém, Lorcan! — dizia o príncipe em um tom repreensivo. — Todos nós somos iguais e merecemos respeito. Velorum é uma terra de justiça e bondade, ou passou muito tempo afastado que esqueceu?
Lorcan piscou brevemente os olhos, em um curto sinal de surpresa. Com o passar do tempo, suas expressões tornaram-se tão rígidas que era difícil definir o que sentia.
— Você está usando a situação para ganhar mais atenção do seu povo. — murmura olhando para o loiro com escárnio. — Isso é baixo, mas é o que eu esperava de um narcisista como você.
Dito isso, Lorcan seguia seu caminho pelo corredor ouvindo alguns soldados gritarem "monstro", "demônio" ou "cópia do maldito pai". A única pessoa que o olhava com admiração era uma garota um ano mais nova, longos cabelos cacheados e pele negra. Os olhos cor de mel enchem-se de brilho ao ver o De'Ath andar com tamanha imponência. Ela apressou os passos para acompanhá-lo, dizendo:
— Prazer, sou Katlyn Moore. Eu vi o que fez com aquele verme e isso foi incrível.
O semblante do rapaz continuava a expressar indiferença.
— Eu não me importo.
— Mas eu sim! Não é sempre que vemos alguém rebater um membro da realeza. É necessário muita coragem e autoconfiança. Podemos ser amigos, se quiser.
Ele interrompia a caminhada, encarando-a com seriedade.
— Não quero e não preciso de amigos.
— Ninguém pode passar a vida inteira sozinho.
Por um momento, o olhar sombrio do rapaz causou calafrios nela.
— É o que veremos.
Durante as primeiras semanas, Christian tentou se aproximar do seu amigo de infância mas desistiu ao perceber que, se conseguisse, seria odiado pelos soldados. Antes de entrar no exército, o seu pai o aconselhou a se afastar do filho do duque, alegando que o rapaz era uma má pessoa capaz de machucá-lo. Inocentemente, o príncipe acreditou nas palavras de Erick.
Com o passar dos meses, Lorcan ganhou a atenção dos soldados de alto escalão. As suas habilidades em luta superavam até alguns tenentes, além de que ele conseguia manusear qualquer arma com uma maestria surpreendente. Os relatórios mensais enviados até o rei despertaram o seu interesse e, aos poucos, Lorcan reconquistou a confiança de Erick que planejava usá-lo para ser o guarda costas do filho.
Por outro lado, Sirius fazia pouco caso dos elogios recebidos pelo filho, rasgando todos os relatórios. As únicas cartas que enviava para Lorcan não passavam de instruções de como se destacar no exército e algumas palavras de menosprezo, que o menor aprendeu a ignorar.
A medida que atraía os olhares dos seus superiores, também era alvo do desprezo dos outros soldados. Lorcan tornou-se arrogante com suas próprias habilidades, agindo como se fosse superior à todos — o que, de fato, o líder do exército acabou confirmando dois anos depois. Ele fazia suas refeições e missões sozinhos, pois afirmava que trabalhar em grupo apenas o atrapalharia.
Em uma das lutas na arena, Lorcan desviava com facilidade da sequência de golpes dadas por Christian. O príncipe forçava o corpo ao máximo, aumentando gradativamente a velocidade mas o seu punho não conseguia acertar o adversário. O filho do duque continuava com o semblante neutro, prevendo o próximo golpe e desviando agilmente. Christian pôde ouvir alguns murmúrios negativos sobre suas habilidades e, sendo tomado pelo medo da rejeição, arriscou um golpe baixo.
Ele abaixava-se pegando um pouco de areia e jogando no rosto do oponente, que recuava coçando os olhos. Então, o príncipe aproveita o seu momento de guarda baixa para avançar, tentando uma luta agarrada. Porém, a força de Lorcan era duas vezes superior à sua e não demorou muito para o príncipe começar a recuar, quando as mãos firmes do moreno o seguraram com força. Movido pelo desespero, só conseguiu pensar em uma única opção. Christian apoiou as mãos nas costas dele e rasgou a sua camisa branca até expor todas as costas de Lorcan e, consequentemente, suas cicatrizes.
De forma instantânea, o rapaz parou de empurrá-lo para fora da arena. O seu corpo travou por completo e, por causa da sua percepção, os comentários maldosos pelas cicatrizes e as risadas eram mais angustiantes.
— Ele é um monstro de verdade. — comenta um soldado.
— Que aberração. — o outro murmura.
Lorcan mal teve tempo de se esconder, recebendo um soco de Christian e recuando um pouco. O príncipe sorriu vitorioso mas, lentamente, o sorriso morria diante do olhar gélido do duque.
— Você não tinha esse direito, Christian.
— Perdão, eu não... Não queria que isso acontecesse. — sussurra dando alguns passos para trás. — Mas, por favor, não conte à eles.
O filho do duque tentava ignorar os comentários que se tornavam mais frequentes. "Aberração", "monstro", "amaldiçoado pelos deuses", "que horrendo". Ele passou por Christian apressadamente mas, antes, deu um soco certeiro no rosto do príncipe que caiu inconsciente. Conforme se afastava pelo corredor, torcia para que, desta vez, ignorassem a sua presença. Porém, era impossível, principalmente quando o tratavam com tamanha repulsa.
Mas havia aprendido a bloquear as emoções. Após uma longa noite sem dormir, abraçando à si mesmo com tamanha força que cravou as unhas contra a pele, retornou à máscara de frieza. Apesar do desprezo ter aumentado, Lorcan continuou evoluindo cada vez mais e as suas habilidades já eram conhecidas por toda Velorum.
Então, outra guerra se iniciou onde o rei Erick e o duque Sirius foram lutar juntos como da última vez.
Lorcan corria agilmente pela floresta, saltando por cima de uma corda evitando outra armadilha. Os soldados que encontrava no caminho eram facilmente derrubados com golpes ágeis e silenciosos. Às vezes, usava a sua espada para deixá-los incapacitados — temporariamente ou não. Ao retornar para a base, ele jogava as cinco bandeiras diante do seu superior e o encarava de cabeça erguida. Por dentro, esperava algum elogio por seu desempenho mas só encontrou uma frieza familiar no olhar.
Naquele momento, percebeu que ninguém veria algum ponto positivo nele. Para todos, sempre seria uma aberração responsável por matar a própria mãe de decepção, e por não ser capaz de ter sentimentos.
— Meus pêsames. — o comandante profere, após longos segundos o encarando. — O senhor De'Ath morreu em guerra. Ele deu sua vida por Velorum, isso é admirável e...
Mas o jovem não conseguiu se concentrar no restante das palavras, a sua mente tentava processar a informação.
***
O povo de Icarus estava ao redor da enorme fogueira, onde era queimado o corpo de Sirius De'Ath. A maioria se encontrava de cabeça baixa, apenas ouvindo o som do fogo crepitando. Então, Lorcan surgia em passos lentos, passando pela multidão enquanto segurava alguns pedaços de madeira. Ele parava diante da fogueira e jogava o primeiro pedaço, vendo o fogo aumentar um pouco. Lentamente, começava a jogar a madeira ignorando os olhares assustados em sua direção.
— Por que você não queima logo?! — exclama atraindo a atenção de todos. — Esse demônio não pode retornar!
Ele continuava a atirar a madeira até não sobrar nenhum pedaço. Em seguida, curvava o corpo puxando os fios do cabelo com força enquanto expressava um olhar vazio, sem vida alguma. Uma risada sem emoção escapa dos seus lábios, um misto de riso com um grito de desespero.
— Queime! Queime! Que o inferno o receba de braços abertos, seu maldito! Não, não! Não pode voltar! Então, queime logo!
E ninguém ousou dizer uma palavra sequer naquele momento. Apenas a dor do novo duque se sobressaiu no silêncio.
No momento da coroação, no salão real, Lorcan estava ajoelhado enquanto o rei tocava sutilmente a espada em seu ombro coroando-o como duque de Icarus e, ao mesmo tempo, general do seu exército, aos dezesseis anos. As pessoas aplaudiram sem ânimo algum, já especulando as atrocidades que viriam das mãos do filho de Sirius.
Após a cerimônia, Lorcan requisitou uma reunião particular com o rei que, confuso, aceitou. Os dois se encaminharam para o escritório de Erick e, quando a porta é trancada, o mais velho lança um olhar confuso.
— Algum problema?
— Eu gostaria de um exército.
— Mas você acabou de receber um tornando-se general, Lorcan.
— Quero um exército apenas meu, onde posso treiná-lo com privacidade e usando os métodos de minha escolha.
Erick sentava-se na sua poltrona, soltando um longo suspiro. Por outro lado, o recente duque não expressa nada além de indiferença.
— Alguma razão em especial?
— Icarus vive na fronteira de Velorum, é o primeiro alvo de um possível ataque. O senhor acabou de retornar de uma guerra e sabe como é caótico para a população.
O rei apoia a mão no queixo, pensativo. O seu olhar estava distante enquanto lembrava dos momentos agonizantes que passou na guerra. Depois de longos segundos, assentiu com a cabeça.
— Tudo bem, mas me mantenha sempre informado sobre o estado do seu exército.
— Como quiser, Vossa Majestade.
O duque curvava o corpo, escondendo o sorriso sombrio em seus lábios.
Ao retornar para o seu ducado, Lorcan gesticulava para a sua arqueira de confiança, Katlyn, e seu melhor soldado, Njal, entrarem no escritório.
— Boas notícias. O rei permitiu que tivéssemos um exército só nosso.
Os olhos de Katlyn enchem-se de brilho. Enquanto isso, Njal tinha um semblante triste desviando o olhar para o quadro de Sirius na parede do escritório.
— Se quiser lidar com o luto, Vossa Graça, nós respeitaremos. Podemos conversar sobre isso depois.
— Por que? Acha mesmo que um miserável como ele merecia ter alguém sofrendo por sua alma? Está dizendo que sou fraco, Njal? — Lorcan questiona parando frente à frente com o mais velho. E mesmo sendo mais baixo, o duque conseguia intimidá-lo com o olhar. — Por acaso, deseja ter sua cabeça em uma bandeja?
O outro soldado engole seco e nega com a cabeça, permanecendo em silêncio.
— Ótimo. Como seu novo líder, não aceitarei questionamentos desnecessários e não falaremos mais desse maldito. — profere pegando o quadro de Sirius e o jogando no chão, pisando em cima do rosto pintado do pai. — Não quero saber se o miserável do rei afirma que ele morreu como um herói. Para mim, isso não tem valor nenhum se viveu como um covarde.
Katlyn e Njal se encaravam e assentem positivamente.
— Mas por que um exército, Lorcan?
— É o primeiro passo para o meu plano, Njal. Com um exército próprio, posso treinar sem qualquer limite imposto pelo rei e, assim, criar soldados mais fortes do que a tropa real. — comenta caminhando em direção à janela, desviando o olhar para o céu estrelado. — O rei vive oprimindo os demais nobres, sabe que eles dependem de seus recursos para sobreviver. Mas Icarus não será submisso a um homem arrogante e aproveitador. Ninguém em Icarus abaixará a cabeça, exceto para mim, o líder deles.
Njal piscava os olhos, incrédulo, mas havia um sorriso discreto em seus lábios.
— É uma ideia insana. Eu topo! Estou cansado do rei querendo nos oprimir, calando nossas vozes por causa do seu poder.
— Mas infelizmente ele continua sendo poderoso. — pontua Katlyn, apoiando as mãos na cintura. — Não é como se pudéssemos ir contra a sua vontade e esperar que ele aceite.
— Por enquanto, farei as suas vontades, mas amanhã mesmo quero que mande os melhores construtores para a floresta ao norte. Eles irão começar a construir uma enorme base. É lá onde treinarei os meus soldados longe do olhar do rei.
— Isso demorará dois à três anos, Lorcan!
— Eu sei, Njal, mas preciso ser paciente para atingir meu objetivo.
Katlyn franze o cenho, questionando:
— E que objetivo é esse?
O duque apertava a borda da janela, mantendo o olhar focado nas estrelas, admirando-as silenciosamente. Então, virava-se em direção aos seus dois soldados de confiança com um brilho único no olhar. Ele recordou de todas as humilhações sofridas por Sirius e, também, como Christian e Erick tiveram suas atitudes covardes encobridas por causa do título que possuem. Lorcan fechava os punhos ao lado do corpo, roçando os dedos no couro da luva — novo acessório que aderiu para ocultar as cicatrizes —, antes de proferir:
— Eu vou me tornar o rei de Velorum.
Njal arregalava os olhos enquanto a mulher ao lado estava estática, totalmente sem palavras.
— Está falando de derrubar a família real, Lorcan. Isso não é como vencer uma simples batalha. — adverte o mais velho. — É muito arriscado.
— Eu não tenho nada à perder. Na verdade, eu nunca tive algo pelo qual lutar.
Katlyn sorria, fazendo uma reverência cortês.
— Estarei ao seu lado até o final.
O outro guerreiro assentia com a cabeça, em uma afirmação silenciosa de que também concordava com o objetivo do duque. Lorcan retornava a atenção para a janela, observando as vastas terras em Velorum e imaginando que, um dia, seria dono de cada uma delas.
***
Os guerreiros retornavam de outro combate. A presença de Christian no primeiro cavalo causou uma euforia positiva na população, que batia palmas. Em contrapartida, era perceptível os olhares de repulsa direcionados à Lorcan e os seus soldados quando eles acompanhavam o príncipe. As pessoas se lamentavam pelo duque ter retornado com vida da guerra. A cada combate, a cabeça do homem era lançada em uma aposta coletiva, onde todos acabam saindo frustrados no final da batalha. Afinal, ele faz jus ao posto de general do exército.
Ao chegarem na capital, a tropa de Icarus se instaurou em um acampamento improvisado. Como as pessoas da cidade não gostavam da presença desses soldados, elas se trancavam em suas casas antes do pôr do Sol.
— Eu odeio como andam espalhando especulações absurdas sobre a gente. — exclama Katlyn batendo na mesa de madeira. A tenda do general era maior do que as demais e bem iluminada por alguns candelabros. — Isso está saindo do controle.
— Não há nada que possamos fazer. — comenta Njal bebericando a sua cerveja. — A verdade irá prevalecer, um dia.
— Não quero esperar por "um dia". Não enquanto somos tratados como demônios e, ainda assim, erguemos nossas armas para defender esse reino de merda!
Lorcan mantinha-se em silêncio, sentado em sua cama enquanto folheava um dos antigos livros que estudou quando era criança. Ele passava a ponta dos dedos, cobertas pelas luvas, nas anotações das folhas antigas.
— Lorcan, não me ignore!
— Deixe-o, Katlyn. — aconselha Njal erguendo-se da cadeira e depositando o copo em cima da mesa. — Sabe como ele fica assim depois de uma batalha.
Ela assente com pesar, dando o primeiro passo para longe mas parava imediatamente quando alguém entra na cabana. A mulher estava com sua roupa, um vestido simples de tonalidade verde, completamente rasgado. Havia alguns hematomas nos braços e pernas, além de um corte superficial no canto da boca. O seu cabelo castanho estava bagunçado e o coque totalmente desarrumado.
A sua chegada nada discreta chamou a atenção dos três guerreiros. Eles a reconheceram imediatamente como uma das soldadas de Icarus. Antes de poder questionar a sua entrada repentina, ela se colocou de joelhos tremendo muito enquanto abraçava o próprio corpo.
— O que houve, Yeda? — questiona Katlyn, abaixando-se ao lado da mulher e apoiando a mão em seu ombro.
A mulher respirava fundo, tentando recuperar parte do fôlego entre os soluços constantes.
— Eu estava... Comprando um vestido para a minha filha... A vendedora não me quis na loja por ser de Icarus... Eu procurei um outro lugar para comprar a roupa, mas acabei parando em uma rua estranha... E eles...
Yeda apertava mais ainda o próprio corpo, cravando as unhas no braço manchando sua pele morena com sangue.
— Reconheceram que sou de Icarus e me abordaram...
— Quantos? — Katlyn dizia com um fio de voz. — E o que esses malditos fizeram?
— Eram cinco. Eles me acertaram com um pedaço de madeira, então não pude lutar. E depois... Rasgaram minha roupa e... E...
A sua fala morria gradativamente, dando espaço para outra crise de choro. Njal ajoelhava-se ao lado de Yeda, tirando o seu casaco de pele e o colocando sobre os ombros trêmulos dela.
— Eles falaram que todas as mulheres de Icarus são vagabundas e a única utilidade delas é abrir as pernas para os homens...
Katlyn trinca os dentes diante das palavras de Yeda, desviando a atenção para seu arco. Porém, seu foco muda instantaneamente para o duque saindo da cabana às pressas. Então, prevendo o que viria à seguir, se limitou a dar um copo de cerveja para a mulher e a colocar sentada na cama do general.
— Não se preocupe. Medidas serão tomadas, eu prometo. Quando nos libertarmos das amarras do rei, nenhuma mulher será humilhada novamente.
Njal, ao seu lado, concorda em silêncio.
***
Erick acordava com um sobressalto diante das batidas incessantes na porta. Um dos guardas o esperava nervoso e sequer deu uma explicação, pedindo para que o acompanhasse para o jardim. Confuso, o rei o seguiu até seus pés descalços pisarem na grama macia. Ao encarar a cena à sua frente, recuou alguns passos quase colocando o jantar para fora.
Havia um rastro de sangue pela grama, estendendo-se até uma das árvore onde um corpo estava pendurado, totalmente desmembrado. A água da fonte do jardim encontrava-se vermelha por causa do sangue do segundo corpo, este com as unhas retiradas brutalmente. O terceiro corpo estava dentro do canteiro com duas rosas ocupando o lugar de seus olhos. A quarta vítima foi encontrada alguns metros do chafariz, sem roupas e com o órgão genital mutilado. Para finalizar, havia o último corpo ao lado mas faltava uma parte dele.
Em passos lentos, Lorcan aproximava-se segurando a cabeça do quinto homem. O seu olhar frio e indiferente causou calafrios no rei e no guarda ao seu lado, que sacou a espada com a mão trêmula.
— Esses malditos machucaram um dos meus. Mas o senhor não os puniria se eu contasse, certo? Vossa Majestade acha que Velorum é um mundo perfeito de algum conto de fadas. — comenta Lorcan jogando a cabeça aos pés do rei. — Com muito orgulho, estou aqui para lembrá-lo do que acontece com esses vermes da sociedade.
O rei manteve-se calado por longos segundos, processando as palavras do duque e todo o cenário de terror que o rodeava.
— O q-que eles fizeram?
— Machucaram e estupraram uma das minhas soldadas.
— É um ato grave, de fato. Mas que roupa ela estava usado?
O De'Ath trincou os dentes, avançando contra Erick. O guarda tentou protegê-lo mas a espada do duque já havia atravessado o seu corpo em um piscar de olhos. Lorcan jogou o corpo para o lado e parou frente à frente com Erick.
— E o que a droga da roupa tem a ver, Vossa Majestade?
Erick pôde sentir o ódio emanando dele, onde um calafrio percorre o seu corpo.
— Nunca justifique as atitudes deploráveis desses homens. — dizia Lorcan apontando para o rosto do rei. — E muito menos, culpe um dos meus.
— Certo, certo. Eu acredito em você, Lorcan, mas não vamos agir por impulso. Quanto quer em troca do seu silêncio?
Lorcan estalava a língua no céu da boca, revirando os olhos. Ele mexia inquietamente os dedos, focando o olhar gélido sobre o rei.
— Quero isolar o povo de Icarus do restante de Velorum. As fronteiras precisam ser permanentemente fechadas para protegê-los de pessoas assim.
O mais velho arregala os olhos.
— Mas como vão sobreviver sem o comércio do reino?
— Eu te garanto, Vossa Majestade, que podemos nos virar sozinhos. E eu também quero estabelecer um tratado para que a justiça prevaleça.
— Como assim?
Um filete de suor escorre da testa do rei quando o homem dava mais um passo em sua direção.
— Se alguém machucar um membro de Icarus, eu tenho o direito de ceifar uma vida de Velorum.
— Isso é um absurdo!
— Absurdo é um dos meus soldados não ter o direito de sequer andar na rua sem sofrer algum tipo de reprimenda. — comenta com severidade. O seu olhar desvia brevemente para um dos corpos, vendo um corvo enfiar o bico no olho do morto. — Tratado de Corvus, é um nome bem adequado. O que me diz, Vossa Majestade?
Erick engolia seco, balançando brevemente a cabeça em concordância.
***
Os anos se passaram e Lorcan observava o ducado pela janela do seu escritório. Katlyn havia sido enviada para outra missão e Njal estava treinando o exército. O duque lidava com as questões administrativas de Icarus, mas parou de analisar as inúmeras pilhas de papéis para focar na bela paisagem do ducado. As pessoas viviam felizes, apesar das regras ríspidas, mas era a única forma que o homem encontrou de protegê-las do mundo externo.
— Uma moeda de stans por seus pensamentos. — comenta uma voz jovial atrás de si.
Lorcan inspirava profundamente, ainda mantendo o foco no horizonte quando pergunta:
— O que veio fazer aqui, Raven? Pensei que estivesse espionando a situação do reino de Aryan. Você é novo na equipe, não deveria negligenciar as suas obrigações.
— Voltei mais cedo do que o esperado. Quem diria que conseguiria informações tão rápido? — dizia seguido de uma risada descontraída. Raven parava ao lado do seu líder, virando o rosto para o vasto ducado. — Eu nunca me importei com as mortes e as torturas. Na verdade, até acho divertido! Mas por que ir tão longe?
O duque tinha um olhar distante, perdido em lembranças do seu passado.
— O objetivo de Sirius era me tornar uma cópia do Christian, mas por que ser igual à ele se eu posso ser melhor? Eu não serei o cão de guarda de nenhum membro arrogante da realeza. Eu serei aquele que estará no topo.
Os olhos de Raven brilham com a resposta, sem conter o ânimo.
— Ser o rei de Velorum... É um objetivo grande e honroso, como você! Isso será divertido!
O espião faz uma breve reverência antes de sair do escritório. Lorcan sentia a brisa matinal jogar algumas mechas do longo cabelo para trás. E mesmo cada vez mais próximo do seu objetivo, havia um vazio angustiante em seu peito.
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