DOIS | MOÇA
- O que foi...? - Angel me olhou assustado, com seus grandes olhos azuis, sua boca parou aberta num grande O.
Balancei a cabeça, freneticamente. Os air-bags explodiram em nossos rostos, bloqueando minha visão.
Abri a porta, o álcool, misturado a esse impacto contra o invisível, me deixaram um bocado tonta.
Tentando permanecer fixa ao chão - ou começar a me fixar -, fechei os olhos e senti o silêncio da rua e meus pés afundando em um mar inexistente.
Abri os olhos, num sobressalto, e encontrei o que havíamos atropelado. Um lobo cinzento estava caído à um metro e meio do Nissan vermelho de Angel - ele ama vermelho.
- Um lobo - murmurei o visível.
- Quê?
- Um lobo, Angel, nós matamos um lobo! - pus as mãos em frente aos olhos, não consigo ver mais a cena fúnebre a minha frente. A mancha de sangue no asfalto me deixou atônita. Sangue. Sangue. Muito sangue.
Ouvi o barulho da porta do motorista abrindo-se e dos passos de Angel no asfalto úmido.
- Não o matamos... - sussurrou ele, após cinco segundos do mais desconcertante silêncio. - Ele está respirando.
A voz de Angel ecoou por minha mente, como uma música POP:
Ele está respirando.
Respirando.
Respirando.
- Está machucado, talvez uma pata fraturada ou uma costela quebrada.
Machucado.
Machucado.
Quebrada.
- Ele vai ficar bem.
Bem.
Ele não vai ficar bem.
- Vamos, a natureza cuida disso.
- A natureza cuida disso? - repeti, abrindo os olhos e baixando as mãos. - Nós fizemos isso, Angie, nós temos que cuidar dele.
Angel passou uma mão pálida pelos cabelos tão vermelhos quanto o carro.
- O que você vai fazer? - ele olhou para a mancha de sangue espalhada no chão, como uma pincelada irregular. Sua paixão por vermelho talvez tenha achado aquilo até mesmo belo. - E não me chama de Angie. É Angel. An-gel.
Rolei os olhos.
- O que eu vou fazer? O que nós faremos! - puxei meu casaco e a mochila de An-gel pela janela do carro, e caminhei em direção ao lobo, sentindo meus saltos se desfazerem a cada passo.
- Cerise, não mexe nele! Pode ser pior - Angel se permitiu dar dois passos largos em minha direção.
- Cala a boca, Ethan! - grunhi, me abaixando à frente do animal. Tendo plena consciência de que o nome "Ethan", sendo dito em meio a uma estrada, causaria um grande estardalhaço na situação, que já não está lá essa maravilha.
Angel deu mais um pesado passo, apontando-me um dedo branco como neve.
- Não me chame de Ethan! - ele gritou.
- Ethan - sorri.
Abri a mochila e vasculhei em cada um dos bolsos, até encontrar, em meio a CDs e pequenos pacotes transparentes com pílulas e seringas, a garrafa de água.
Ethan vociferou, reclamando o quão importante é usar seu nome de guerra.
- Ethan é um nome que eu não escolhi, portanto não é meu! - deu voltas no mesmo lugar.
Molhei o casaco com a água e, cuidadosamente, limpei o pescoço e o rosto manchados de sangue do lobo, segurando o grito em minha garganta.
Observei bem a pelagem úmida - não há ferimentos em seu rosto, muito menos do pescoço. Analisei o animal, minuciosamente: patas no lugar, orelhas caídas, calda felpuda e intacta.
- Do outro lado - a voz do Angel encheu-se ao soar solitária, me deixando, ligeiramente, sobressaltada. - Na pata dianteira. Há um corte. Pode ver. É superficial. Eu sei que é.
Sem olhar para Angel, porém me perguntando como ele pode ter tanta certeza disso, reuni forças inexistentes para erguer a cabeça do lobo.
O sangue gotejou minha calça e atravessou o tecido, tocando o joelho.
Engoli seco.
Lancei um olhar significativo para Angel, e ele captou a mensagem silenciosa: preciso de ajuda para erguer o lobo.
Juntos, erguemos o lobo e o deitamos novamente, com o lado do corte virado para cima.
Um estilhaço de vidro estava fundo na pele.
Minhas mãos tremeram.
- Angie, Angie... Você... - gaguejei.
- Espere... Ele não vai sentir nada - Angel pegou sua mochila e dela retirou duas seringas embaladas num pacotinho plástico.
- O que você vai fazer? - segurei sua mão antes que ele pudesse abrir a embalagem.
- Nada. Isso é sedativo. Vai mantê-lo dormindo enquanto você... nós limpamos tudo isso - ele olhou para o carro e para o lobo e para mim. - Ele vai ficar bem. Não dá para confiar em mim só uma vez nessa sua vidinha?
Balancei a cabeça negativamente, mas permiti que ele fizesse o que queria fazer.
Ele vai ficar bem, repeti mentalmente.
Vai ficar bem.
Angel abriu os pacotinhos e, com cuidado, destampou as seringas revelado agulhas finas e de aparência malévola.
Ficar bem.
- Estão esterilizadas - advertiu.
Bem.
Ele enfiou a agulha próximo ao corte. O lobo se moveu sob minhas mãos. Angel enfiou a segunda seringa.
O lobo ficou imóvel. Sua pulsação quase sumiu.
Angel puxou o caco de vidro ensanguentado e o jogou longe. O vidro tilintou em algum lugar atrás de mim.
Silêncio.
- Angel? - chamei. - Ele... Ele está morrendo?
Angel emitiu um grunhido.
- N-não. Ele está sedado. As injeções estão causando efeito.
Silêncio.
Ele está sedado, tentei me convencer.
Esta sedado.
Sedado.
O corpo frio do lobo cinzento moveu-se sob minhas mãos, moveu-se violentamente sob minhas mãos.
- Angel!
Angel me olhou com seus grandes olhos azuis arregalados, escancarados.
- Merda, é uma convulsão!
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