016. Nós nascemos para morrer
— KANG; Seulgi.
A chuva continuava a cair ao nosso redor, formando poças que refletiam a luz dos relâmpagos distantes. Alucard ainda estava de pé diante de mim, sua presença constante, sólida, quase reconfortante, apesar do caos iminente. Vikter, com seu rosto marcado e suas palavras duras, observava o horizonte, como se já pudesse sentir o cheiro da destruição que nos esperava na Linha do Crucifixo. Respirei fundo, tentando reunir a coragem necessária para o que estava por vir. Absalão não era apenas uma criatura, ele era uma força de destruição, e agora, eu sabia, uma parte de mim o havia alimentado, dado poder. Mas havia algo que ele não tinha: meu último resquício de vontade, de resistência. Se eu caísse, seria lutando.
— Sairemos daqui antes que seja tarde demais. — Alucard falou com firmeza, quebrando o silêncio pesado entre nós. — Se ficarmos parados por mais tempo, ele vai perceber que estamos vindo. Ele sente suas intenções, Seulgi. Não podemos subestimá-lo.
— Ele sente minhas intenções... — Demorei alguns segundos para a total consciência. — O Laço de Sangue!
— O que disse? — Vikter me encara.
— Alucard e eu fizemos um pacto para segurar a barreira, o sangue de Alucard está me transformando em humana. — A incredulidade de minhas palavras é bizarro. — Meu coração está batendo, Alucard.
Alucard paralisou, seus olhos se arregalando com a surpresa. Ele olhou para mim, seus lábios entreabertos como se estivesse tentando processar o que eu acabara de dizer. O silêncio se tornou insuportável, quebrado apenas pelo som da chuva que caía incessante sobre nós. Vikter deu um passo para trás, seu olhar sombrio como se já soubesse o peso do que aquilo significava.
— Seu coração... — Alucard murmurou, quase como se não acreditasse. Ele deu um passo à frente, seus dedos tremendo levemente enquanto estendia a mão em direção ao meu peito. — Deixe-me sentir.
— Isso não deveria estar acontecendo — Vikter sussurrou, seus olhos fixos em nós.
— Mas está. Drácula casou-se com uma humana, Alucard é filho de uma humana.
Eu podia sentir o tremor em suas mãos, o peso da verdade caindo sobre nós como as gotas da chuva. O Laço de Sangue estava nos transformando, mesclando nossas essências de maneiras que nunca imaginamos. Mas por mais que isso trouxesse um novo tipo de poder, também significava fraqueza. Eu estava vulnerável agora, e Absalão poderia se aproveitar disso.
— Talvez haja uma chance de romper esse ciclo. Se eu me tornar completamente humana, posso usar isso contra Absalão.
— Isso é loucura — Vikter interrompeu, seus olhos ainda carregados de desconfiança. — Humanos são fracos, frágeis. Seulgi, você está se colocando em uma posição de risco maior.
— Ele não pode saber — Alucard cortou, sua voz firme, porém carregada de preocupação. — Seulgi está certa. Isso pode nos dar uma vantagem, mas também pode nos destruir. Precisamos ser cuidadosos.
O silêncio que se seguiu era tão pesado quanto a chuva ao nosso redor. Eu podia sentir o olhar de Vikter queimando sobre mim, sua mente calculando cada possível consequência de nossas escolhas. Ele tinha razão, eu sabia disso. Mas, ao mesmo tempo, eu sentia que essa transformação — essa mudança que estava ocorrendo em mim — era algo mais do que uma simples vulnerabilidade. Era um novo tipo de força.
(...)
A névoa densa e cinzenta se espalhava pelo chão, enrolando-se ao redor dos pés de Absalão enquanto ele estendia sua mão ensanguentada em direção ao topo da Linha do Crucifixo, a linha magnifica e perigosa que liga os céus até o chão. O sorriso cruel em seu rosto deformado revelava caninos afiados, enquanto seus olhos brilhavam com uma sede insaciável por destruição. O sangue escorria de seus dedos como se fosse uma extensão de seu poder, pingando no chão de pedra fria, cada gota um lembrete do caos que ele havia causado.
Apenas eu estava ali, enfrentando-o, com o vento soprando em meu rosto e o eco do silêncio mortal que nos cercava. A energia ao redor da Linha do Crucifixo pulsava como um coração sombrio, ressoando com uma força que poderia destruir tudo. Sentia a pressão crescente, como se o ar estivesse carregado com uma força invisível, me sufocando, me testando. Mas, ao longe, do outro lado do salão sombrio, Vikter e Alucard estavam de joelhos, escondidos nas sombras. Seus corpos exaustos estavam cobertos de cicatrizes e marcas de uma batalha que parecia interminável. Eles observavam, esperando o momento certo. Sabiam que, se fossem descobertos, tudo estaria perdido. Absalão não poderia perceber sua presença ainda, não antes que tivéssemos uma chance de realizarmos o ataque surpresa que planejamos.
O silêncio era quase palpável, quebrado apenas pelo som gotejante do sangue de Absalão e pelo ruído fraco da respiração ofegante de Alucard. Mesmo de onde estavam, podiam sentir a maldade emanando dele. Era quase sufocante, uma escuridão que parecia se infiltrar em cada recanto do espaço.
— Eu estou aqui, Absalão. — Declarei ao ficar no centro. Segurei firme o punhal da Kaliban tão firmemente que pude sentir as unhas tentando ultrapassar a luva.
Absalão virou-se lentamente, seu olhar cruel pousando sobre mim com um interesse maligno. Seu sorriso se alargou ainda mais, seus olhos brilhando como brasas, enquanto sua voz ecoava, grave e distorcida, pelas paredes de pedra.
— Ah, finalmente — Ele murmurou, a satisfação evidente em seu tom. — A única tola o bastante para se colocar diretamente no caminho do inevitável.
O sangue continuava a pingar de sua mão, e a névoa ao redor dele parecia se agitar, respondendo aos seus movimentos, como se fosse parte de sua própria essência. A Kaliban pulsava em minha mão, o punhal antigo sussurrando memórias de batalhas travadas há séculos, de vidas ceifadas e sacrifícios feitos em nome de uma causa maior. Meu coração batia com força, a mortalidade era uma constante lembrança de que o tempo estava correndo.
— Há um coração... — O tom cavernoso arrasta. — Dentro da minha criação.
Seus olhos faiscavam, e a névoa ao redor dele começou a se expandir, serpenteando pelo chão como sombras vivas, ameaçando engolir tudo ao redor. O poder que emanava dele era esmagador, e por um momento, minha respiração falhou. Mas eu não podia recuar. Não agora. Não depois de tudo que havíamos passado para chegar até ali.
— O que te faz acreditar que tem o direito de estar aqui, de lutar contra o inevitável? — A voz de Absalão era um rugido calmo, carregado de desprezo, enquanto ele avançava um passo na minha direção.
— Rendição. — Me ajoelhei pacificamente. Quando percebo, o meu pingente estava ali, o sangue de dentro borbulhava em fervor.
— Rendição? — Absalão soltou uma gargalhada sombria, o som ecoando pelas paredes de pedra enquanto ele observava, incrédulo, a minha postura ajoelhada.
— Entrego a ti a própria Kaliban, eu, Seulgi Kang. — O que te faz acreditar que tem o direito de estar aqui, de lutar contra o inevitável? — A voz de Absalão era um rugido calmo, carregado de desprezo, enquanto ele avançava um passo na minha direção.
Absalão parou de gargalhar, seus olhos se estreitando com uma mistura de surpresa e desconfiança. Ele avançou um passo mais perto, a névoa ao seu redor se contorcendo como uma criatura viva, tentando se infiltrar nos espaços ao nosso redor. Seu rosto sombrio parecia examinar cada movimento meu, procurando a fraqueza por trás da minha rendição.
— Mas se eu me render, quero uma troca, justa assim como você ensinou há milênios como precisamos sobreviver. — Senti a pulsação do pingente ao redor do meu pescoço intensificar-se.
O Criador ficou estático, sua expressão escurecendo com desconfiança, mas a menção de uma troca parecia prender sua atenção. A névoa ao seu redor desacelerou, como se aguardasse a decisão de seu mestre, contorcendo-se de maneira sutil ao redor de seus pés. Seus olhos, brilhando com aquele vermelho profundo e sedento, me encararam com uma intensidade que parecia cortar o ar entre nós.
— Uma troca, Seulgi? — Ele repetiu, seu tom agora mais controlado, quase curioso.
Senti a pulsação do pingente ao redor do meu pescoço intensificar-se, o calor emanando dele como se estivesse vivo. A Kaliban ainda pesava em minha mão, mas eu mantinha o punho firme, sem demonstrar fraqueza. A verdade é que eu sabia o quanto ele valorizava a noção de "justiça", mesmo que sua versão fosse distorto pelo tempo e pela malícia. Se havia uma maneira de ganhar tempo, de nos dar uma chance, seria com essa proposta.
— Minha rendição, em troca da libertação de Irene Joo.
— Irene Joo? — Ele murmurou, com um tom carregado de desdém. — Interessante... Você está disposta a se render por uma simples humana. Eu me pergunto o que faz você acreditar que ela vale tanto assim.
O peso de suas palavras parecia afundar no ar, carregando uma ameaça sutil, mas eu não recuei.
— Ela vale mais do que você jamais imaginaria, — Declarei, a Kaliban em minhas mãos parecendo vibrar em resposta à minha determinação. — E você sabe disso, ou não estaria tentando mantê-la aprisionada como a casca para a criatura que você criou.
O sorriso de Absalão desapareceu por um breve momento, e sua expressão se tornou mais séria, como se a realidade de minha proposta começasse a penetrar em sua mente distorcida. Vagarosamente ele virou de costas, sua mão estendeu-se para cima, o brilho da Linha passou a brilhar com mais exatidão. Absalão permaneceu de costas, com sua mão erguida em direção à Linha do Crucifixo, o brilho que emanava dela agora pulsava com uma energia ainda mais intensa. A névoa ao seu redor parecia responder ao movimento, contorcendo-se e se espalhando como se estivesse viva, enquanto o ar ficava mais pesado, quase insuportável. Senti a tensão aumentar no ambiente, e por um breve segundo, questionei se ele aceitaria a proposta ou me esmagaria ali mesmo.
Minha postura é rígida, as mãos apertadas em seus braços de maneira quase imperceptível, enquanto ela luta para manter a compostura diante do veneno das ações de Absalão. No topo de minha cabeça sinto a presença fantasma de Alucard.
— Você não é digna de toda linhagem por carregar Kaliban! — Ele afirma, cada palavra carregada de veneno e convicção. Ele dá um passo adiante e, com um olhar desafiador, faz a acusação final que parece cortar o ar como uma lâmina. — Bastarda de uma nação! MINHA PRÓPRIA NAÇÃO!
O impacto dessa frase reverbera pelo salão como um trovão. A ofensa é clara e brutal. Meu rosto endurece, sentia meus olhos arderem com uma fúria contida. Mas Alucard, impiedoso, e com um tom quase casual, mas cheio de ameaça latente, diz em minha cabeça: "Quero que ele repita estas palavras novamente."
— Uma guerreira morrerá, mas não suas ideias. — Minhas palavras são frias.
O Criador hesita, mas o orgulho e a raiva o cegam. Ele repete a acusação, o que acaba selando seu destino. Antes que o tempo possa reagir, resolvi agir. Em um golpe rápido, silenciei Absalão brutalmente, cortando sua cabeça de modo tão rápido quanto letal. O sangue escorre pelo chão do salão, e o corpo do Criador cai, sem vida.
— Isso é para o povo, e o bem, viva a nação feliz! — Urrei ao levantar a espada.
A sombra de Alucard desce até mim, o sangue do vampiro que nos criou derrama em nossos solados, as criaturas que ele trouxera tomem conta do salão em choque pelo que fiz. O ambiente fervilhava de expectativa.
— O Criador está morto. — Declarei com a voz firme, ecoando pelo salão imerso em silêncio. A cabeça decapitada de Absalão rolava pelo chão de pedra fria, deixando um rastro de sangue denso.
O choque no ambiente era palpável, as criaturas que ele controlava, antes indomáveis, agora estavam estáticas, seus olhares fixos na figura caída de seu mestre. O poder que ele outrora exalava, agora se dissipava no ar, como se sua morte tivesse rompido o véu de escuridão que envolvia o local.
— Você fez o impensável, Seulgi, — Ele sussurrou, sua voz trêmula de emoção. — O Criador... finalmente derrotado.
Antes que eu pudesse responder, senti a Kaliban em minhas mãos vibrar.
— Joo continua controlando a fenda, preciso acabar com isso. — Minha voz soa vacilante. Alucard aproximou-se de mim, seus passos silenciosos no chão ensanguentado. Ele colocou a mão em meu ombro, sua presença fria, mas, ao mesmo tempo, reconfortante. — Voltarei o mais breve o possível para meu pai e minha irmã.
O ambiente ainda estava envolto em uma tensão densa, embora o terror que Absalão emanava estivesse desaparecendo lentamente. As criaturas que ele controlava permaneciam estáticas, como se tivessem perdido toda a vontade de lutar sem seu mestre para guiá-las. O salão, antes um campo de batalha, agora era um cenário de silêncio carregado. Alucard assentiu, seus olhos se encontrando com os meus, e pela primeira vez, vi algo como compreensão em sua expressão séria. Ele sabia o que estava em jogo, tanto quanto eu. A fenda que Joo controlava era uma ameaça maior do que qualquer um de nós poderia imaginar. E, apesar de tudo, essa era a minha batalha. O destino de muitos dependia do que eu faria a seguir.
— Por isso, preciso ir agora, — Respondi, puxando a Kaliban com mais força, sentindo sua energia fluir para dentro de mim. — Cada segundo conta.
Com um último olhar para Alucard e Vikter, virei-me e caminhei em direção à saída do salão, o som dos meus passos ecoando nas paredes. Eu sabia que não poderia falhar. A linha entre vitória e destruição era tênue, e o destino de muitos dependia das escolhas que eu faria a partir desse momento.
(...)
A luz cintilante, o carmesim que ia embora gradualmente junto a natureza que renascia após o caos, ultrapassei subindo em direção ou topo da fenda onde Irene Joo tinha sua mente e corpo sendo usado por todo acontecimento de Absalão. Novamente voltei ao que parecia vazio, impressionante como a criatura criou um ambiente tão diferente do que há embaixo. De certa forma, me senti temerosa do que irá acontecer. Estou em uma noite qualquer, a noite estava envolta em uma névoa silenciosa, as luzes do castelo ao longe brilhando como uma promessa inalcançável. As paredes antigas do jardim estavam cobertas de vinhas e rosas-vermelhas, cujo perfume doce e intenso pairava no ar, um contraste cruel com a tensão que crescia entre nós duas.
Irene, vestida em seu esplendoroso vestido branco, segurava uma lanterna cujo brilho fraco mal rompia a escuridão ao redor. Seus olhos suplicavam enquanto sua mão estendida até mim, as segurei firmemente, caminhávamos à frente, com os passos lentos, mas decididos.
— Seulgi, por favor... — A voz de Joo soou baixa, quase afogada pelo som distante do vento e dos corvos que sobrevoavam o céu escuro. — Não vá.
Meu rosto franze, não há sentido em suas palavras, cada movimento seu era gracioso, mas suas palavras... "Não vá", reverberavam na minha mente, como se o significado por trás delas estivesse além do que eu poderia entender naquele momento. Olhei para ela, confusa, meus olhos analisando seu rosto em busca de respostas. Havia dor em seu olhar, mas também algo, além disso — uma súplica que me atingiu como um golpe. Por que ela estava me pedindo para ficar? Por que, depois de tudo que enfrentamos, depois de todo o sacrifício e das batalhas, ela agora hesitava? Minha missão estava clara desde o início: destruir o último laço que conectava Irene à criatura que a aprisionava e dar fim àquela escuridão que nos assolava.
— Seulgi, eu preciso de você aqui. — Ela disse novamente, e dessa vez havia um tom de urgência.
Então percebi que naquele mesmo instante não era ela. Meus pensamentos começaram a se embaralhar, como se a própria realidade ao redor estivesse se distorcendo. Olhei ao redor, para as rosas-vermelhas, para o castelo ao longe, para o céu que parecia apertar seus punhos sombrios em volta de nós. Tudo aquilo estava errado. Apertei sua mão com força, tentando encontrar minha própria coragem. Olhei em seus olhos, tentando desvendar a verdade por trás daquela figura. O vestido branco, os cabelos caindo suavemente sobre os ombros, o semblante angelical — tudo isso parecia tão certo e, ao mesmo tempo, tão errado. As vinhas e rosas ao nosso redor pareciam se mover, como se a própria natureza estivesse conspirando para me confundir.
"Não é ela...", pensei, e meu coração apertou ao perceber que estava sendo enganada, que a verdadeira Irene ainda estava presa, ainda aprisionada por aquela escuridão que juramos destruir. Senti meu estômago revirar, a dor de estar diante de algo que tentava desesperadamente me afastar do caminho correto. A criatura, a coisa que estava usando sua forma, parecia conhecer meus medos, meus anseios, e estava brincando com eles, me testando de todas as formas possíveis.
Apertei sua mão com mais força, meus dedos afundando em sua pele enquanto eu reunia a coragem para falar.
— Você não é ela. — Minha voz saiu trêmula, mas firme. Puxei a lâmina encostando em seu queixo.
A lâmina cintilava à luz da lanterna, fria e implacável, encostando levemente no queixo da impostora. Seus olhos, tão semelhantes aos de Irene, pareciam endurecer, o brilho de súplica se dissolvendo, dando lugar a algo mais sombrio e perigoso. Senti a Kaliban vibrar em minha mão, como se respondesse ao meu desespero, como se também soubesse estarmos diante de algo muito maior.
A falsa Irene não recuou. Em vez disso, sorriu. Um sorriso lento, carregado de malícia, distorcendo aquele rosto que, há poucos instantes, era a única coisa que eu queria proteger.
— Seulgi... — Sua voz soou rouca, carregada de ironia. — Tão tola. Acha que pode me afastar? Matar o amor da sua vida?
Minha mão, ainda firme no cabo da espada, tremeu por um breve instante. O peso de suas palavras, de tudo que eu vinha carregando desde que essa jornada começou, parecia mais denso do que nunca. "O amor da sua vida" — as palavras dela reverberaram dentro de mim, perfurando minhas defesas como flechas afiadas. Era Irene? Ou era a criatura, usando a verdade contra mim? Minha mente estava um caos, meus sentimentos tão confusos quanto a névoa que nos envolvia. Eu queria acreditar que Irene ainda estava lá, presa, esperando por mim. Mas aquelas palavras, aquele sorriso venenoso... era como se estivessem zombando do que eu sentia, me torturando com o que eu não podia admitir nem para mim mesma.
— Você não é ela. — Tentei afirmar, mas minha voz soou fraca, quase como se eu estivesse tentando convencer a mim mesma. A lâmina em minha mão vibrava cada vez mais, Kaliban parecia querer agir por mim, mas minhas emoções estavam me imobilizando.
— Você pode cortar minha garganta, rasgar minha carne, mas nada disso mudará que ela sempre foi sua fraqueza. E agora... sou ela.
Senti o ar fugir dos meus pulmões, como se ela tivesse me golpeado com as palavras. Minhas mãos estavam trêmulas agora, o peso da espada parecendo dobrar. Era verdade? Irene sempre fora minha âncora, minha razão para lutar. Mas agora, diante da criatura que usava seu corpo, sua voz, seus olhos... eu não sabia mais onde começava a verdade e onde terminava o engano.
— Não... — Murmurei, sentindo lágrimas ameaçarem arder em meus olhos. Eu não podia ceder. Não podia deixá-la ganhar. Irene ainda estava lá. Ela tinha que estar.
— Você sabe que estou certa. Você nunca quis salvar o mundo, Seulgi. Só queria salvar ela. E agora, veja no que isso a transformou. Veja o que você se tornou por causa dela.
Eu já não sabia o que era real. A linha entre amor e desespero, entre esperança e ilusão, estava se desfazendo diante de mim. Mas, no fundo do meu coração, uma última centelha de determinação brilhou. Eu precisava acreditar.
— Vou libertá-la. — Sussurrei, mais para mim do que para ela. E só havia um único jeito disso acabar. — Porque você e eu nascemos para morrer.
E, com um movimento rápido, puxei a lâmina, trouxe-a para mim, Kaliban mirou em nossos corações. O cheiro doce das flores preenchia o ar, mas a beleza do momento não conseguia penetrar a dor insuportável que envolvia o grito de Joo, o fogo da criatura havia apagado. Matei a criatura, e estava matando Irene. Segurei-a nos braços com uma mistura de desespero e ternura, o sangue fresco manchando nossas roupas e mãos. Os dedos de Irene estavam frios agora, a pele outrora quente e suave parecia cada vez mais distante do calor da vida. Pressionei o rosto contra os cabelos claros de Irene, tentando desesperadamente memorizar cada sensação, cada cheiro, cada segundo que ainda restava.
A noite envolvia tudo ao redor, abafando o som do vento e das flores distantes, enquanto nossos corpos caiam sob a grama-fina. O meu rosto estava coberto de lágrimas silenciosas, caindo uma a uma, desafiando o desespero crescente dentro de mim. O toque suave de Irene em meu rosto era como uma lembrança distante de algo que um dia fora bonito, algo que agora parecia tão impossível de recuperar quanto o próprio tempo. No centro de nossos corpos, uma espada. A lâmina perfurava nós duas, atravessando nossos peitos como um laço cruel que nos unia em dor. O punho de aço reluzia à luz noturna cravando-se fundo, enquanto o sangue fluía para fora.
— Me perdoa. — A minha voz saiu num sussurro entrecortado, o peso da culpa evidente em cada sílaba.
— Não havia outro jeito... — Ela murmurou, sua voz falhando, engolida pela dor. — Está tudo bem, querida.
— Eu não queria... — Solucei, minhas mãos manchadas de sangue, agarrando-a firme. — Eu não queria que terminasse assim.
— Você... sempre foi... minha salvação. — Joo apenas me olhou com ternura. — Só assim... poderíamos... escapar... do destino que nos prendia.
Removi Kaliban de uma vez, o suspiro de sufoco nos liberta, mas não da morte. Movi seu corpo para deitar lentamente no chão, suas mãos totalmente enfraquecidas seguram meu rosto. Os cabelos dela, escuros e encharcados, espalhavam-se como seda negra sobre o chão frio, misturando-se à terra molhada. Ela me encarou com lábios entreabertos puxando meu rosto para perto, inclinei lentamente, nossos lábios quase tocando os de Irene. Segurei a mão de Irene com desespero, apertando-a contra meu rosto, como se o calor de seu toque pudesse dissipar a dor que me corroía por dentro.
— Eu te amei, Joo... sempre te amei.
Irene fechou os olhos por um breve instante, permitindo que uma lágrima solitária escorresse. Quando os abriu, havia uma decisão final em seu olhar, uma aceitação amarga daquilo que nós duas temia. Ela se inclinou para mais perto, seus lábios roçando suavemente minha boca em um gesto que parecia um adeus silencioso.
Meu corpo em si estava enfraquecendo, eu havia perfurado o coração que havia se tornado humano, os fios brancos do meu cabelo se tornaram negros como antes. A fraqueza gentilmente me abraçou, e eu estava nos braços de Joo, nós duas morreríamos ali.
— Eu também te amei, Seulgi... — Sua voz era quase um sopro, uma confissão tardia e cheia de arrependimento.
E, no silêncio pesado da noite, restaram apenas lágrimas, uma despedida que nunca deveria ter acontecido. O último beijo doeu mais do que a lâmina. E naquele momento, com o gosto de sua presença em meus lábios, percebi que ela sempre seria parte de mim, mesmo que o destino tivesse decidido nos separar.
— Estaremos juntas, sempre... — Sussurrei contra seus lábios, mas sabia que a realidade era mais cruel. Tudo isso havia chegando ao fim.
FIM.
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