004. Reverie
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— KANG; Seulgi.
Nunca pensei que Kaliban afetasse de forma nada considerável a mente de uma pessoa. Todas as escrituras sobre a espada estão espalhadas na enorme mesa, nada menciona sobre afetar humanos, ou até mesmo espíritos de vidas passadas, e passei a me isolar novamente em busca de uma resposta. Durante quatro dias esperei pela resposta da mulher, sua mente deve ter se questionado sobre o que realmente aconteceu. Minhas unhas batucam na madeira de forma pensativa, e sei que eu não havia me entrado em sua mente naquele dia, graças a Yeri. Que por insulto a mim, bloqueou minha entrada usando magia contra vampiros.
Contei três batidas lentas na porta de carvalho, proferi um “entre” cavernoso, os passos arrastados indicava ser um cão vampiro. Me virei em direção e constatei que não usava a forma monstruosa que são, mas sim com a casca humana.
— Por que está assim? — Questiono.
— Há uma criatura humana a sua espera. — Minha sobrancelha fica arqueada ao ouvir.
— Ótimo, peça para aguardar. — Vejo o cão indo embora, fiquei de pé e retirando aquelas escrituras da mesa.
Meus passos foram silenciosos ao sair, me espreitei entre paredes como um fantasma para conseguir observá-la, Irene se sentia ansiosa. A humana cruzava as mãos e apertava levemente os dedos, o casaco bege e roupas claras deixava-a ter aparência de uma estudante romena, e os cabelos estavam meio presos deixando-os levemente bagunçados junto à franja. Voltei ao início da escadaria, aos poucos fui descendo e enxergando o piso de madeira escura, assim que chego até o último degrau, ela me encara com curiosidade.
Como pode um humano com a casca que fez o inferno e os céus colidirem de forma proibida ser tão doce? É estranho querer beijá-la novamente para causar-me o primeiro tormento de minha mente. Não gosto dessa sensação.
— Você veio. — Digo primeiro ao vê-la com mais clareza.
— Você precisa, senhorita Kang. — Sua voz é leve, doce como a ternura do mel, ela se aproxima e estende a mão. Quando seguro, sinto a quentura e maciez ao mesmo tempo. — Pensei muito e aqui estou.
Não pude deixar de sorrir e me agradar por dentro que ela por fim desceu às margens da minha necessidade. Eu ainda segurava sua mão, então levemente sem dizer absolutamente nada, a guiava em direção a primeira escadaria que levava para o andar debaixo da morada. Fascinada, era assim que eu via o seu rosto, por incrível que pareça, aquela sua curiosidade me instiga e ao mesmo tempo é incômoda. Ouço um riso soprado e talvez nervoso vindo dela.
— O que acha de tão engraçado, senhorita Joo?
— Oh, é bonita sua residência! — Ela inicia, mas sinto que ela quer proferir. — É praticamente um monumento histórico, a marquise de entrada, vitrais, escadaria interna monumental em madeira de carvalho, é tudo perfeito e conservado. Herança de família?
— Posso dizer que sim. — Começo a contar, paramos em frente a um enorme quadro de Maya com o seu vestido vitoriano azul e um espartilho que afinava sua cintura. — A casa era um terreno comprado no século dezoito por Vladimir Athanasovici, um advogado e senador liberal na época, mas a construção em si terminou em 1911.
— Nossa, então é bastante tempo. — Ela diz totalmente espantada.
— Digamos que a família Athanasovici demorou cem anos para que tudo estivesse em perfeito estado. Eles faziam parte da grande burguesia da época. — Explico, minha mente lembrava vagarosamente o rosto de cada um dos Athanasovici, não é fácil de esquecer. — E minha família também, eles conheceram o doutor George Athanasovici, o primeiro médico legista da capital e fundou em 1857 junto com o médico Carol Davila a Escola Nacional de Medicina de Bucareste. Mas apenas Carol recebeu os créditos por fundar a universidade.
— E o que acha dele ter feito isso?
— Não posso dizer que seja tolice. — Me afasto ainda na intenção de sair do corredor. — Mas também digo que George não merecia isso, e se pesquisar em fóruns, não há muito sobre ele ou a família. É como se todos tivessem sido apagados e suas participações nunca aconteceram.
Eu não saberia por quanto tempo iria alimentar a curiosidade dela, não demoraria muito até que percebessem que há uma humana na casa, então precisava continuar os passos até o Círculo, giro as duas maçanetas e as duas portas se abrem lentamente sem o ranger da madeira. Irene caminha lentamente enquanto adentra, acima dela, o símbolo de Atëera, a estaca com a lua desenhada no teto sem que ela enxergasse. Atëera precisamente é uma magia de sangue de Yeri, usada para trancar o cheiro e presença de humanos, contanto que sua aura fosse largada como o espírito no mundo lá fora, aguardando o corpo estar longe do símbolo.
Seus olhos brilham ao ver as estantes antigas, lustres medievais rústicos, pinturas e até mesmo esculturas. E uma delas sou eu. Quando ela se aproxima, toca gentilmente, a figura gritante coberta por véu e espinhos tentando se soltar da dor. Mas seus olhos não se cansam até que ela repara duas vezes o quadro e a escultura.
O véu que passou a me cobrir por séculos estava em uma pintura, meu pai sempre me dizia para mentir sobre o véu, e a mentira sobre a porcaria de um matrimônio me dava nos nervos. Nunca precisei casar-me para viver livre do véu. Mas então surgiu a Tríade de Drácula, eles nos chamavam de noivas de Drácula, e precisei abandonar o véu vermelho. E como eu mataria usando aquela coisa?
— Estou impressionada com as pinturas, esculturas e… uau! É incrível. — Ela sorri, então me encara. — E quem é o artista por trás dessas pinturas?
Eu não respondi, a resposta estava na ponta da língua, e quando ela chegou próximo a pintura da moça de branco, seus olhos percorreram mais rápidos que os dedos ao tocar. O rosto riscado é o que mistério resolveu fazer com minhas mãos, mas sua figura pintada a mãos em um quadro que virou minha cabeça, lhe deixa confusa.
— O rosto riscado… — Ela pontua. — Onde adquiriu as pinturas?
— Foram feitas por mim, senhorita. Cada uma delas.
Seus lábios estão entreabertos, posso enxergar as pestanas longas mover vagarosamente, eu poderia pintá-las novamente. Mas a faria como um anjo, mas um anjo com asas negras como a escuridão, por que é isso que ela é. Um anjo de asas negras que atrai como imã para o espaço vazio. Ah, como eu queria que ela soubesse que é chamada de traidora, e como ela traiu minha confiança e machucou meu coração inexistente com uma estaca.
Mas aquelas pinturas e todos os desenhos da sua face me tornaram uma artista em segredo, e ela é minha musa.
(...)
— JOO; Irene.
Meu falatório me cansa, estamos sentadas de frente uma da outra, há papéis e livros espalhados na mesa. Os mais antigos papéis que já toquei em toda minha vida. Aquele cheiro de livros antigos misturado com rosas inexistentes invadem minhas narinas de forma impulsiva, estou lendo e não consigo me concentrar, quando repentinamente, gotas de sangue inundam o papel. Me assusto com o acontecido, a caneta que está em minha mão cai no papel aumentando a mancha.
Vejo o vulto vir em minha direção com um lenço, acabo fechando o lado da narina que sangra, seu rosto demonstra preocupação. Seus dedos tocam meu rosto conferindo, confesso que a destreza de seus dedos gélidos fizeram meu coração palpitar, talvez seja pelo susto. A Kang afasta os livros da minha frente e senta na quina da mesa bem próxima a mim, sua voz explicava algo que eu não conseguia ao menos prestar atenção a não ser o seu rosto. A iluminação brilhava suas íris, e pude enxergar com clareza o círculo vermelho que apenas o sol deixava claro.
— Como se sente? — Ela pergunta, não demonstra um sorriso, mas ainda mantém suas mãos em meu rosto.
— Estou bem, deve ser o clima. — Solto um riso envergonhado.
E quando seu indicador toca em minha testa, pela primeira vez de muitas outras vezes, aquela foi a maior certeza de que o lugar certo era ali. Quero me aproximar secretamente, invadir aquele espaço, vejo sua pupila dilatada. Mas ao invés da minha vontade de aproximar, seu rosto vagarosamente vem em direção ao meu.
— Precisa ter cuidado. — Ela sussurra. Seu hálito é quente, menos suas mãos, que acariciaram minha pele com a certeza perfeita.
Eu poderia muito bem ter beijado-a, ou era isso o que minha mente pensava que ela iria fazer exatamente o mesmo, o que eu estou pensando? Na verdade não sei. Minha mente deveria calar a boca por cinco minutos ao invés de balbuciar sobre ações totalmente fora de questão.
— Encontrou algo? — Ela volta a sentar-se, suas mãos puxam as mangas da blusa social, então reparei em sua cintura. Novamente eu a vejo com corset.
— Bem… — Fico pensando no que dizer. — Para encontrar o artefato, preciso saber onde exatamente foi forjado, muitas lâminas evoluíram por volta do final da Idade do Bronze, localizar é o mais preciso. Você sabe?
— Antiga Transilvânia, anos antes do século treze.
Ela explica, meus olhos pestanejam lentamente, a dor de cabeça parece sugar todo meu sangue. Me recompondo aos poucos, pego um livro em cima da mesa, descontraída, não há um autor ou até mesmo referência. O livro fora escrito à mão. Há desenhos e rabiscos, palavras e significados fora do idioma.
— Deve ser fascinada por vampiros, senhorita Kang.
— Seulgi. — Ela me corrige. — Vampiros são criaturas belas e sobrenaturais, senhorita Joo.
— Eles não existem, são uma farsa, assim como a Condessa Elizabeth Bathory que foi a maior serial killer sádica que matou 650 camponesas para usufruir o sangue. — Dou uma risada ao trazer referências. — Bela Kiss, o soldado insólito da primeira guerra mundial que ficou conhecido como vampiro após todos os seus crimes, vítimas eram encontradas com mordidas. Outra farsa.
Sinto um arrepio percorrer minha espinha, o frio invade minhas costas mesmo estando coberta, a distração de volta a leitura deixou isso de lado. Penso, brevemente, em pesquisar museus.
— Afinal, por que quer tanto esse objeto? — Meus ombros se direcionam até a borda da mesa cruzando os braços.
Isso soa estúpido pra caralho, mas eu não tinha ideia o que um artefato tão desconhecido precisa ser encontrado, não me parece ter valor sentimental. E muito menos é um artefato para tornar uma pessoa gananciosa.
— É familiar. — Sua resposta foi rápida.
Desde que aquelas imagens rodearam minha mente de forma estranha, eu conseguia claramente me lembrar de como é a lâmina. Mas eu não tinha certeza. Peguei em questão um papel largado, o lápis escondido pelas coisas espalhadas foi encontrado, o esboço se iniciou com pequenos detalhes e terminou com alguns riscos, quando entreguei a ela a folha, seus olhos me encararam diversas vezes enquanto olhava o papel.
— De onde tirou isso? — Ela questiona assim que ergue o papel em minha direção.
— Essa é a lâmina, não é? — Meu olhar interessado queria respostas, não demorou muito para ela entregar suas palavras a mim.
— De fato é, mas não entendo… — Seu cenho franzido permitiu-se pensar até que ela volta a dirigir-se até mim em questionamento. — Como você desenhou a lâmina que ao menos não te apresentei ainda em esboço?
Certo, isso não estava na minha mente em explicar esse fato que simplesmente é uma experiência da minha imaginação maluca.
— Eu vou ser realista e por favor, não pense que sou maluca, pois não é a primeira vez que essa lâmina surge em minha mente. — Estou receosa o suficiente ao ponto de arrancar os fios da minha cabeça.
Mas a verdade é que, desde criança tive sonhos com essa lâmina, e até chegar minha adolescência aquilo simplesmente sumiu. A primeira vez que a imagem surgiu na minha cabeça novamente foi quando ela veio até a minha casa e a situação mais vergonhosa aconteceu. Passei a investigar em fóruns de coisas ilegais, até que conheci um livro escrito pelos irmãos Dimitroir; Ludwig, Lenhard e Lorath. Três padres de uma linhagem desconhecida que matavam pessoas que eram acusadas de vampirismo.
Os Dimitroir eram capazes de tudo, no livro eles até ensinam como domar um demônio e como a disciplina é eficaz para eles, e após o sumiço dos vampiros, os irmãos buscaram outras criaturas sobrenaturais. Até que eles escreveram sobre alguém chamado Absalão, o Criador de toda humanidade vampira, mas que é perigoso demais para sua criação. No entanto, eu me perguntava constantemente sobre esse criador, algumas páginas estavam faltando nesse livro, mas o esboço dessa lâmina estava lá intacto com algumas manchas de ceras de velas em uma folha escondida.
— Há um livro que eu comprei aleatoriamente na internet que fala exatamente dessa mesma lâmina. — Meu indicador aponta em direção ao papel. — Não sei se isso é fictício, mas sei do que estou falando. A imagem desse artefato não é desconhecido para mim.
— E por que não, senhorita Joo?
— Porque aos sete anos eu sonhei com uma lâmina brilhando em cima de uma enorme pedra, havia uma guerreira que manobrava o objeto com saciedade, no outro dia acordei e contei aos meus pais. — Fui franca em minhas palavras baseadas em um sonho de criança. — E acredite, meus pais diziam que eu estava vendo filmes demais, fiquei de castigo até provar que não estava sonhando com aquilo novamente.
É impressionante que ela sempre está atenta em minhas palavras, não importa a bobagem, mas ela me ouve atentamente em cada detalhe.
— Você pode ter sonhado com isso, mas me diga, de que livro você está falando? — Ela me questiona.
— O Diário dos Dimitroir.
Ficamos em silêncio, de fato, eu não sabia o que aquele livro significava além de histórias que aqueles três homens escreviam.
— E a guerreira, o que sabe sobre ela? — Seulgi desta vez quebrou o silêncio, eu sabia pouquíssimo da existência da mulher em meus sonhos.
Eu sempre tive a sensação de alma antiga, pode parecer loucura mas acredito nessa superstição, quando estamos vivendo nossa última vida, a calmaria e o descanso é o que necessita para a alma após viver a primeira vida com curiosidade e agitação. Perguntar sobre a guerreira misteriosa vai além do que posso fazer.
— Ela empunhava a lâmina com formosura, no entanto, em lágrimas, eu enxergava as lágrimas caindo, mas seu rosto não. Não consigo lembrar de rostos, são apagados, eu sinto muito mas é o máximo que consigo lembrar.
— Não é muito, mas é o suficiente para que possamos descobrir algo.
Hesito em continuar, permanecemos inquietas, eu costumava ler sobre a família Kang e o quão misteriosa é suas riquezas. Agora com a procura de uma lâmina desconhecida aumenta todo o mistério que envolve. Meus olhos percorreram o alto da casa, a janela suntuosa dava a visão de Bucareste e tudo o que ela possui, talvez se a intensidade dos meus sonhos não me trouxesse até aqui. Onde eu estaria?
Eu não culpo meus sonhos, mas me intriga suas vontades e questões.
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