Das Coisas Intangíveis
O grande problema da sociedade atual – é sempre bom apontar O grande problema da sociedade atual, como se fosse apenas um, como se não fossem vários – é a descentralização de tudo. Preste atenção ao seu redor e perceba que não existem mais responsáveis. Ninguém tem culpa de nada.
Seu banco te causa uma irritação. Quem é seu banco? Quem é o Itaú? Quem é o Banco do Brasil? Não é o gerente, ele não tem grande poder lá dentro. Não são os caixas, definitivamente, eles são só a linha de frente. Talvez, no topo da hierarquia, lá em cima, desconhecido, além das nuvens, exista alguém. Mas ninguém sabe quem é. Mais importante: você não sabe quem é. E quer saber mais? Esse sujeito tem tanta influência no que te incomodou quanto o seu gerente. Não foi ele, seu gerente ou o caixa. Não foi uma pessoa em cuja porta você possa bater, furioso, às quatro da manhã. Alguém para pegar pelo colarinho em uma fúria que exige resposta. Alguém de quem possa se vingar com uma surra justa e bem aplicada.
A sua operadora de telefonia comete um engano. Subitamente você se dá conta de que não existe culpado pelo erro que sujou seu nome, cortou sua linha, causou tamanha animosidade entre você e seu chefe que te deixou sem outra opção além de largar o emprego. Não foi nenhum dos quinze atendentes de telemarketing com quem você brigou, eles estão ali para receber sua raiva. São a personificação de alguma coisa que não existe, que é apenas um conceito. É isso que a TIM é: um conceito. O mesmo vale para qualquer grande empresa. Coca-Cola. Globo. Itaú. Banco do Brasil. Ford. Sony. Qualquer uma. Mesmo aquelas cujo responsável é de conhecimento público, como SBT, Apple, Microsoft.
Essas empresas, com seus incontáveis funcionários, infinitos setores, políticas que ninguém conhece, sistemas que pensam de forma praticamente autônoma, têm a habilidade de infernizar a sua existência. E não são nada além de conceitos, de ideias. Aglomerados de pessoas trabalhando diariamente atrás de uma marca, simbolizada, em termos legais, por um número, uma licença, uma razão social, um nome fantasia. Não estão em lugar algum e estão em todos os lugares, ao mesmo tempo. Assassinar os funcionários só abrirá vagas para que outros funcionários sejam contratados. É uma luta perdida. É você, indivíduo, contra uma legião.
É claro que quando uma delas te causa constrangimentos – ou "danos morais", de acordo com os legistas – você pode apelar para a justiça, de modo a reaver o prejuízo. Mas, no fim das contas, aí está você, criatura física, palpável, aborrecida e insone – graças à cagada de algo invisível, intangível e inacessível –, um adulto, supostamente capaz de cuidar de si mesmo, tendo que apelar para alguém, assinando um atestado de incapacidade, como uma criança que corre para a mãe ao apanhar na rua. E a justiça é, como a causa da sua desdita, apenas uma ideia, manifesta em um homem de vestido.
Este homem pode até interceder a seu favor e condenar o causador dos seus infortúnios a te ressarcir de alguma maneira. Ainda assim, que justiça é essa? Você acha que o responsável pela empresa – se é que ele existe – saberá deste pequeno entrevero? Acredita que aquele idiota engravatado com uma carteira da OAB tem qualquer influência no plano geral das coisas? Vai se sentir vingado se aquela pessoa, irrelevante como você, humildemente reconhecer o erro e pedir desculpas? É muita ingenuidade sequer considerar que ele pode ter acesso ao alto escalão desta fantasmagoria que você, amigo carniforme, supostamente "derrotou". Como, então, crer que ele os representa?
Sua "vitória" não significa nada. Você desferiu um golpe invisível contra algo intangível. Não existem cacos a recolher, sangue para lavar da camisa, dor nos punhos, hematomas pelo corpo, dentes quebrados e um adversário ensanguentado caído à sua frente, subitamente ciente da atrocidade que cometeu. Não há triunfo algum. Só a sensação de que duas quimeras travaram qualquer tipo de peleja muito além do seu alcance e, por sorte, o resultado te foi favorável. Mas, ao relembrar o momento em que o representante do seu adversário tremeu ao ouvir o veredicto, sua memória trará à tona a verdade: não houve qualquer estremecimento, pois culpa alguma foi atribuída a ele. Você não teve a chance de uma acareação com seu algoz, ele sequer sabe seu nome. E qualquer dinheiro que porventura tenha chegado aos seus bolsos, por fim, foi apenas uma esmola, um cala-te, boca.
Depois nós não entendemos por que algumas pessoas, num ataque de cólera, armam-se até os dentes e alvejam transeuntes aleatórios, quando a razão, na verdade, é muito simples: em um mundo sem culpados, não existem inocentes.
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