Da Inspiração e Outros Demônios
O cursor pisca. Surge. Some. Surge. Some. Surge. Some. Surge. Some.
Esse cursor é, pra quem escreve nessa época de impulsos elétricos, o que era o capataz para quem apertava parafusos na revolução industrial. O leão-de-chácara que vigiava os escravos. O gerente que curte um assédio moral, a fim de construir o caráter. O cursor é um crápula.
As ideias enxergam a verdadeira face do cursor, por isso desaparecem quando ele surge, não há outra explicação. Quando não existe a menor possibilidade dele dar as caras, elas organizam uma verdadeira orgia no cérebro. Vão e voltam, complexas ou simples, com início, meio e fim, encadeadas de forma perfeita. É transcrever e ali está a obra prima. A Capela Sistina. O Davi. O homem vitruviano.
O problema é o papel. Vou além: o problema é o cursor. Porque para levá-las deste meio disforme e mutável - onde a perfeição não só existe como, mais do que isso, é uma constante -, o mundo das ideias, para este outro lugar, firme e inflexível, repleto de julgamentos outros que não o primordial, e onde, no caso de quem escreve, existe o maldito cursor, é preciso desviar a atenção da ideia - objeto a ser transcrito - e voltá-la para o "papel" - superfície de transcrição. Surge daí a contenda: estes dois objetos não permitem descuido. Perca a ideia de vista por um instante e ela desaparece, como se nunca por ali tivesse passado. Faça uma transcrição distraída e o resultado final estará muito aquém do conceito original. Ambos exigem de você nada menos do que 100% de foco.
E não percamos tempo atestando o óbvio, concluindo que dedicar 100% de foco a duas coisas, ao mesmo tempo, é tarefa impossível. Vamos à questão prática: o que fazer? A única solução é prestar atenção total em ambos, o máximo de tempo possível, de forma alternada. Um afago em sua ideia, enquanto vira as costas pro papel. Depois, de volta ao papel, é hora de escrever enlouquecidamente, até sua ideia aparentar enfado e dar a entender que pretende abandonar o recinto. Nessa hora você larga seu trabalho e retorna à contemplação. Ideias precisam disso, é do que elas se alimentam, é como ficam fortes, fornidas e fagueiras. Sem isso, são fugazes (ficando apenas na letra F).
É onde reside a maldição do cursor. Enquanto você, cuidadosamente, procura dar à sua ideia a atenção merecida, o cursor pisca. Surge. Some. Surge. Some. Surge. Some. "Ignore-o", diz um principiante, mal sabendo que essa intermitência não é um aviso suave e gentil de "Estou aguardando". Antes, é o estalar de um chicote, o engatilhar de uma espingarda. É o prazo, urgindo. E prazo, na língua de Shakespeare, não leva o nome de deadline à toa. O prazo não vem sozinho, o prazo traz a angústia, a ansiedade. O prazo traz palpitações, vem acompanhado de pressões que, se não forem externas, são internas. E quem saberá dizer qual das duas é pior? O prazo é a necessidade que não admite ser postergada. O prazo te faz perder a ideia de vista, focar no trabalho, submergir na produção que, subitamente, caminha a passos rápidos, toma vida própria e segue de forma independente. Você, dedilhando o teclado, é mero espectador de uma pintura que se faz sozinha.
Perdido na empolgação do texto que se desenrola, você abandona a ideia. E ideias são como crianças: cinco segundos de descuido e... para onde ela foi? Foi um lapso de desatenção, coisa rápida, quase imperceptível. Foi o que bastou para que o resultado final, em vez daquele conceito brilhante, inicialmente pretendido, descambasse para uma coisa qualquer, um amontoado de ideias sem muito nexo. Um texto estranho, sem sentido, sem propósito. Feio, pra dizer sem rodeios.
Um texto como este.
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