09.
capítulo nove.
uma noite sem fim
AS PRIMEIRAS HORAS NA ARENA foram brutais para os tributos que seguiram até a Cornucópia. Assim que os primeiros jovens conseguiram colocar as mãos em armas, uma matança foi iniciada e Meadow conseguiu contar ao menos cinco mortes, o que não era um número tão alto em comparação com os outros anos, mas a escuridão da arena dificultava a perseguição. Suas mãos tremiam enquanto ela observava o telão, vendo Myrtle, a garota do Distrito 2, perfurar um dos olhos do rapaz do Distrito 6 e atravessar sua cabeça com uma lança.
Seis. Seis tributos. Seis vidas perdidas. E era apenas o começo dos jogos.
No telão principal, a área onde acontecia a maior ação da competição era exibida. Na tela do computador de Meadow, havia apenas uma imagem escura, enquanto as câmeras da arena ainda não haviam sido capazes de localizar Sylvia. Olhando para o lado, no computador de Hayden, Mervyn também não podia ser encontrado, e parecendo ler os pensamentos de Meadow, o mentor mais velho disse:
━ Eles se esconderam juntos.
━ Sim. Os dois fugiram da Cornucópia… Estão a salvo, por enquanto ━ ela disse.
━ Estão sem armas.
━ Eles não conseguiriam pegar armas, de qualquer forma. Tributos muito maiores e mais fortes do que eles morreram tentando.
O telão principal continuou exibindo os jogos, enquanto tributos armados pareciam procurar por suas próximas vítimas como um predador busca por caça. A cada vez que respiravam, o vapor quente liberado por seus lábios se destacava no ar, formando pequenas nuvens devido à temperatura baixa em que a arena se encontrava. Enquanto os tributos do Distrito 2, unidos, procuravam por pegadas nas neves, a garota do Distrito 7 desceu de uma das árvores de forma discreta, se aproximou do corpo do rapaz do Distrito 6 que havia sido morto poucos minutos antes e pegou seu casaco, estendendo-o no chão para então colocar os sapatos e o cinto do rapaz ali, antes de enrolar tudo e segurar debaixo de um dos braços e correr para longe.
O barulho de seus passos pareceu alertar os sentidos de Myrtle e Onyx, que se viraram de repente, mas já não encontraram ninguém. Eles continuaram por sua caça, sem muito resultado, até que as câmeras mudaram e o telão apresentou agora um foco nos tributos do Distrito 1, que haviam se unido ao garoto do Distrito 7, que tentavam, com dificuldade, acender uma fogueira a partir de pedras e gravetos, enquanto conversavam sobre como a luz e o calor do fogo poderiam atrair outros tributos para que pudessem atacar.
A neve na arena havia pegado todos os tributos de surpresa, ela imaginava, porque nunca havia acontecido antes. A presença de neve parecia desacelerar tudo; as perseguições se tornavam mais difíceis, e apesar do local estar frio, não era o suficiente para os incomodar e tornar o simples ato de sobreviver tão difícil; perto do deserto escaldante da última edição, aquilo não parecia nada demais.
Então, após algum tempo, enquanto observavam o telão, Sylvia finalmente surgiu na tela do computador de Meadow, ofegante, e a mentora levou as mãos ao coração, assustada e aliviada. Era difícil ver no escuro, mas Sylvia e Mervyn pareciam estar no interior de uma caverna, provavelmente localizada próxima às montanhas nevadas. Enquanto Sylvia descansava as costas contra a parede de pedras, Mervyn saiu da caverna com cuidado, caminhando para longe cuidadosamente, antes de refazer o caminho, tendo o cuidado de pisar exatamente em suas pegadas para não criar novas. Já na entrada da caverna, usou um graveto para disfarçar as marcas de seus pés, indo de encontro à Sylvia.
━ Nossos tributos são espertos. Se tivessem mais comida em casa e menos problemas respiratórios, venceriam todos os anos ━ falou Hayden, bebendo um gole de café, enquanto observava os jovens através de sua própria tela. ━ Mas se tivessem qualquer um desses benefícios que eu disse, Panem não seria Panem.
━ Não. Não seria ━ murmurou Meadow, movendo as mãos pelo painel de controle de sua tela na tentativa de encontrar a forma correta de enviar algo para as crianças. Ao ver, Hayden deu um tapa em suas mãos. ━ O que você quer?
━ Não faça isso agora. O aerodeslizador vai entregar a localização deles e ainda há pessoas demais na arena ━ ele retrucou, olhando para Meadow fixamente. ━ Eles comeram bem antes de irem pra lá. Estão aquecidos e seguros, por enquanto. Espere até amanhã, quando mais pessoas tiverem morrido, e aí sim você pode mandar algo ━ continuou, e então voltou a atenção para a tela. ━ Você precisa se acalmar. Eles estão na arena, mas você também precisa pensar antes de agir aqui fora.
Meadow assentiu, em silêncio, e após alguns segundos, olhou para Hayden pelo canto dos olhos.
━ Você não acredita que eles possam ganhar. Você nunca acreditou. Por que está fazendo tudo isso?
━ Porque agora eles tem você, e isso muda muita coisa.
Engolindo em seco, a jovem mentora virou o rosto lentamente, observando a sala e vendo que o local já se encontrava consideravelmente mais vazio do que no início. A cada morte que ocorria na arena, uma cadeira era desocupada na sala dos mentores, e Meadow sentiu o estômago revirar ao finalmente ser capaz de associar propriamente as mortes de cada tributo.
Caelan, o rapaz do Distrito 3, havia sido a única baixa entre os primeiros distritos. Zaiden e Irving, os garotos do 5 e do 6, também já não estavam mais vivos, assim como Nigella e Aryan, as duas crianças do Distrito 9, e Iolanthe, a garotinha do 10. Já eram pessoas demais, e Meadow segurou a vontade de vomitar que sentiu naquele momento, fechando os olhos brevemente.
━ Ah, não, Annie, sai daí… ━ a voz de Finnick fez Meadow abrir os olhos, e a mentora encontrou a imagem da ruiva no telão, aproximando-se da fogueira criada pelos tributos do Distrito 1 e o tributo do 7. ━ Droga, Annie!
A ruiva se aproximou do fogo cautelosamente, parecendo aliviada ao sentir o calor próximo de seu corpo, e fechou os olhos por um breve momento. Escondida atrás de uma árvore, Isleen, a garota do Distrito 1, olhou para Ajax, seu companheiro de distrito, que se aproximou de Annie com cuidado para não chamar sua atenção. No entanto, seus esforços foram inúteis, porque Annie se virou com os olhos arregalados de repente, encontrando o rapaz com uma grande faca nas mãos.
Quando Annie se virou, Ajax desistiu de seus passos calmos e impulsionou o corpo em direção ao da ruiva, que se jogou para o lado, fazendo com que o rapaz caísse sobre a pequena fogueira e soltasse um grito de dor ao ter a pele do rosto queimada, abandonando a faca sobre a neve. Meadow fechou os olhos ao ver a pele queimada do rapaz, mas Finnick manteve os seus abertos por tempo o suficiente para ver Annie pegar a faca na neve e correr para o meio das árvores enquanto Isleen e Arbor, os companheiros de Ajax, corriam em direção do rapaz para tentar o ajudar.
━ Não deixe ela fugir! ━ exclamou Isleen, enquanto colocava neve sobre o rosto ferido de Ajax, e Arbor assentiu, colocando-se a correr por entre as árvores, seguindo as pegadas deixadas por Annie.
Quando as pegadas chegaram ao fim, Arbor riu para si mesmo, dando um giro em torno do próprio corpo enquanto olhava para as árvores com calma, procurando pela garota.
━ Anniezinha, tem certeza que quer se esconder nas árvores? ━ ele perguntou, com a voz alta, e fincou o machado no tronco da árvore mais próxima. ━ Escalar é o meu ponto forte, você sabe…
Após alguns segundos, Arbor viu as madeixas alaranjadas de Annie se sobressaírem sobre o verde e branco de uma das árvores nevadas, e puxou o machado que havia fincado no tronco para o prender ao cinto, antes de começar a escalar em direção a Annie Cresta no topo. Ao ver Arbor escalando a árvore, a ruiva mordeu o interior das bochechas e apertou a faca com força entre os dedos.
━ Arbor tem vantagem se lutarem no topo das árvores ━ Meadow disse a Hayden, que concordou, e então se inclinou levemente em direção a Finnick. ━ Mande alguma coisa pra ela agora, rápido!
━ O quê?!
━ Não dá tempo de explicar, só me escuta ━ ela apressou, e Finnick fez o que Meadow disse, enviando uma garrafa de água para Annie.
Não demorou para que o aerodeslizador aparecesse no fundo da imagem, ao mesmo passo em que Arbor alcançou o galho forte em que Annie havia se abrigado. A ruiva, amedrontada, olhou para Arbor e então para a neve, parecendo considerar o impacto de sua queda, e agarrou o cabo da faca com mais força ao ver o garoto sorrir em sua direção. Então, notou o aerodeslizador se aproximando, por trás de Arbor, e ficou de pé, parada, com as mãos trêmulas.
O aerodeslizador parecia encontrar alguns problemas para se locomover na escuridão e entre as árvores, mas estava determinado a chegar até Annie Cresta. Arbor deu mais um passo calmo em sua direção, e então, sem pensar em muitas coisas, Annie pulou da árvore, emitindo um grito de dor ao cair na neve, que amorteceu um pouco sua queda. No mesmo momento, o aerodeslizador desgovernado bateu contra a parte de trás da cabeça do rapaz, derrubando-o no chão, antes da tecnologia se espatifar contra o tronco da árvore.
De forma ágil, Annie se levantou e cravou a faca no peito de Arbor, ainda trêmula, antes de olhar para a garrafa d'água, caída próxima aos dois enquanto o garoto do Distrito 7 dava seu suspiro final.
Finnick se virou para Meadow, impressionado.
━ Ótima ideia ━ ele disse, e ela assentiu.
━ Eu sei.
━ Você está perdendo a humildade ━ observou Hayden, levantando as sobrancelhas, e sorriu. ━ Que bom.
Aquela havia sido a sétima morte confirmada no dia, e as próximas horas não foram repletas de muita emoção. A arena da septuagésima edição dos Jogos Vorazes apresentava grandes dificuldades de sobrevivência, mas tornava perseguições praticamente impossíveis. Era difícil achar qualquer um com tantas árvores os cercando, e correr na neve não era algo muito eficaz. E enquanto as horas se passavam e a noite caía em Panem, a arena permanecia escura, o que gerava alguns burburinhos entre os mentores.
━ Pensei que trocariam a noite pelo dia lá dentro. Mas se fosse assim, já era pro sol estar nascendo na arena ━ disse Haymitch, que estava sentado atrás de Meadow e Hayden, comendo uma espécie de pão doce. ━ Que merda. Vai ser noite o tempo todo lá dentro?
━ A confusão deles vai ser uma dificuldade a mais. Em algumas horas, eles já vão ter perdido a noção do tempo e seus corpos vão se desacostumar sem a luz pra ajudar a guiá-los pelo tempo. Uns vão desacelerar, começar a sentir sono quando era pra estarem acordando, e outros vão demorar mais a sentir a mudança ━ pontuou Finnick, escutando a reclamação de Haymitch, e se levantou para pegar um pouco de café. Ao retornar, se apoiou contra a mesa de Hayden e olhou para os mentores dos Distritos 8 e 12. ━ É assim que vão separar a caça e os caçadores.
Assim que a fala de Finnick chegou ao fim, um alto rugido foi ouvido, fazendo todos se assustarem. Meadow pulou na cadeira, com os olhos arregalados, e Finnick derrubou café no chão, virando-se de imediato para ver o que acontecia na tela. Hayden uniu as sobrancelhas, cruzando os braços, e Haymitch abandonou seu pão sobre a mesa.
Devorando o corpo de Arbor, estava um enorme urso.
𓅨
Sem mais nenhuma morte confirmada na arena naquele dia, a maior parte dos mentores resolveu retornar para seus alojamentos, cansados do primeiro dia dos Jogos Vorazes. Já era tarde da noite quando Meadow se deitou sobre a própria cama, sentindo-se exausta, e encarou o teto em silêncio, tentando digerir os acontecimentos de seu primeiro dia como mentora.
Ela tentava não fechar os olhos, porque quando o fazia, as imagens violentas ocupavam sua mente. Então, Meadow focava no teto, nas paredes, em qualquer coisa que pudesse a distrair o suficiente para afastar seus pensamentos das cenas brutais da arena. Era sempre horrível, mas agora parecia especialmente pior, porque, novamente, Meadow estava envolvida nos acontecimentos dos jogos e havia sido uma das responsáveis pela morte de Arbor mesmo sem estar lá dentro. Ninguém nunca saberia, é claro; a família do garoto, seu distrito e todos os outros para sempre pensariam que o aerodeslizador havia sido uma infeliz coincidência que facilitou sua morte pelas mãos calejadas da doce Annie Cresta. Mas Meadow sempre saberia o quão rápido sua mente agiu para provocar uma fatalidade, e sempre se lembraria do quão orgulhosa ficou de si mesma após conseguir.
Não porque Arbor morreu, mas porque Annie estava a salvo. Era doloroso estar nos bastidores e escolher quem merecia ou não viver por mais tempo. Mas, naquele momento, Meadow havia escolhido Annie Cresta e essa havia sido apenas a primeira de uma série de decisões difíceis que precisaria fazer ao longo de sua jornada como mentora. Ela pensava se Aspen estaria orgulhoso de vê-la, finalmente, jogar os jogos como não havia feito em sua edição.
Meadow odiava pensar em hipóteses sobre Aspen. Todas eram dolorosas demais. Ao mesmo tempo, se recusava a permitir que as memórias do irmão deixassem de a assombrar. Ser perseguida pelos fantasmas de Aspen era o mínimo que ela podia permitir, após tudo o que os dois passaram juntos e tudo o que ele havia feito por ela e ela jamais poderia retribuir.
━ Meadow ━ três batidas foram ouvidas na porta, e ela suspirou. ━ Sou eu.
━ Pode entrar ━ ela permitiu, sem forças para sair da cama, e Finnick entrou no quarto, exalando o cheiro agradável de quem havia acabado de sair do banho.
━ Vamos descer pro jantar ━ ele chamou, e ela balançou a cabeça negativamente.
━ Depois de tudo que eu vi hoje, vai ser surpreendente se eu conseguir beber um gole d'água sem vomitar ━ ela retrucou, e Finnick fechou a porta atrás de si, sentando-se na beirada da cama. ━ Eles nem vão se dar o trabalho de recolher os corpos da arena mais? Vão deixar o trabalho pros ursos?
━ Arbor foi o único. Só queriam chocar o público mais um pouco ━ falou Finnick, puxando os sapatos dos pés de Meadow com cuidado e os deixando ao lado da cama. ━ Obrigado pelo que fez hoje. Por sugerir mandar o aerodeslizador. Os mentores não são obrigados a colaborar, então nunca fazem isso.
━ Ela é importante pra você. Não precisa me agradecer ━ Meadow respondeu, balançando a cabeça para os lados negativamente. ━ Não foi uma cena muito bonita, o aerodeslizador praticamente esmagando a cabeça de Arbor contra a árvore antes dele cair.
Finnick virou o corpo na cama, agora sentado de frente para Meadow, que ainda encarava o teto, e observou as sobrancelhas unidas em angústia da garota.
━ Meadow ━ ele chamou, tentando trazê-la de volta para a realidade. ━ Não foi sua culpa. Nada é sua culpa. Não se esqueça disso.
Ela engoliu em seco, assentindo, lembrando-se da conversa que havia tido com Finnick na noite anterior e sobre tudo o que eles faziam de ruim era culpa da Capital que os obrigava. Era verdade, ela sabia, mas Meadow, mesmo tendo estado na arena anteriormente, sentia dificuldades para se desprender do sentimento de culpa ao ser a responsável, mesmo que indiretamente, por mortes de jovens inocentes.
Em sua edição dos Jogos Vorazes, Aspen matou aqueles que os ameaçaram para que ela não precisasse sujar as mãos. Sujá-las agora parecia errado, como se todos os esforços do irmão para mantê-la longe de toda aquela violência e corrupção tivessem sido inúteis. Ao mesmo tempo, Meadow se questionava se o irmão estaria orgulhoso de suas armadilhas, porque elas talvez pudessem ter o salvado. Ninguém jamais entenderia o tipo de culpa que ela sentia; ela era a única vitoriosa que não matou ninguém em seus jogos, e aquela havia sido a única edição em que irmãos estiveram juntos na arena. Meadow teve a sorte ou o azar de ser a que saiu viva para ver sua vida continuar.
━ Você diz que não é minha culpa, mas me agradeceu mesmo assim ━ ela falou, soltando uma risada seca pelo nariz, e comprimiu os lábios em uma linha fina. ━ É difícil lidar com isso tudo. Eu não me importava com os Jogos Vorazes antes, mas depois de estar na arena, assistir é como estar lá dentro de novo.
O rapaz assentiu, compartilhando do sentimento de Meadow, que ele já experimentava há alguns anos.
━ Não fica mais fácil com o tempo, se você quer saber. Mas uma hora você se acostuma, e as coisas parecem mais simples ━ disse Finnick, também se deitando para encarar o teto com cuidado. ━ O sentimento não passa. Nós só tentamos encontrar uma forma de lidar melhor com ele. Começa com a aceitação.
━ Eu já estou bem nessa parte, acredite em mim ━ ela assegurou, com um tom de amargura na voz. ━ Eu já aceitei que Sylvia e Mervyn vão morrer independentemente dos meus esforços pra manter os dois vivos. Ter água e comida não serve pra muita coisa quando eles estão cercados de pessoas querendo matar os dois ━ continuou, agora brincando com o tecido da jaqueta para tentar se distrair. ━ Reclamo de Hayden por não acreditar nos dois o tempo todo, e eu tento me agarrar à esperança de que um dos dois possa vencer, mas é tão difícil, e fica pior a cada minuto. E sabe o que aconteceu hoje?
Finnick negou com a cabeça.
━ Não. O quê?
━ Hayden finalmente está se esforçando pelos nossos tributos. Está agindo como se acreditasse que eles têm uma chance, e ele nunca acreditou. Eu perguntei o motivo de ele estar fazendo tudo isso agora, e ele disse que agora as crianças tem a mim, e que isso muda tudo ━ contou, unindo as sobrancelhas ao repetir as palavras de Hayden. ━ Foi como se qualquer esperança que eu tinha antes se desfizesse naquela hora. Eu não sei explicar direito. Mas saber que é assim que ele me enxerga me fez pensar que outras pessoas também me veem do mesmo jeito. Talvez Sylvia e Mervyn estejam lá dentro pensando que eu vou dar um jeito e resolver tudo pra que eles possam escapar com vida. Eu não quero que as pessoas tenham fé em mim, Finnick. Não quero que elas acreditem que sou algum tipo de salvadora. Eu não sou.
O rapaz balançou a cabeça em concordância, para demonstrar que a ouvia e compreendia, e refletiu brevemente sobre as palavras de Meadow.
━ Ninguém te enxerga como uma salvadora, Meadow ━ ele falou, e qualquer outra pessoa que não estivesse naquela situação ficaria ofendido por suas palavras. No caso de Meadow, a frase a acalmou minimamente. ━ Você não é a única esperança de Sylvia, de Mervyn, nada disso. O mundo não gira em torno de você, acredite em mim. A questão é que você faz as pessoas sentirem esperança. Não em você, mas nelas mesmas, em um futuro melhor, esse tipo de coisa. E quando você acende a esperança nas pessoas, você não está fazendo nada de errado. Não é motivo pra se culpar. Mas você não pode continuar pensando da forma que está pensando, como se as pessoas te vissem como a esperança delas, Meadow. Você não é. E ninguém pode esperar que você faça alguma coisa que vá mudar o mundo pra sempre. Você não tem esse poder.
Meadow o encarou pelo canto dos olhos.
━ Essa é a conversa motivacional mais estranha que já tive.
━ Me escuta, Meadow ━ ele pediu, com uma risada breve, e voltou a se sentar, agora brincando com algumas mechas do cabelo da garota. ━ Você faz as pessoas acharem esperança dentro delas mesmas, porque você contraria tudo o que era estabelecido. Você foi pros Jogos sem matar, saiu da arena e agora vai se casar com o vitorioso mais bonito de Panem ━ Finnick continuou, e quando Meadow tentou o interromper, ele balançou a cabeça negativamente. ━ Ei, não tente me contrariar! As pessoas veem que você é uma pessoa boa, Meadow, e pensam que você está feliz. Você faz elas acreditarem que também podem.
━ Mas ninguém espera que eu faça nada ━ ela repetiu, pensativa, e suspirou cansada mais uma vez. ━ É difícil acreditar nisso. As pessoas parecem esperar coisas de mim o tempo todo.
Finnick odiava a forma com que Meadow pensava que era culpada por tudo de ruim que a cercava. Odiava a forma com que ela se condenava por todas as coisas que eram fruto de um sistema instaurado em Panem antes mesmo de seu nascimento. Até mesmo nas coisas boas, como ser uma fonte de esperança para alguns, conseguia ser algo para gerar o sentimento de culpa na garota, e ele estava cansado daquilo. Tudo o que ele queria era que Meadow conseguisse deixar aquele tipo de coisa de lado, e entendesse que não era ela quem estava no controle.
━ Meadow. O que eu vou dizer agora não vai ser muito agradável, tudo bem? ━ perguntou ele, pacientemente, como se falasse com uma criança. ━ Nesse momento, várias pessoas estão na arena pra lutar até a morte. Eu prometo a você que ninguém lá dentro está assim tão preocupado com a sua vida. Aqui fora, todos estão assistindo o que acontece dentro da arena, e também não se importam com você durante a maior parte do tempo. E nenhuma dessas coisas é culpa sua. Você não tem essa importância toda pra eles, Meadow. Você existe, e eles sabem, mas não ficam o tempo inteiro pensando em você ━ ele continuou, e Meadow o olhou com o cenho franzido. ━ Você precisa desencanar. Você cresceu nas fábricas. Você sabe que as pessoas em Panem têm problemas demais pra se preocuparem com o que você faz ou deixa de fazer.
O problema de Meadow era pensar demais. Qualquer simples palavra ou ação poderia se tornar algo grande demais em sua cabeça, que nunca parava nem por um segundo. Finnick já havia percebido aquilo; o silêncio em que a garota passava a maior parte de seu tempo era ocupado pelo turbilhão de possibilidades em sua mente.
━ Você precisa viver por você, Meadow ━ ele finalizou, agora num tom mais doce, e a garota se sentou, parecendo desconfortável. ━ Precisa se preocupar com você e com as coisas que você pode controlar. Nada além disso.
Ela se sentiu mal ao ver que, enquanto as pessoas morriam na arena, ela se preocupava mais com a visão que tinham dela do que com os Jogos Vorazes em si, e se importava mais em deixar de ser percebida como alguém em quem ter fé do que de fato fazer algo para mudar o que havia de errado com o lugar. Meadow não respondeu Finnick, encarando os próprios joelhos, mas sabia que ele tinha razão sobre o que disse: ela não era tão importante como em sua cabeça. A vida das pessoas não pararia em sua função.
Finnick limpou a garganta após alguns minutos de silêncio, e inclinou o corpo em direção a Meadow para deixar um beijo singelo no topo de sua cabeça. Então, levantou-se da cama e a observou por mais alguns segundos, sentindo-se culpado por vê-la tão atordoada após suas palavras. Ele quis se desculpar, dizer que não sabia o que dizia, mas segurou a vontade, porque tudo o que disse eram coisas que Meadow precisava ouvir. A verdade parecia dura, mas a verdade a libertaria do peso da culpa que sentia por todos os problemas de Panem.
Meadow tinha sua importância, claro que sim, mas ninguém esperava que ela salvasse o mundo sozinha. Ela era apenas uma garota, apenas uma pessoa como todas as outras. Ela fazia sentirem uma pitada de esperança por tudo o que representava, mas no fim das contas, Meadow era apenas mais um símbolo entre tantos.
━ Eu estou indo jantar ━ ele avisou, caminhando até a porta, e ela assentiu. ━ E eu ficaria feliz se você viesse também.
Devagar, a garota se levantou, calçando os sapatos novamente, e caminhou até a porta.
━ Estou indo ━ ela disse, sem emoção na voz, e Finnick se sentiu mal mais uma vez.
━ Você não gostou do que eu disse.
━ Não é isso ━ ela falou, abrindo a porta, e o rapaz a seguiu. ━ É só que nenhuma posição parece agradável. Ser a pessoa em quem depositam as esperanças é horrível, e ser alguém que ignora tudo isso também.
━ Você não precisa ignorar. Só não pode deixar que isso domine você e te corroa por dentro.
Ser um vitorioso não era fácil. Cada passo era como pisar em ovos, e depois da arena, a cabeça daqueles que escapavam já não funcionava da mesma forma que antes. Eles viviam permanentemente atordoados, desconfiados ou amedrontados, às vezes, todas as opções ao mesmo tempo. As cicatrizes em seus corpos eram removidas com procedimentos estéticos, mas as marcas que ficavam em seus psicológicos não podiam ser vistas.
Enquanto caminhavam no corredor vazio, Meadow agarrou uma das mãos de Finnick e entrelaçou seus dedos sem dizer uma palavra. Finnick apertou sua mão três vezes. Independentemente do caminho, ele estaria com ela.
Quando os dois chegaram ao refeitório, poucos mentores se encontravam presentes. Alguns ainda estavam assistindo aos jogos, e a maior parte dos que haviam ido embora já tinha comido o suficiente ao longo do dia enquanto observavam e controlavam os patrocínios de seus tributos. Meadow e Finnick pegaram seus pratos e serviram o que bem desejaram, antes de caminharem até uma mesa vazia, onde se sentaram em silêncio. De longe, alguns olhares eram sentidos sobre os dois, e Meadow não se impressionou ao encontrar alguns mentores os encarando de cara feia.
━ Não ligue. São os do Distrito 7.
━ Ah. Eles devem ter me ouvido falar sobre o aerodeslizador.
━ É. E eu enviei o aerodeslizador ━ ele completou, começando a devorar sua comida, enquanto Meadow bebericou seu suco. ━ Eles fariam o mesmo se fossem tão inteligentes quanto você. Não se importe com os olhares.
━ Isso, Meadow, não se importe com os olhares ━ a voz de Hayden repetiu, enquanto o homem se aproximava da mesa dos dois, com um prato que continha ainda menos comida que o de Meadow, causando-lhe estranheza. ━ Eu comi o dia todo, não estou com muita fome ━ ele explicou, antes de apontar para Meadow com a faca. ━ Você deveria comer mais. Eu não vi você comer nada enquanto estávamos lá.
Meadow olhou para Finnick, como se buscasse por uma defesa, mas o rapaz apenas sorriu para o prato, levando uma garfada de carne até a boca.
━ Você tem que comer, ativar o seu espírito de sobrevivente ━ Hayden continuou divagando enquanto observava Meadow. ━ Olha, passar fome nos distritos é uma questão de azar. Na Capital, é questão de burrice. Aqui, pode ficar com minha comida, eu pego mais depois!
Quando ele se aproximou um pouco para empurrar o prato em direção à garota, o cheiro de álcool que pairou no ar tornou o comportamento estranho de Hayden mais compreensível.
━ Você estava com Haymitch, não estava?
Finnick assentiu, parecendo se divertir com a situação, e Hayden a olhou com desprezo.
━ Olha, só porque bebi um pouco, não quer dizer que eu estava com Haymitch. Haymitch faz outras coisas além de beber! Ele não é a única fonte de álcool de Panem, Meadow.
━ Mas você estava com ele. Sim ou não?
O homem suspirou, antes de revirar os olhos, e Finnick riu.
━ Estava.
Meadow olhou para Finnick quase incrédula, antes de soltar uma risada breve e balançar a cabeça negativamente. Então, fixou os olhos em Hayden, que havia roubado seu copo de suco e bebia tranquilamente, sem se importar com os julgamentos. Quando os olhos da garota pararam sobre o antebraço direito do homem, no entanto, ele pareceu finalmente perceber, e rolou as mangas da camisa para baixo.
Mas era tarde demais. Meadow já havia visto a tatuagem discreta, e suas sobrancelhas se uniram. Hayden suspirou.
━ Quem é Wisteria?
━ Era o nome da minha mãe ━ ele respondeu, simplesmente, e ela assentiu em silêncio. ━ Ela foi morta há muitos anos.
━ A tatuagem parece recente.
Hayden a encarou, agora indignado e impaciente.
━ Você é investigadora? Ou só é intrometida?
━ Por enquanto, só intrometida. Estou tentando subir de cargo.
Finnick ergueu as sobrancelhas, pronto para intervir, mas desistiu ao perceber que Meadow havia ficado confortável o suficiente na presença de Hayden para se tornar uma pessoa responsiva, o que não era algo que acontecia com frequência. Se a garota não se sentia ameaçada ou incomodada, ele não tinha um motivo plausível para interromper suas interações com ninguém; Meadow era capaz de falar por si mesma e não precisava de seu príncipe encantado para a proteger o tempo todo como uma donzela em perigo.
━ E a sua mãe? Onde é que ela está?
Nesse momento, Finnick se arrependeu de não ter interrompido a discussão antes, porque sabia que a mãe de Meadow era um assunto sensível; até aquele dia, ele mesmo ainda não sabia o que havia acontecido com a mulher, porque a garota nunca entrava em detalhes. E ele viu quando a vitoriosa comprimiu os lábios em uma linha fina e fincou as unhas nas palmas das próprias mãos disfarçadamente, encarando Hayden com os olhos levemente arregalados em uma expressão de choque. Odair limpou a garganta, abandonando os talheres no prato, e antes que pudesse de fato falar alguma coisa, Meadow apoiou os cotovelos sobre a mesa e disse:
━ Eu não sei. É o que você queria ouvir?
━ Ah, você não sabe? ━ Hayden repetiu, levantando as sobrancelhas, e Meadow trincou a mandíbula. ━ Mas você não sabe de tudo?
━ Eu nunca disse que sabia de tudo, é você quem me trata como se eu não soubesse de nada ━ ela retrucou, unindo as sobrancelhas, enquanto seu rosto se tornava vermelho. ━ Mas eu não vejo você reclamando quando eu faço qualquer coisa que beneficie alguém, tipo o seu tributo, que você nem mesmo se esforçou pra ajudar antes de entrar na arena.
Se o olhar de Hayden pudesse matar, Meadow já estaria morta. Vendo o quão rápido as coisas estavam escalando, Finnick se levantou de sua cadeira, pegou o prato de comida de Meadow em uma das mãos e usou a outra para puxar o braço da garota, que não relutou em se levantar, ainda encarando Hayden de volta.
━ Você não sabe de nada, Meadow ━ Hayden praticamente rosnou, e quando a garota, ofendida e indignada, levantou um de seus dedos na direção do mentor, Finnick apertou seu braço e a apressou para saírem dali.
━ Meadow, já chega ━ ele disse, agora puxando a garota para longe. ━ Vamos embora.
Não foi muito difícil levá-la dali, considerando a diferença de porte dos dois. Finnick era forte e parecia ter sido esculpido como as estátuas dos deuses gregos, e Meadow nunca se destacou por sua força física. A garota, apesar de não relutar contra Finnick, tinha algumas coisas para dizer a Hayden, mas enquanto se afastava do homem, decidiu engolir as próprias palavras, porque percebeu que não valia a pena dizer nada do que queria para um homem alcoolizado.
Finnick só soltou Meadow quando a porta do elevador se fechou após a entrada dos dois. Ela ofegou, passando uma das mãos pelo rosto, e o rapaz apertou o botão do andar de destino em silêncio, antes de fitar a garota.
━ Ele está bêbado. Não dê atenção ao que ele fala ━ aconselhou, ainda com o prato de comida de Meadow em uma das mãos. ━ Hayden também não sabe porquê faz isso, Meadow. Ele não é violento, só está acostumado a brigar.
━ Eu não ━ ela respondeu, ainda estressada, e Finnick percebeu que tinha lágrimas nos olhos. Não de tristeza, ele sabia, mas porque se sentia sobrecarregada pelas próprias emoções. ━ Eu só fiz uma pergunta.
━ Quando você disse que a tatuagem era recente, pareceu uma acusação ━ Finnick observou, e Meadow mordeu o interior das bochechas, encarando o chão do elevador. ━ Hayden não precisava ter falado da sua mãe, claro que não. Mas ele está bêbado. Está agindo com menos razão do que o comum.
Os dois retornaram para o quarto em silêncio, e Finnick apertou um dos ombros de Meadow em um simples gesto de apoio. Não era a primeira vez que Finnick a via com raiva; na primeira vez em que os dois se conheceram e ele contou a verdade sobre os planos que o presidente Snow tinha para seu futuro, Finnick precisou a imobilizar para que não quebrasse todos os móveis do quarto, e ainda acabou recebendo um tapa da garota. Ele sabia que Meadow podia ser feroz e briguenta. Ele sabia que ela não gostava.
Enquanto Meadow, ainda séria, se colocou a comer a comida que Finnick havia levado para o quarto, o rapaz se distraiu ligando a televisão em um canal qualquer, onde alguns estilistas falavam sobre as próximas tendências da Capital para as estações que viriam a seguir. De tempos em tempos, Meadow olhava para ele disfarçadamente, apenas para ter certeza de que ele estava acordado e estava ali. Ela não sabia o que dizer; estava envergonhada, porque, mais uma vez, Finnick estava cuidando dela e a tirando de problemas, e Meadow nunca sentia que seria capaz de retribuir algum dia.
Ela gostaria de ser mais expressiva e comunicativa. Gostaria de conseguir colocar em palavras o quanto o rapaz era importante em sua vida e gostaria que ele entendesse e enxergasse o que ela queria dizer. Mas Meadow não conseguia, porque para ela, era difícil demais explicar como Finnick era a única coisa boa que havia acontecido em sua vida em anos. Ela havia tentado na noite anterior, mas não sabia se o vitorioso havia escutado, tão imerso nos próprios pensamentos e sentimentos, e então, Meadow tentou traduzir suas palavras no beijo que os dois compartilharam.
Ainda não parecia o suficiente.
━ As coisas lá em casa sempre foram difíceis ━ ela começou a contar, com a voz baixa, de repente, e Finnick se assustou com a repentina fala da garota, virando-se para encará-la e ouvir com atenção. ━ Ficaram ainda piores depois que Cedar nasceu. Aspen e eu fomos parar no abrigo por um tempo, porque nossos pais não tinham renda o suficiente pra alimentar todos nós. Eles levariam Cedar também, mas não podiam tirar um bebê enquanto ele ainda era amamentado.
Finnick uniu as sobrancelhas, desligando a TV.
━ O quê? ━ ele perguntou, um pouco em choque. ━ Vocês… Vocês dois foram pro abrigo?
Todos os distritos de Panem tinham alguns abrigos para as crianças que visivelmente não estavam sendo bem cuidadas pelos responsáveis. Não servia para muita coisa, mas era uma forma da Capital fingir que se importava minimamente com eles.
━ Foi por pouco tempo ━ Meadow respondeu. ━ Os abrigos já estavam muito lotados, e tinham crianças piores do que nós dois chegando todos os dias, então nos liberaram pra desocupar algum espaço ━ ela contou, soltando ar pelo nariz em uma risada sem emoção. ━ Chegou um momento em que eles cansaram de fingir que se importavam com nós dois. E então nós voltamos pra casa, e meu pai tinha acabado de sofrer um acidente de trabalho do qual ele nunca se recuperou, e eu e Aspen começamos a passar mais horas nas fábricas pra tentar conseguir algum dinheiro a mais.
━ Quando isso aconteceu?
━ Cedar ainda não tinha feito um ano. Eu tinha oito, e Aspen tinha nove. Nós ainda não podíamos nos inscrever pros Jogos Vorazes e nem pegar tésseras, então as coisas foram muito difíceis por um tempo ━ a garota continuou, colocando o prato de comida vazio na mesa ao lado da cama. ━ Mas nós nos viramos. Por anos. Era cansativo pra todos nós, pra falar a verdade, mas pelo menos estávamos juntos e longe do abrigo, mas acho que a minha mãe não pensava da mesma forma. Ela se cansou daquilo tudo. No dia da minha primeira Colheita, ela desapareceu. Foi a última vez que vimos ela.
Quando Finnick e Meadow conversavam sobre o passado, o que não acontecia com tanta frequência, os dois focavam nas partes felizes e boas memórias que construíram nos distritos. Falavam sobre as brincadeiras, as comidas preferidas, os amigos que tinham na escola e contavam histórias simples e que os divertiam por algum motivo. Nunca tentaram esconder as dificuldades que passaram antes da arena, mas preferiam focar nas coisas boas, como um escape da realidade em que se encontravam. Meadow e Finnick sabiam muitas coisas um sobre o outro, mas não costumavam entrar em detalhes sobre os aspectos mais tristes de suas vidas familiares, como a morte do pai do garoto e o sumiço da mãe da menina.
━ E vocês nunca mais tiveram nenhuma notícia?
━ Nunca ━ Meadow confirmou. ━ Eu sempre evito pensar muito sobre isso. Já se passaram seis anos, Finnick. Ela fugiu e não vai voltar, e todos nós já estamos acostumados com a ideia ━ a garota disse, mas sua voz parecia amarga e ela limpou a garganta. ━ Cedar mal se lembra dela. Eu não sei se ela está viva, mas se estiver, deveria ter aparecido quando eu e Aspen fomos pra arena. Deveria ter estado com a gente durante as Colheitas. Deveria ter estado comigo quando eu saí da arena e Aspen ficou.
No fim de sua fala, as lágrimas não puderam ser contidas por mais nem um segundo, e um soluço irrompeu da garganta de Meadow, enquanto Finnick se aproximou. Àquele ponto, ele já não sabia se a garota chorava pela mãe ou pelo irmão, mas a acolheu em seus braços mesmo assim, aninhando Meadow e tentando a confortar enquanto passava as mãos por seus cabelos.
Ele não sabia o que dizer. Finnick não tinha o direito de falar sobre a família de Meadow, porque era um assunto que não lhe dizia respeito e ele não tinha entendimento suficiente do assunto para falar. Enquanto as lágrimas de Meadow umedeciam sua camisa, ele apoiou o queixo sobre o topo da cabeça da garota, murmurando palavras para tentar a acalmar, sabendo que não teriam efeito, porque aquela era a única coisa que Finnick podia fazer; entender o lado de Meadow, seus sentimentos tão avassaladores, e tentar a acolher.
Naquele dia, mais do que em qualquer outro, Meadow tinha todo o direito de chorar, e ele não a julgaria.
━ Shh… ━ ele murmurou, repetidas vezes, enquanto Meadow tentava impedir as lágrimas insistentes de caírem. Ele afastou as mãos de Meadow do rosto, descanso sua própria em uma das bochechas da garota com cuidado, acariciando sua pele com o dedão. ━ Deixe as lágrimas caírem, Meadow. Se dê o luxo de chorar enquanto ainda consegue ━ continuou, sentindo a garota o encarar com as sobrancelhas unidas e os olhos encharcados. ━ Você vai ver que vai ficar cada vez mais difícil com o tempo.
━ Eu tenho motivos novos pra chorar todos os dias, Finnick ━ ela resmungou, com a voz rouca, e ele riu baixo.
━ É, eu sei, sua vida não é nenhum conto de fadas. Mas nós endurecemos com o tempo, paramos de sentir tanto, e fica mais difícil conseguir chorar, por mais que a gente queira ━ ele disse, voltando à expressão séria que tinha no rosto anteriormente, e afastou o cabelo de Meadow de seu rosto com um toque delicado. ━ Eu sinto muito pela sua mãe. Sinto muito por não ter tido todo o apoio que precisava.
Finnick sabia que era privilegiado. Ele nunca desejou entrar na arena, mas cresceu em um distrito carreirista, e quando teve seu nome sorteado, já não era uma criança indefesa. Ele sabia o suficiente para se cuidar, as pessoas acreditavam nele e torciam por ele. Acreditar em si mesmo torna-se uma tarefa muito mais fácil quando outras pessoas também fazem isso, e embora pudesse reclamar de muitas coisas sobre os Jogos Vorazes, ele jamais poderia se queixar de sua rede de apoio. Durante todos os momentos, ele teve Mags e toda sua família torcendo por seu sucesso e acreditando em sua chance de vitória, enquanto tudo o que Meadow tinha era Aspen.
Era impossível e injusto comparar suas circunstâncias, e ele ainda se sentia mal por saber das diferentes dificuldades enfrentadas pelos distritos, especialmente os mais pobres, ao longo de toda a vida de servidão que estavam fadados a servir. Enquanto o trabalho com a pesca no Distrito 4 fez com que Finnick crescesse forte e atlético, Meadow ainda tinha problemas respiratórios causados pela fumaça das fábricas do Distrito 8. Era revoltante e triste viver naquelas condições, para que no fim de tudo apenas a Capital se beneficiasse de todo o sofrimento de um país.
━ Eu tenho você agora ━ ela murmurou, estudando o rosto de Finnick, e deitou a cabeça em seu ombro, fechando os olhos devagar. ━ É o suficiente.
Ele a apertou ainda mais em seus braços, mas Meadow logo os separou para finalmente tomar um banho após o longo dia e, talvez, afastar a cara de choro. Finnick se fez confortável em sua cama enquanto aguardava pelo retorno da garota; ele já estava dormindo lá há alguns dias, e não encontrou dificuldades para cair no sono mais uma vez. Era um ato singelo e sereno; naqueles dias em que os dois se encontravam sobrecarregados demais, era difícil encontrar calmaria para caírem no sono por si mesmos. Então, deitavam-se juntos, conversavam um pouco e, na segurança da presença um do outro, conseguiam descansar.
Quando Meadow saiu do banho, já vestida em seu pijama confortável, se recostou contra a batente da porta do banheiro e observou Finnick dormir em silêncio. Com movimentos calmos para não o acordar, ela se deitou ao seu lado com cuidado, agora observando-o de perto, enquanto o sono não a atingia. Ela apreciou aquele raro momento de tranquilidade por parte de Finnick, que estava sempre agitado pelos cantos, e sorriu levemente ao ouvir o som de sua respiração.
Após alguns segundos, a delicadeza de seu toque encontrou seu destino no rosto de Finnick, e as pontas dos dedos de Meadow traçaram a ponte de seu nariz lentamente, antes de subirem para a curva de suas sobrancelhas e então descerem para as bochechas macias. Ela não tinha dúvidas de que Finnick era a pessoa mais bonita em que já havia botado os olhos; cada pequeno detalhe sobre o homem se encaixava em uma perfeita união e era como se todos os traços que existissem de mais bonitos no mundo tivessem sido combinados para dar origem a Finnick. Quando conheceu o vitorioso, Meadow não se importou muito com sua aparência, mas conforme o tempo passou e ela o conheceu melhor, Odair pareceu ficar cada dia mais bonito.
Em um toque tão leve e delicado, a ponta do dedo indicador de Meadow tracejou o contorno dos lábios rosados de Finnick. Ainda em seu sono, Meadow pensava, o rapaz suspirou. Então, uma de suas mãos encontrou seu destino no pulso da garota, que ele segurou para manter sua mão ainda próxima aos seus lábios, e beijou o nó de cada um de seus dedos, ainda sem abrir os olhos para ver as bochechas coradas de Meadow.
━ Pensei que estivesse dormindo.
━ Eu não estou? ━ ele indagou. ━ Pensei que estava sonhando com você passando os dedos pelo meu rosto. Então era real.
Meadow abriu um sorriso pequeno, divertindo-se minimamente.
━ Era.
De olhos fechados, Finnick sorriu, ainda segurando o pulso de Meadow. Ele descansou ambas as mãos – a sua própria e a de Meadow – sobre o torso, próximas a onde ficava o coração.
━ Boa noite, Meadow.
━ Boa noite, Finnick.
𓅨
O retorno para a sala de mentores ocorreu logo cedo no dia seguinte, e quando se sentaram lado a lado no cubículo dos mentores do Distrito 8, Meadow e Hayden não ousaram se olhar, e muito menos se cumprimentar. Em silêncio, a garota assistiu Caesar Flickerman, o apresentador dos Jogos Vorazes, fazer um breve resumo da noite anterior, quando a maior parte das pessoas que tinham coisas para se preocupar estava adormecida e não tinha como assistir à competição.
━ Restam agora 14 tributos na arena, e tivemos apenas um dia de jogos! ━ exclamou o homem, naquele dia com cabelos brancos azulados. Seu terno era lavanda cintilante, e até sua maquiagem era em tons frios, para combinar com a arena coberta de neve. ━ Ao longo da noite, três tributos morreram, infelizmente… ━ o homem fez uma expressão de tristeza, e Meadow franziu o cenho. ━ Significa que a competição está mais perto do fim! Mas não se preocupe, expectador; depois do primeiro dia, as coisas na arena começam a acontecer mais devagar. Vamos rever os momentos-chave da noite passada?
E então, no telão, as três mortes foram reveladas. Petal, a garota do Distrito 11, matou Fernley, do Distrito 5, enforcada com um cadarço de suas botas, e chorou durante todo o processo. Quando a vida deixou Fernley, Petal a posicionou deitada, como se estivesse dormindo, e fechou seus olhos com cuidado. Arrancou alguns galhos finos das árvores próximas das duas, e os colocou ao redor do corpo de Fernley, antes de murmurar uma oração quase inaudível e se afastar em passos largos.
Ayana, a jovem do Distrito 12, que Meadow descobriu já ter dezoito anos, embora não aparentasse ter mais do que quinze, encontrou seu fim quando topou com Cyrus, o garoto do Distrito 4. Ela não relutou, e ele não estendeu seu sofrimento; em um golpe certeiro de sua adaga, ele ceifou a vida da garota e a abandonou sobre a neve, antes de se aproximar de um pequeno lago congelado e secar a superfície de gelo até a quebrar, enfiando ambas as mãos sangrentas na água e conseguindo, sem muitas dificuldades, pegar dois peixes que nadavam por ali.
A última cena da noite anterior fez o coração de Meadow parar por alguns segundos: a câmera estava em Mervyn e Sylvia, encolhidos dentro da caverna, enquanto Onyx, do Distrito 2, aproximava-se do local. Meadow temeu o pior, mas Sylvia e Mervyn ouviram a aproximação do garoto e se entreolharam, assustados, antes de buscarem por qualquer coisa ao redor que pudesse os ajudar a se proteger ou esconder. Sylvia encontrou uma pedra grande, que levantou com alguma dificuldade e usando as duas mãos, e ela e Mervyn aproximaram-se da entrada da caverna, ficando um de cada lado da cavidade pela qual entraram, escondidos pelas pedras.
Mervyn forçou uma tosse, e Sylvia o olhou em confusão, enquanto Onyx, do lado de fora, virou-se em direção ao barulho e abriu um sorriso maldoso, aproximando-se da entrada da caverna escura com uma das mãos segurando firmemente a lança.
━ Quem é que está aí? Eu posso ajudar vocês, crianças… ━ ele disse, adentrando a caverna com passos despreocupados, girando a lança na mão.
Na escuridão, Onyx não viu as crianças escondidas pelas sombras, mas teve o azar de ser visto pelas duas. Sylvia o atingiu com a pedra na cabeça, fazendo-o cair atordoado, e Mervyn se aproveitou do momento para tomar a lança de suas mãos e fincar em seu coração, ouvindo um arquejo final por parte de sua vítima.
Os olhos de Meadow se arregalaram ainda mais. Mervyn e Sylvia, as crianças do Distrito 8, haviam matado um tributo carreirista.
━ Surpreendente, não é? ━ Caesar voltou a aparecer na tela, com um sorriso. ━ Agora, vamos voltar à nossa arena, onde é noite o dia todo! O que será que nossos tributos estão fazendo agora?
Alguns tributos dormiam em cima de árvores, enquanto aqueles que tinham aliados se revezavam para descansar. Cyrus havia feito uma pequena fogueira e assava os peixes que havia pegado em um graveto, aproveitando para esquentar as mãos. Willow observava, de longe, um veado, mirando seu machado no animal na busca desesperada por alimento na arena, que não parecia ter muitas opções de comida além dos animais que viviam no frio.
Após se atentar ao breve resumo do que acontecia na arena, Meadow voltou a atenção para a tela do próprio computador, surpreendendo-se ao encontrar uma nova surpresa na caverna de Sylvia e Mervyn: Annie Cresta agora estava escondida com os dois, conversando tranquilamente com as crianças, enquanto Sylvia observava os peixes que haviam sido levados pela mais velha, abrindo um sorriso.
Meadow olhou para Finnick, unindo as sobrancelhas, e o rapaz já a olhava.
━ Ela vai matar minhas crianças? ━ a garota indagou, desconfiada.
━ Não ━ Finnick assegurou, sabendo que Annie não faria aquilo com os tributos de Meadow. ━ Não vai.
Confiando na palavra de Finnick, Meadow assentiu, voltando a atenção para o computador, agora decidida a mandar algo para ajudar as crianças, encontrando alguma dificuldade em operar os botões do computador. Por fim, conseguiu selecionar as opções corretas para enviar uma pequena cesta com dois grandes pães e três garrafas d'água, sabendo que seria mais do que suficiente para Sylvia, Mervyn e, agora, Annie. Hayden observou pelo canto dos olhos, vendo Meadow procurar a forma de confirmar que desejava mandar aquilo, e em silêncio, apertou o botão pela garota.
Meadow não agradeceu, apenas observou na tela enquanto o aerodeslizador se aproximava, e ao ouvir o barulho, Sylvia agarrou a mesma pedra que havia usado para atacar Onyx e se levantou, vendo Annie e Mervyn fazendo o mesmo, cada um com suas armas adquiridas. Quando o pequeno avião se aproximou da caverna, Annie pegou a cesta que ele trazia e Sylvia atirou a pedra, fazendo-o desequilibrar no ar após ter uma peça quebrada, e Mervyn usou a lança para bater no aparelho tecnológico até derrubá-lo de vez, vendo Sylvia correr em direção ao aerodeslizador caído para pegar suas baterias, antes de puxar a palha de aço de um dos bolsos do casaco e sorrir.
Annie pareceu confusa, mas Mervyn logo explicou:
━ Nós não vamos comer peixe cru, Annie.
8.2k de palavras. foi um custo escrever esse capítulo, tenho muita dificuldade em descrever os acontecimentos da arena, e acaba sendo um pouco difícil equilibrar essa parte com a meadow e o finnick, porque eles também são expectadores dos jogos e não participantes, então foi beeeem cansativo escrever esse capítulo.
não sei se ficou bom, e também nem tive forças pra reler ele e corrigir porque queria postar logo, então se tiver algum errinho, desconsiderem <3 o que acharam do capítulo e quais são suas opiniões sobre a relação não só dos protagonistas, como também da meadow com o hayden?
e qual nome vocês preferem pro shipp?
Findow, Meanick ou sugarfish?
feliz Natal!
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