06.
capítulo seis.
a colheita dos tributos
OS DIAS NO DISTRITO 4 PASSAVAM lentamente; intercalando o tempo entre a Vila dos Vitoriosos e a Capital – onde ainda compareciam às festas –, Meadow e Finnick gastavam quase todas suas energias no planejamento da enorme festa de casamento que deveria acontecer logo após o fim da septuagésima edição dos Jogos Vorazes. Nas festas da Capital, as pessoas não queriam falar de outro assunto, o que para eles era ótimo; certamente, seus tributos nos jogos teriam muitos patrocinadores, visto que os dois estavam tão em evidência. As coisas em casa eram apenas um pouco mais tranquilas, porque suas escoltas, estilistas e promotores de eventos viviam fazendo visitas para que pudessem organizar a cerimônia.
Dizer a Caesar Flickerman que seu plano era nomear o futuro filho em homenagem ao presidente Snow havia sido uma grande jogada da parte de Meadow; as pessoas na Capital havia achado um lindo ato, repleto de gratidão e honra dos distritos à Capital. Além de tudo, caso Coriolanus ainda estivesse disposto a fazer com que o casamento não acontecesse, bom, ninguém ficaria satisfeito. Ele agora, assim como todos os outros, devia fingir felicidade com o evento, ainda que não estivesse convencido sobre o amor dos dois, porque no fim das contas, estavam o homenageando e agradecendo por tê-los apresentado sempre que podiam.
━ Estão decidindo uma data boa, sem muito vento, já que o casamento vai acontecer na praia. Pearl Rooney disse que gostaria de ser sua madrinha ━ contou Finnick a Meadow, enquanto estavam na praia, dessa vez acompanhados de Mags e Coralia, a mãe do rapaz. ━ Esse casamento vai ser um circo completo.
━ É, e os palhaços somos nós ━ a garota retrucou. ━ Eu não gostaria nem de convidar Pearl Rooney para o casamento, quanto mais a ter como madrinha! Ela enlouqueceu?
━ E quem você quer ter como madrinha?
━ Eu não seu, Finnick. Não é como se eu tivesse uma coleção de amigos pra escolher alguém ━ ela resmungou, dando de ombros, e se colocou a pensar um pouco. ━ A última vez que interagi com alguém que você não conhece foi na arena. Depois de lá, não reencontrei meus colegas da escola nem nada do tipo. Além de meu pai, Cedar e os idiotas da Capital, só tenho contato com você e com Indigo. E ele com certeza não vai querer fazer parte dessa idiotice.
━ Ah, você fala do nosso casamento com tanto amor ━ Finnick suspirou, abrindo um sorriso, e Meadow riu, revirando os olhos.
O tempo passado no Distrito 4 parecia fazer bem à garota; ela não costumava sair de casa no 8, mas ali, saía o tempo todo. Agora que não era forçada a se vender para manter a família viva e bem, ela já não passava os dias em silêncio, afogando-se no próprio sofrimento e sentindo nojo de si mesma enquanto não conseguia encarar o próprio irmão nos olhos. E, unindo-se a esse fato, Meadow descobriu uma nova paixão quando conheceu a praia, e gostava de passar suas tardes sentada na areia e observando as ondas se quebrarem.
Ela estava mais corada e havia ganhado um pouco de peso. Parecia mais saudável, mesmo que às vezes ainda não encontrasse forças para comer. Finnick havia a ensinado a pescar e ela melhorava naquele trabalho todos os dias, e enquanto ela ainda não tinha coragem de tentar aprender a nadar, ele se contentava com a companhia da garota enquanto ia de encontro às ondas.
━ Eu diria pra chamarmos Annie pra ser nossa madrinha ━ Meadow disse, pensando em uma garota que era amiga de Finnick desde a infância e ela havia conhecido recentemente. ━ Mas é melhor não arrastar a coitada pra esse circo.
━ É. Seria melhor deixarmos as pessoas que não tem contato com a Capital assim ━ Finnick concordou. ━ Não é como se nós tivéssemos muito poder de escolha, de qualquer forma. Eu e você só precisamos aparecer no dia, o resto vai ser decidido por nós.
Sentados sobre um pedaço de pano na areia, os dois observavam enquanto Mags caminhava na beira do mar acompanhada de Coralia, que trazia nas mãos um longo graveto com o qual riscava formas aleatórias na areia molhada.
━ Acho que nós estamos tratando com muita normalidade o fato de que a gente vai se casar.
━ Não leve isso pro lado romântico, Meadow, mas eu me casaria com você mil vezes se precisasse ━ Finnick retrucou, franzindo o cenho levemente. ━ As pessoas ainda me perturbam, claro, mas acho que nunca me deixaram tão em paz quanto agora.
━ Eu sei, eu concordo com você. É só que mesmo sendo um casamento de fachada, ainda é um casamento. Nós vamos viver juntos ━ ela disse. ━ Você não vai dormir no quarto de hóspedes de Mags pra sempre. As pessoas vão querer ver nossa vida juntos. Caesar Flickerman vai invadir a casa procurando por nós dois pra saber mais sobre como está indo nosso casamento, e vai ser estranho se um dia você aparecer no fundo da filmagem saindo da casa do outro lado da rua. E aí as pessoas vão começar a se questionar sobre o motivo de você não passar as noites comigo, e quando perceberem que está demorando demais para eu ficar grávida do pequeno Coriolanus, vão surgir rumores de que você, na verdade, é apaixonado por Mags e me abandonou e então nós vamos ser…
━ Quando é que você teve tempo de pensar em tudo isso?! ━ Finnick gargalhou, embora se sentisse levemente preocupado com todas as paranoias de Meadow, por mais que ela estivesse certa. Então, ele jogou o corpo para trás, deitando-se no lençol na areia, e sorriu ladino. ━ Não precisa se preocupar, Meadow. Se você quer dormir comigo, é só dizer. Eu não iria reclamar.
Ela o olhou pelo canto dos olhos, levantando as sobrancelhas, e alertou:
━ Eu vou afogar você.
━ Eu gostaria muito de ver você tentar.
━ Seria como tentar matar um peixe afogado, eu sei ━ ela resmungou. ━ Não consegui pensar em uma boa ameaça. Acho que eu não sou muito ameaçadora.
━ Não, não é mesmo ━ o rapaz concordou, brincando distraidamente com as pontas do cabelo da garota que continuava sentada ao seu lado. ━ Mas isso é bom. É bom que mesmo depois de presenciar tanta violência você não tenha se tornado uma pessoa violenta. É difícil ver isso.
Era claro que Meadow era uma vitoriosa incomum. Ela era pura, no fim das contas. A primeira pessoa na história dos jogos a vencer sem matar. Ela não era violenta ou ameaçadora; ela era apenas uma garota jogada na arena e que conseguiu escapar sem ser corrompida. Era uma das muitas vítimas dos jogos, como todos os outros, mas quando dormia a noite, Meadow não precisava lidar com os fantasmas das pessoas que havia matado, como acontecia com ele às vezes.
Finnick não se considerava uma pessoa ruim, e nem achava que os outros vitoriosos fossem pessoas malignas. Mas ele sabia que, dada uma situação de sobrevivência, seus instintos violentos agiam sem pestanejar. Se precisasse matar para sobreviver, ele mataria, e não tinha certeza que Meadow faria o mesmo, o que poderia ser prejudicial a ela, no fim das contas.
Mas seus tempos de arena haviam chegado ao fim. Não havia mais motivo para se preocupar. O luto era uma coisa que jamais abandonaria qualquer um dos dois, mas a culpa era algo que só pesava nos ombros de Finnick, ele pensava. Porque Aspen havia feito sua escolha ao se sacrificar pela irmã. Não havia sido culpa de Meadow, ainda que ela não pensasse assim.
━ Eu só… Eu não acho que a vida de alguém me pertença. As vidas de outras pessoas não são minhas e eu não tenho o direito de tirá-las ━ ela falou. ━ De ninguém. Mesmo das pessoas mais detestáveis da terra. Mesmo do presidente Snow, de Seneca Crane, de todos os responsáveis por fazer a gente passar o que passamos ━ ela continuou, parecendo pensativa, e balançou a cabeça negativamente. ━ Mas isso é porque sou covarde. Eu sei que ninguém hesitaria em tentar me matar. Ninguém hesitou na arena. Eu não julgo, sei que era necessário. É só que eu não tenho coragem.
━ Bom, é como você disse. Às vezes, isso é necessário. Matar não é uma coisa boa pra qualquer pessoa que precise, de fato, matar alguém. Parece bom pras pessoas da Capital, que só assistem, porque nós não significamos nada pra elas ━ Finnick pontuou, com rancor na voz. ━ Nós colocamos comida nas mesas deles e roupas em seus corpos, mas ainda somos insignificantes pra eles.
Meadow balançou a cabeça em concordância, antes de soltar um longo suspiro cansado, e passou uma das mãos pela areia distraidamente, enquanto o vento soprava seu cabelo. Era cansativo até mesmo pensar naquele assunto: na arena. Infelizmente, os jogos estavam se aproximando mais uma vez e agora ela seria uma mentora. A arena ocuparia seus pensamentos em período integral.
━ Quanto tempo você achar que eu consigo ficar debaixo d'água sem respirar? ━ Finnick perguntou, de repente.
━ Sei lá. Um minuto?
━ Não, mais do que isso! Vamos descobrir ━ ele decidiu, de repente, e se levantou num pulo, antes de puxar Meadow para fazer o mesmo.
Eram em momentos como aquele, que vinham do nada, que ela lembrava que Finnick era apenas um menino. A Capital havia o obrigado a envelhecer em alguns aspectos, mas no fim das contas, Finnick só tinha dezenove anos e queria fazer coisas bobas como qualquer garoto de sua idade. Queria aproveitar o mar e o sol. Relaxar a mente, se divertir. Ser um menino. Aproveitar coisas típicas da juventude que lhe havia sido roubada.
Os dois correram juntos pela passarela de areia, até chegarem na metade, onde Meadow se sentou com as pernas cruzadas e Finnick imediatamente pulou na água, fazendo com que muitas gotas salgadas espirrassem na garota. Ela sabia o que tinha que fazer, e começou a contar os segundos, que se tornaram longos demais.
Quando ela já estava começando a se preocupar e pensar que algo havia acontecido com Finnick, ele retornou a superfície, respirando fundo em busca de ar, e tossiu um pouco antes de rir sozinho e voltar para a areia, onde se jogou, deitado e encarando o sol acima de si.
━ Quanto tempo?
━ Quatro minutos e vinte e um segundos ━ Meadow respondeu, impressionada. ━ Isso é tempo demais!
━ O meu recorde é cinco, mas hoje eu estou um pouco mais cansado.
━ Certo. Eu já entendi que não dá pra afogar você. Não precisa me humilhar!
O rapaz riu, virando o corpo de lado, e apoiou a cabeça em um dos braços ao encarar Meadow, que olhou para ele em confusão.
━ E você? Você tem alguma habilidade especial?
Ela ponderou por alguns segundos.
━ Quando Aspen e eu éramos crianças, eu costumava ser boa em me esconder. Eu conseguia me enfiar em qualquer lugar, subir em qualquer árvore ━ contou, com um sorriso pequeno ao se lembrar dos saudosos dias de infância. ━ Mas essas não eram minhas maiores habilidades, eu acho. Eu sempre tive uma boa memória e sempre fui boa em aprender as coisas. Descobrir algumas. Com certeza alguém descobriu antes de mim, mas quando brincávamos de nos esconder nos fundos das fábricas, onde ainda tinha um pouco de mato, eu encontrei uma espécie de planta que explodia em contato com a água. Não era uma explosão forte, nem nada assim, mas fazia barulho e não era como se nós tivéssemos muitas outras opções de brincadeiras.
━ E como você descobriu isso?
━ Eu comi um pedaço da planta. O contato com a saliva fez ela estourar na minha boca ━ Meadow disse, rindo sozinha, e deu de ombros. ━ Eu estava com fome. Comia qualquer coisa pra ter um pouco de energia pra trabalhar nas fábricas depois das aulas. Você não imagina o que as plantas do Distrito 8 podem fazer… Acho que só as mais estranhas conseguiram sobreviver à poluição das indústrias.
Finnick se lembrava de mal ver vegetação no Distrito 8 durante suas visitas ao local. Por conta de toda a poluição, era um distrito sujo e de aparência triste, com os moradores cobertos de fuligem e calos nos dedos hábeis que usavam para costurar. Como Meadow havia dito, só as plantas mais esquisitas haviam sido capazes de perdurar naquelas condições.
━ A água do mar, a planta que explode quando de molha… Você devia parar de colocar tudo que não conhece na boca ━ disse o rapaz.
Ela tombou a cabeça para o lado levemente.
━ Eu já disse, estava com fome. Se eu morresse envenenada, pelo menos seria de barriga cheia.
Às vezes, era difícil para Finnick realmente compreender as coisas que Meadow passava em seu distrito. O Distrito 4 era um dos mais ricos, e o 8 era um dos mais pobres. Embora todos fossem igualmente oprimidos pela Capital, era impossível dizer que alguns não tinham mais privilégios do que outros, como era o caso do 4.
Finnick havia sofrido com a exaustão, a repressão, o silenciamento. Mas nunca com a fome. Para Meadow e sua família, a fome era, na maior parte dos dias, uma certeza. Era algo constante. Ele se incomodava ao ver o quão pouco a garota comia, porque parecia sempre estar punindo a si mesma, mas nunca associou aquilo ao fato de que ela já estava acostumada a passar horas, talvez dias, sem comer.
━ Certo, você tem razão. E você aprende rápido mesmo, como você disse. Mags disse que você aprendeu a fazer vários tipos de isca essa semana, até melhorou algumas que ela sempre fez.
━ É, você sabe, eu tenho dedinhos hábeis, mãos pequenas, perfeitas pra operar máquinas e costurar… Acho que eu tenho facilidade com qualquer coisa que exija movimentos muito minuciosos. Como fazer iscas.
━ Tipo desarmar uma bomba?
━ Eu ainda não tive a oportunidade de tentar, mas é uma alternativa ━ ela disse, esticando as pernas para molhar os pés na água. ━ Você pode pegar alguns peixes pra mim? O meu trem pro Distrito 8 sai essa noite, e eu queria levar peixes bons pro Cedar e meu pai.
━ Claro, quantos você quiser ━ respondeu Finnick, levantando o tronco para se sentar parcialmente. ━ Cedar já participa da Colheita?
━ Não. Só no ano que vem, mas saber que ele nunca vai precisar das tésseras me alivia um pouco. São menos chances de ter o nome colhido.
Era tudo uma questão de sorte, no fim das contas, mas Finnick não queria dizer aquilo em voz alta e perturbar o juízo de Meadow. Ele também nunca precisou de tésseras, mas teve seu nome sorteado aos 14 anos. Ela, por outro lado, tinha mais papéis contendo o seu nome do que podia contar nos dedos, e acabou sendo sorteada também. Era impossível prever.
Ele sabia que a proximidade da Colheita estava tirando o sono de Meadow. Ele também sabia que, contando com ela, o Distrito 8 contava com 6 vitoriosos, quatro homens e duas mulheres, ao longo de todas aquelas décadas. Os jogos eram impetuosos e cruéis para todos, mas especialmente para as crianças dos distritos cujas atividades principais não desenvolviam habilidades para combate. Meadow não sabia o que faria. Ela tinha um caderno em que já havia escrito o rascunho de um discurso de perdão à família de seu tributo – que ainda nem havia sido sorteado – por não ser capaz de mantê-lo vivo na arena cerca de cinco vezes.
━ É melhor você arrumar suas coisas pra viagem, então. Eu pego os seus peixes, não se preocupe ━ ele assegurou. ━ Você devia descansar um pouco, antes de entrar no trem.
━ Já se cansou da minha companhia?
━ Ah, você sabe como é, em breve vou ter que ver você todos os dias pelo resto da minha vida. Acho que posso aproveitar uma folga de alguns minutos sem você, de vez em quando ━ disse Finnick, vendo a garota se levantar e bater nas roupas para afastar os grãos de areia. ━ Mas só às vezes!
Claro. Como se ele não atravessasse todo o país por ela voluntariamente.
A verdade era que, para Finnick, Meadow era a única pessoa com a qual ele conseguia imaginar se casar. Não porque estava apaixonado, não de forma romântica, mas porque se entendiam e eram amigos. Era difícil fazer amigos naquele meio, e mais difícil ainda se sentir compreendido. Se ele precisava passar o resto da vida ao lado de alguém para dar fim à parte de seu sofrimento, que bom que esse alguém seria Meadow.
━ Eu já vou indo, então. Preciso me organizar.
━ E eu vou ficar aqui, pescando os melhores peixes pra você. Nos encontramos em casa?
Meadow balançou a cabeça em concordância.
━ Claro. Você morreria de saudades se eu fosse sem me despedir.
𓅨
As malas de Meadow não possuíam muitos itens dentro, afinal, todos os seus pertences – que já não eram muitos – ainda estavam no Distrito 8, em sua casa. A garota apenas tomou um banho, se arrumou para a viagem e se deitou na cama de Finnick, onde estava dormindo desde sua chegada no Distrito 4. Quando as vozes de Coralia, as tosses de Mags e a risada de Finnick preencheram o andar de baixo da casa, ela esboçou um pequeno sorriso, mas não fez menção de se levantar.
Ela estava ansiosa; ao mesmo tempo que estava louca para chegar no Distrito 8 e reencontrar a família após a separação abrupta, não queria ter que presenciar mais uma colheita. Após alguns longos minutos de incerteza, Meadow decidiu descer para se juntar aos amigos do Distrito 4, encontrando Finnick e Mags limpando peixes enquanto Coralia colocava alguns em uma sacola dentro de uma bolsa térmica.
━ Finnick disse que quer levar alguns peixes para sua família ━ disse a mulher loira, sorrindo enquanto colocava a bolsa térmica sobre a mesa. ━ Acho que dentro da bolsa térmica eles conseguem passar pela viagem sem ficarem ruins.
━ Obrigada, assim está ótimo! ━ Meadow agradeceu, com um sorriso, antes de se aproximar de Mags por trás. ━ Vocês querem ajuda?
A mulher mais velha balançou a cabeça negativamente, antes de apontar para os peixes e para as mãos de Meadow.
━ Fedor ━ ela disse simplesmente, e Meadow compreendeu que não deveria limpar os peixes para que o odor não se fixasse em suas mãos.
━ É verdade. O cheiro de peixe não sai fácil. Vocês precisam de ajuda com alguma coisa?
━ Não se preocupe, Meadow, nós conseguimos cuidar do jantar ━ Finnick riu, de costas para a garota, ainda limpando um peixe. ━ Mags até separou um pedaço de torta pra você.
Um sorriso iluminou o rosto da garota.
━ É mesmo?
Mags fez que sim com a cabeça, antes de destampar um prato que havia sido coberto com um guardanapo, revelando um bonito pedaço de torta de amora.
Na opinião de Meadow, uma das melhores coisas sobre a vida no novo distrito era o fato de ter a oportunidade de conviver com mulheres diariamente. Em sua casa, os homens sempre foram maioria, mesmo quando a mãe ainda estava presente e mesmo depois que Aspen se foi. Aquilo não a incomodava, ela estava acostumada, mas não podia negar que era acolhedor de uma forma diferente estar perto de mulheres. Ela não sabia se Finnick também se sentia um intruso às vezes, sendo um homem que vivia em meio às mulheres, como ela se sentia de vez em quando, mas imaginava que ele também não se incomodava, afinal, aquela era sua família.
Mags, Coralia e, agora, Meadow. As três mulheres de sua vida.
━ Está ansiosa para a Colheita? ━ Coralia perguntou, após algum tempo, quando todos estavam sentados à mesa para o jantar.
━ Ansiosa para que chegue ao fim.
━ Coma seu peixe ━ mandou Finnick, vendo que a garota mais brincava com o alimento do que comia. ━ Você vai se sentir melhor pra viajar se estiver alimentada.
━ Finnick ━ Mags chamou sua atenção, unindo as sobrancelhas, e tossiu um pouco. A mera menção de seu nome, juntamente da expressão de poucos amigos da mulher, serviu para que o garoto suavizasse as expressões e se desculpasse baixinho com Meadow, que não havia ligado muito para sua bronca desde o início.
Ele apenas não gostava de quando ela fazia aquilo, porque ainda se preocupava com sua saúde. Comer tão pouco não podia fazer bem. Ela havia melhorado relativamente desde a chegada no Distrito 4, mas ele ainda temia que ela voltasse aos velhos hábitos e parasse de comer por dias quando algum sentimento forte demais a atingisse. No entanto, considerando a proximidade da Colheita, era compreensível que ela se sentisse daquela forma.
O jantar passou rapidamente, sem muitas conversas entre os quatro, visto que Meadow estava tensa demais para dialogar, e quando terminaram a refeição, a garota foi até a pia para lavar a louça, mas Coralia e Mags a impediram, dizendo que ela iria se atrasar para pegar o trem. Finnick então a ajudou a pegar as malas – a maioria vazia, para que ela pudesse encher com suas coisas que estavam no outro distrito – e a acompanhou até a pequena estação, enquanto aguardavam a chegada do trem.
━ Eu queria poder ir com você, mas também preciso comparecer à Colheita ━ ele disse, e ela assentiu. ━ Tente ficar tranquila. Vai ser melhor pra você e seu tributo se você não estiver totalmente tensa.
━ É difícil manter a tranquilidade quando se está prestes a enviar alguém pra morte.
━ Não é você quem está enviando. É a Capital ━ retrucou Finnick, cruzando os braços. ━ Meadow, eu sei que é difícil, no fim, só um pode sair vivo da arena. Provavelmente não vai ser o seu tributo, e nem o meu, mas ao menos teremos patrocínio o suficiente para mantê-los confortáveis na arena, enquanto durarem.
Meadow o encarou em silêncio.
━ Isso não torna as coisas assim tão melhores quanto você está pensando.
Finnick deu de ombros.
━ Eu não dou bons conselhos. Eu digo a verdade.
Ele não mentia, mesmo. Na verdade, Finnick mentia o tempo todo. Mentia para a Capital, para Caesar Flickerman, para seus fãs e admiradores. Mas não mentia para ela, para sua mãe, para Mags. Ela sabia que não, e conseguia ver a honestidade nos olhos do vitorioso. Sua sinceridade às vezes a irritava, porque a verdade não costumava ser algo reconfortante. Ao mesmo tempo, ela precisava de alguém que não ocultasse informações ou tentasse fazer algo parecer melhor do que realmente era. Finnick falava das coisas como elas eram.
Quando um pacificador se aproximou e disse que o trem iria sair nos próximos minutos, Finnick ajudou Meadow a colocar suas malas no vagão vazio, e a garota correu os olhos por todo o ambiente, vendo que, apesar de solitária, a viagem seria mais confortável sem alguém para a encher de perguntas. Ela quis sorrir para si mesma ao perceber que, do próximo dia em diante, Pearl Rooney já teria novos tributos para escoltar e se manter ocupada.
━ Você tem tudo o que precisa?
━ Acho que eu nunca vou ter tudo o que preciso. E olha que eu não preciso de muitas coisas. Só coisas que provavelmente não vou conseguir.
Ela não sabia porquê havia dito aquilo. Não era hora de dar início às reflexões sobre todas as coisas inalcançáveis que faziam falta em sua vida. Mas ela se sentia mais segura em falar com Finnick agora, e quando Meadow se afastava um pouco do silêncio frio que chegava como um efeito colateral de todas as memórias do que havia vivido no último ano, as palavras apenas saíam sem que ela as filtrasse antes.
━ Sem papo filosófico agora, Meadow ━ retrucou ele, balançando a cabeça negativamente, e viu pelo canto dos olhos os pacificadores se aproximando. ━ Eu tenho que ir.
━ Nos vemos de novo na Capital, tritão ━ ela disse, experimentando um novo apelido supostamente romântico para utilizar em entrevistas ou conversas comuns na Capital dali em diante. Finnick enrugou o nariz. ━ Agradeça Mags pela torta mais uma vez, e boa sorte na Colheita.
━ Obrigado. Tente ficar calma e tente lembrar que não é sua culpa, independente de qualquer coisa. Ninguém dava nada por você e seu irmão nos jogos e vocês ainda chegaram na reta final. Nada impede seu tributo de fazer o mesmo ━ Finnick tentou aconselhar, na esperança de tranquilizar um pouco a garota. ━ Todos gostam de um azarão, Meadow. Passe esse recado pro seu tributo, caso ele também não acredite que pode vencer.
Seria difícil dizer aquilo sem que ela mesma acreditasse nas palavras. Mas Meadow tentou balançar a cabeça em concordância, de forma não muito animada. Os pacificadores da estação já começavam a parecer impacientes enquanto os dois conversavam, mas Meadow sabia que eles jamais fariam qualquer coisa contra Finnick. Ele era valioso demais.
Olhando por cima dos ombros, Finnick viu a mesma coisa que Meadow, e riu baixo pelo nariz. Percebendo que já não havia mais nada para ser dito ou feito, o rapaz encarou os próprios pés, antes de segurar uma das mãos de Meadow, que tremia levemente, e a apertou três vezes. Era como uma linguagem particular dos dois; ele sempre fazia aquilo quando queria lembrar a ela de que estava ali e ela estava bem. Em resposta, Meadow abriu um sorriso quase imperceptível, antes de balançar a cabeça para cima e para baixo em concordância.
Ela sabia o que ele queria dizer. Sabia que eles estavam juntos e ela estava segura. Ela apertou sua mão de volta.
━ Que a sorte esteja ao seu favor ━ disse Finnick, antes de descer do vagão, e abriu um sorriso ladino ao ver as portas se fechando. ━ Vejo você na Capital, cubo de açúcar.
Aquelas foram as últimas palavras que Meadow ouviu antes de se afundar no absoluto silêncio do vagão em que se encontrava, solitária. As próximas longas horas de viagem até o Distrito 8 foram preenchidas apenas pelos barulhos causados pelo próprio trem, e embora não tivesse nada a dizer, a mente da nova mentora dos Jogos Vorazes não parou por um só segundo, sendo rondada por pensamentos perigosos, possíveis estratégias, mentiras bonitas que poderia contar para tranquilizar seu tributo e mais milhares de coisas relacionadas à competição mortal.
O sono a atingiu após algum tempo, mas nem mesmo envolta pelo cansaço e desacordada, os pensamentos sobre os Jogos Vorazes a deixaram em paz. Em seus sonhos, Aspen a visitou, e ela assistiu a cena de sua morte repetidas vezes até acordar em meio aos gritos que ninguém poderia ouvir e lágrimas que ninguém viria secar. Ela se encolheu no canto do assento confortável, tentando acalmar a própria respiração enquanto sentia todo o corpo tremer, e precisou correr ao banheiro ao sentir a comida em seu estômago revirar.
Até chegarem ao Distrito 8, Meadow ficou ali, sentada próxima à privada, temendo que vomitasse novamente. Quando o trem parou e ela ouviu o som do apito, levantou com dificuldade e gargarejou um pouco de água da pia, na falta de sua escova de dentes que estava guardada em alguma das bolsas. Encarou o próprio reflexo por alguns minutos, enquanto imagens do sonho ainda rondavam sua memória, e finalmente tomou coragem para sair do trem ao saber que o horário marcado para a Colheita já estava próximo.
Ao descer do trem, ela esperava passar pela Vila dos Vitoriosos antes de tudo, mas Cedar, Indigo e seu pai, River, já a esperavam a alguns metros de distância, e ao ver o pequeno correndo em sua direção, Meadow se obrigou a sorrir, abraçando o irmão caçula. Cedar sorriu ainda maior ao ser correspondido, porque a irmã se comportava de maneira apática desde que havia saído da arena, e sentia falta da antiga Meadow. Aquela não era ela, mas se aproximava mais da versão que ele conhecia.
━ Eu trouxe peixes pra você ━ ela disse. ━ E um pedaço de torta tão delicioso quanto os das tortas que Indigo faz.
━ Senti sua falta ━ disse Cedar, pegando uma das mãos de Meadow, e admirou a aliança que ela estava sendo obrigada a usar desde o dia em que ela e Finnick tiveram que encenar o pedido de casamento ao vivo para toda Panem. ━ Nossa! Se derreter esse anel, daria pra fazer um portão pra nossa casa.
━ É, acho que você tem razão ━ ela riu pelo nariz, antes de fazer uma careta involuntária ao encarar o anel espalhafatoso e que parecia deslocado em sua pele. ━ Vocês estão prontos pra Colheita, pelo que eu estou vendo.
━ É. O papai disse que era melhor virmos encontrar você e ir direto pra praça.
Meadow assentiu, passando uma das mãos pelos cachos do garoto, e então abriu um pequeno sorriso para o pai, que se aproximou juntamente de Indigo, e a abraçou com o único braço que possuía. River fechou os olhos ao sentir a filha corresponder; havia muito tempo desde que aquilo aconteceu pela última vez. Ele a apertou mais um pouco, antes de murmurar contra seus cabelos:
━ Você vai se casar, então.
Concordando com a cabeça, ela disse:
━ Vou. Tivemos que adiantar um pouco os planos quando descobriram que estávamos juntos. Por isso não contei a vocês antes.
Ela não falava para o pai sobre os horrores sofridos na Capital. Seu silêncio poupava e protegia o pai, que podia ser reativo demais. Meadow tinha medo do que River faria – ou melhor, tentaria fazer – caso um dia descobrisse. Indigo a lançou um olhar cúmplice, ajudando-a na árdua tarefa de convencer o homem que aquela era a verdade.
━ Eu disse a você que quando Pearl Rooney descobrisse, seria o mesmo que contar a notícia ao mundo todo ━ falou, e ela riu pelo nariz, concordando. ━ O Distrito 4 está fazendo bem a você.
━ Ela está comendo peixes e tomando sol agora. E bebendo mais água. Finnick diz que é porque o sol a faz sentir mais sede, e ela se cansa mais porque o ajuda a pescar ━ se intrometeu Cedar, e Meadow o olhou confusa. ━ Eu liguei pra você outro dia, mas você tinha saído com Mags, então Finnick atendeu e conversamos um pouco.
A garota apenas assentiu, unindo as sobrancelhas levemente, confusa sobre os assuntos de Finnick e Cedar ao telefone. River apoiou a mão no ombro da filha, abrindo um pequeno sorriso triste.
━ Você faz falta em casa. Mas se está bem e está feliz, tem todo meu apoio pra seguir em frente com isso tudo ━ ele disse, observando os traços do rosto da filha. ━ O Distrito 4 realmente está te fazendo bem. Você parece saudável.
Devia ser especialmente difícil para River; após o sumiço da esposa e a morte de Aspen, ele não precisava que Meadow o abandonasse também. Eram pessoas demais para se perder.
━ Eu sei que vocês sentiram falta uns dos outros, mas nós precisamos ir logo. A Colheita vai começar em alguns minutos e ninguém pode se atrasar ━ Indigo interrompeu o momento em família, e todos concordaram, sabendo das consequências para aqueles que não seguiam as regras à risca do evento. Eles se colocaram a andar, e Indigo apoiou uma das mãos nos ombros de Meadow, segurando-a brevemente para que os dois ficassem um pouco para trás. ━ Que história é essa de chamar seu filho de Coriolanus?
Meadow soltou uma risada.
━ Torna mais difícil pra ele impedir os meus planos se eu estiver homenageando ele e demonstrando todo meu amor ━ ela explicou. ━ Ele não vai tentar parar meu casamento agora, as pessoas não gostariam, muito menos depois de eu ter dito que quero fazer uma homenagem a ele por ter nos apresentado.
━ Uma ótima jogada, essa história de casamento, aliás. Poderia ter dado muito errado, mas deu certo.
━ Seria melhor se eu não precisasse me casar pra que ele parasse de me vender pra Capital. Mas essa nunca foi uma opção pra ele ━ retrucou Meadow, trincando a mandíbula, e então suavizou o aperto, olhando para Indigo. ━ Obrigada por cuidar deles. Agora que estou melhor e que estou longe de casa, vejo tudo o que você fez por nós, mesmo quando devia ter sido minha responsabilidade.
Indigo assentiu.
━ Quando eu saí da arena, não aceitei fazer o que Snow queria que fizesse, sem saber direito das consequências. Acho que fui um dos primeiros que ele tentou coagir a fazer parte de todo esse esquema. Eu perdi os poucos membros da família que me restavam e fiquei sozinho ━ ele contou, encarando um ponto fixo em sua frente enquanto caminhavam. ━ Eu não pude lutar como você está lutando agora. Enquanto você luta, eu cuido deles por você.
Ela balançou a cabeça negativamente.
━ Não estou lutando. Estou fugindo, como sempre.
━ Você está lutando. Está jogando o jogo deles com as peças que eles mesmos te deram ━ ele respondeu. ━ Pode se orgulhar disso. Deve se orgulhar disso.
Meadow não respondeu, permanecendo em silêncio até o momento em que chegaram à praça próxima à prefeitura, onde anualmente ocorria a Colheita de nomes de tributos. Ela não gostava do lugar; havia sido ali que toda sua vida desmoronou de uma hora para a outra, quando seu nome foi chamado por Pearl Rooney. Naquele dia, a mulher estava com os cabelos com cachos curtos e vermelhos, e um vestido que imitava o formato de uma rosa de pétalas do mesmo tom vibrante do cabelo. Ela conversava com o prefeito no palco, enquanto aguardavam a hora do evento se iniciar.
A garota se despediu do pai e do irmão com tranquilidade, porque sabia que não havia qualquer chance de Cedar ser sorteado, uma vez que ele não havia completado seus 12 anos, e após ouvir um palavrão deixar os lábios de Indigo, que se revoltava ao ver jovens amedrontados, ela seguiu para o palco, onde havia uma cadeira vazia a aguardando ao lado de Hayden Sage. Ele parecia tão contente por estar ali quanto ela, e a cumprimentou com um mero aceno de cabeça, com o ar de desprezo e revolta emanando ao seu redor.
━ E lá vamos nós ━ ele resmungou, quando o prefeito começou seu discurso de sempre, falando sobre a origem de Panem, a rebelião dos distritos contra a Capital, o fim do Distrito 13 e a criação dos Jogos Vorazes. ━ Uma rebelião aconteceu há 70 anos, e ainda pagamos por isso.
Meadow o olhou, em silêncio, e viu seus olhos cerrados e as sobrancelhas unidas. Hayden não sentia tristeza ou medo; sentia raiva, e não fazia questão de esconder.
━ Pagaremos pra sempre.
Dessa vez, ele a encarou por alguns segundos, antes de balançar a cabeça para os lados em negação.
━ Não, Meadow. Vamos fazer eles pagarem.
Por algum motivo desconhecido para Meadow, as ameaças de Hayden não pareciam palavras vazias. O homem falava como se todo aquele sistema pudesse ser derrubado, como se tivesse um pouco de esperança dentro de si de que poderia, um dia, se ver livre da opressão que atingia os 12 distritos restantes de Panem.
A esperança era algo curioso; Meadow não se considerava esperançosa, mas ao ver que outras pessoas acreditavam em dias melhores, ela quase se sentia contagiada pelo sentimento, mas balançou a cabeça para afastar aqueles pensamentos. Ela devia sempre aguardar a decepção; daquela forma, se machucaria menos.
━ É hora do sorteio, oba! ━ exclamou Hayden, com a voz pingando sarcasmo. Seus olhos entediados captavam Pearl Rooney levantando-se, ajeitando o vestido patético e recebendo o microfone do prefeito. O sorriso da escolta pareceu hesitar por um momento, vendo todos os jovens rostos inexpressivos diante de si na praça. Não era como se aquilo fosse impedi-la de alguma coisa, no fim das contas; ela ainda estava mais do que ansiosa para os jogos. ━ Mais dois mortos pra conta.
Meadow o olhou pelo canto dos olhos, lembrando-se das palavras de Finnick.
━ Algum dos dois pode vencer. Todos adoram um azarão.
━ Nem você acredita nisso ━ retrucou ele, unindo as sobrancelhas. Ajeitou-se preguiçosamente na cadeira, e virou o rosto para encarar Meadow, que permanecia impassível enquanto observava Pearl envergonhar a si mesma tentando levantar o astral do público. ━ Não é todo mundo que tem um irmão bom de briga para se oferecer como tributo, você sabe.
Os nós dos dedos de Meadow começavam a se esbranquiçar conforme ela apertava cada vez mais os braços da cadeira onde se sentava. Seus dentes se cerraram, e seus olhos brilharam. Lágrimas se acumulavam em seus cílios de baixo, mas a jovem vitoriosa não planejava derramá-las. Não ali.
Hayden teve os lábios curvados em um meio sorriso ao observar as reações da garota. Era daquilo que ele gostava, era o sentimento que queria provocar e ver aumentar gradativamente: raiva. Era o que ele sentia o tempo todo. Era um sentimento cravado em seu coração e que jamais o deixaria em paz. Era um sentimento contagioso e inflamatório. Era combustível para revoltas.
━ … E que a sorte esteja sempre à seu favor! ━ desejou Pearl. Nenhum murmúrio foi ouvido, e limpando a garganta, a representante da Capital afundou uma das mãos no recipiente em que os nomes das meninas do Distrito 8 eram contidos. Por segundos torturante, ela moveu as mãos ali dentro, até que finalmente agarrou um pedaço de papel e o ergueu para que todos vissem, antes de desdobrá-lo para ler o nome escrito ali. ━ Sylvia Hazel!
Hayden engoliu em seco ao vasculhar na multidão em busca da garota, enquanto Meadow a encontrou com mais rapidez; Sylvia Hazel não parecia ter mais do que 14 anos, e tinha os olhos inundados pelo medo quando deu um passo à frente apenas para que os pacificadores a empurrassem em direção ao palco. Selcouth sentiu todos os seus órgãos se revirando ao ver a jovem garota subir as escadas com as pernas trêmulas e a angústia no rosto que aumentava a cada vez que o pai chamava pelo seu nome. Meadow nunca havia se sentido tão impotente quanto se sentiu ao cruzar o olhar com o da menina, que parecia buscar por ajuda, por alguém em quem se apoiar, por alguma esperança. Não encontraria nada daquilo na campeã.
━ Você a conhece? ━ indagou Hayden, baixo e cauteloso.
━ Não.
Mas o incômodo que sentia era tão grande que era como se a conhecesse. Um rosto tão jovem e um futuro tão cruel diante de seus olhos. Meadow só foi capaz de retornar a atenção à Colheita quando Pearl já havia capturado o segundo nome entre as unhas enormes, pronta para selar o destino de outra alma destinada à danação.
━ Mervyn Oliver! ━ anunciou Pearl, e Meadow semicerrou os olhos, vasculhando a multidão em busca do rapaz que seria mentorado por Hayden. ━ Mervyn Oliver, querido, onde está você?
Finalmente, um rapaz que não devia ser muito mais velho do que Cedar se apresentou. Ele era magricela e tinha os cabelos cortados curtos. As roupas eram de um roxo vibrante, a cor mais comum no Distrito 8, e ele não parecia assustado como Hazel. Caminhou até o palco sem olhar para trás, como se não tivesse nada a perder, e em momento nenhum olhou para os mentores ao fundo. Não havia alguém para se oferecer como tributo em seu lugar, e nem uma mísera gota de esperança ousava se misturar ao seu sangue.
Mervyn Oliver se posicionou ao lado de Pearl, como Sylvia Hazel havia feito, e a representante da Capital sorriu abertamente ao ver os dois futuros enviados à arena no palco. Na platéia, as pessoas permaneciam com os cenhos franzidos e em silêncio, apenas desejando que tudo aquilo chegasse logo ao fim.
━ Sylvia Hazel e Mervyn Oliver, senhoras e senhores! ━ exclamou Pearl. ━ Uma salva de palmas para os tributos do Distrito 8!
Ninguém ousou levantar as mãos para aplaudir. O oitavo distrito era conhecido como um dos mais rebeldes, e era de se esperar que não fossem demonstrar qualquer felicidade para com os Jogos Vorazes; quanto mais infeliz a representante da Capital ficasse com aquilo, melhor. Não era como se os Pacificadores pudessem matar todo um distrito, ainda mais o 8; se ele fosse extinto, uma crise de moda se iniciaria em Panem e os moradores da Capital não iriam suportar aquilo.
A primeira movimentação desde o pedido de Pearl Rooney aconteceu no palco. Ao lado de Meadow, Hayden fechou a mão esquerda em punho e libertou o polegar, descansando a mão sobre o peito. Com o dedo livre, desenhou uma cruz sobre o coração.
Era um movimento silencioso e quase imperceptível. Era, ao mesmo tempo, forte e simbólico. Era perigoso. Era respeito e solenidade, honra e coragem. Uma união de virtudes, valores e reconhecimento. A cruz sobre o coração e o punho sobre o peito eram uma promessa de mudança. Uma ameaça sutil.
Bastou que o vitorioso fizesse o gesto para que todos os outros começassem. Meadow observou atenta conforme os punhos eram erguidos e posicionados sobre o coração, e acompanhou com curiosidade a forma com que Indigo e o pai, distantes do palco, repetiam o gesto com olhares quase ferozes e impetuosos. Viu crianças fazendo o mesmo, viu o olhar de desespero e confusão no rosto de Pearl. Viu os dedos de Sylvia se fechando em punho ao lado do corpo e viu Mervyn endireitar a postura enquanto observava a multidão à sua frente.
Hayden não tirava os olhos da multidão que o imitava, mas um sorriso dominou seu rosto quando, ao seu lado, Meadow fechou a mão trêmula e a descansou sobre o coração, após desenhar a solene cruz sobre o mesmo.
Pela primeira vez em muito tempo, a garota se sentia em chamas.
A Colheita era televisionada, e Meadow não falhou em perceber quando os olhos de Hayden se fixaram diretamente em uma das câmeras. Imaginava que era um recado para o presidente Snow; uma espécie de aviso, um desafio. Uma prova de que o Distrito 8 não se curvaria à repressão.
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Após a Colheita, Meadow não pôde matar a saudade da família como desejava. O máximo que conseguiu foi passar em casa para pegar alguns pertences rapidamente, como roupas e fotos, antes de ser levada pelos Pacificadores para o Edifício da Justiça, onde os tributos terminavam de se despedir dos familiares antes de sair para uma viagem sem volta.
━ Pensei que tivesse fugido ━ resmungou Hayden, ao ver a garota se aproximando. Ela o encarou em silêncio. ━ O que foi? Ainda está sentida pelo que eu disse mais cedo?
━ Acho que existem outras pessoas pra você direcionar o seu ódio além de mim.
━ Você não tem uma participação significativa o suficiente na minha vida para eu odiar você. Eu estava dizendo a verdade. Você está viva porque seu irmão te levou até o fim. E seu irmão só teve a oportunidade de tirar a própria vida no fim dos jogos porque você o levou até o fim ━ ele retrucou, acendendo um cigarro com calma, e deu uma longa tragada. ━ Você evitou a morte daquele garoto várias vezes, também. Ele não era muito inteligente, o seu irmão. Mas tinha um bom coração.
Foi quando Meadow pensou que, talvez, Hayden realmente não estivesse tentando ofender; ele havia sido o mentor de Aspen e parecia falar do rapaz com carinho. Ele apenas tinha um jeito bruto e não se importava com gentilezas ou cortesias, mas quem era ela para culpá-lo? Ela com certeza não poderia condenar alguém por dizer a verdade, por mais dolorosa que ela fosse.
━ Você não sente nojo deles? ━ Hayden indagou, soprando a fumaça, enquanto observava Pearl Rooney de longe, com uma expressão de nojo. ━ Como essa baranga consegue ficar tão feliz enviando duas crianças pra lutarem até a morte?
Meadow deu de ombros.
━ A diversão da vida deles é acabar com as nossas.
━ É. Acho que não posso julgar. Eu faria de tudo pra colocar as minhas mãos naquele pescocinho ━ o homem resmungou, semicerrando os olhos, e Meadow fez uma careta. ━ Desculpe. Eles nos tratam como selvagens. Às vezes sinto vontade de agir como um e fazê-los provarem um pouco do próprio veneno.
━ Não sei se matar Pearl resolveria alguma coisa.
━ Ah, com certeza não resolveria. Mas às vezes precisamos criar outros problemas pra tirar o foco daqueles que já temos.
Hayden era um homem estranho. Meadow raramente o via no Distrito 8, e quando o via nas festas, ele nunca parecia nem mesmo fingir felicidade. Era, visivelmente, um homem muito ferido pela vida, mas seus traumas foram revertidos em revolta no lugar de tristeza e apatia, e aquilo era algo que Meadow não conseguia entender bem, porque seu jeito de lidar com as situações era diferente.
Eles não conversaram mais, porque logo chegou a hora de voltarem para o trem, para a infelicidade de Meadow, que havia descido do veículo apenas algumas poucas horas antes. Dessa vez, foi obrigada a dividir o vagão com Hayden Sage, os dois tributos e, para completar, Pearl Rooney, que se demonstrou imensamente feliz ao vê-la e mais ainda ao notar o tamanho da aliança em seu dedo. Meadow a afastou rapidamente, justificando que precisava falar com seu tributo, mesmo que não soubesse o que dizer.
Quando Meadow se aproximou de Sylvia, viu que a garota observava o exterior da janela do vagão, enquanto lágrimas de ódio escorriam por seu rosto delicado. A mais velha se sentou à sua frente, em silêncio, pensando no que dizer enquanto a jovem chorava. Do outro lado do vagão, Hayden e Mervyn pareciam falar sobre qualquer coisa que não fossem os Jogos Vorazes, e quando viu o mentor oferecendo um cigarro ao tributo, ela revirou os olhos.
━ Ele é uma criança! ━ ela repreendeu, chamando a atenção de todos os presentes, e Hayden a olhou com desdém.
━ Eu vou morrer. Não faz mal ━ o garoto disse.
━ Você… ━ Meadow tentou discutir, mas desistiu, balançando a cabeça negativamente. ━ Você ainda é uma criança.
━ Meadow ━ foi a vez de Hayden chamar sua atenção, ao mesmo tempo em que Mervyn começou a tossir e o devolveu o cigarro. ━ Eu e Mervyn estamos nos entendendo. Ele estava conhecendo um último prazer da vida, caso não se torne um adulto, e agora está mais tranquilo. Eles estão entrando em uma arena pra matar uns aos outros.
Ela desviou o olhar do homem, voltando a atenção para Sylvia, que agora a encarava, como se esperasse que dissesse alguma coisa. Meadow limpou a garganta algumas vezes, pensando no que dizer, e Sylvia indagou:
━ Você não faz ideia do que está fazendo, faz?
A mais velha suspirou.
━ Essa é minha primeira vez orientando alguém, e você deve saber que na minha edição dos Jogos, não matei ninguém. Não é parte da minha natureza. Eu não sei direito o que dizer ━ ela falou, angustiada. ━ Eu não tenho técnicas mortais pra ensinar a você, e não sei se devo incentivar a usar os seus “instintos violentos”, porque eles podem te colocar em situações perigosas demais.
━ Então você não tem nada a me dizer? Como se já não bastasse me enviarem pra morte, ainda caí com você, que não conseguiu manter a si mesma protegida! ━ a mais nova vociferou, estressada, e Meadow comprimiu os lábios. ━ Que ótimo! Minha situação não poderia ser pior!
As palavras duras da garota fizeram com que Meadow fechasse os olhos, respirando fundo e tentando se acalmar para impedir que lágrimas se acumulassem em seus olhos.
━ Ei, garota! ━ a voz de Hayden se fez ouvir do outro lado do vagão, onde o mesmo conversava com Mervyn. ━ Ela está viva, não é? Talvez você deva mostrar algum respeito. Você não vai longe se não tiver a ajuda de ninguém. Meadow não tem instintos assassinos, mas tem muitos patrocinadores.
Mordendo o lábio inferior, Sylvia esfregou os olhos e respirou fundo, jogando as costas contra o encosto do sofá e encarando o teto.
━ Me desculpe. Eu só… Bom, eu estou nervosa e…
━ Eu sei. Não precisa se explicar, eu entendo que não é fácil ser escolhida para os Jogos, de verdade. Ninguém acredita que podemos vencer ━ falou Meadow, escondendo o fato de que nem ela mesma acreditava naquilo. ━ Mas você vai ter que confiar em mim, Sylvia. Eu sou tudo o que você tem. Sei que não é muito.
Ela sacudiu a cabeça negativamente.
━ É suficiente. Quero ouvir todos os conselhos que puder me dar.
Meadow esboçou um sorriso, concordando com a cabeça.
━ Não desperdice oportunidades e se atente a tudo o que houver ao seu redor. Você pode usar a arena ao seu favor. É o principal conselho que posso te dar. Mantenha isso na sua cabeça. Eu não acho que valha a pena sair pra combater os outros tributos, ainda mais no início. Acho que você tera mais chances se ficar escondida por um tempo, se fortalecendo enquanto eles se cansam e enfraquecem ━ falou a mais velha, e Sylvia assentiu, prestando atenção. ━ Eu não posso fazer promessas, Sylvia, mas tenha certeza que farei o possível para te tirar da arena com vida.
A menina encarou a mesa à sua frente e assentiu, ainda incerta. Brincando com os próprios dedos, subiu o olhar para encarar a mentora, que a encarou de volta.
━ Eu confio em você.
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Quando chegaram na Capital, os tributos foram logo levados aos seus quartos para descansar pela noite, começando os preparativos e avaliações para os jogos no dia seguinte. Quando Meadow e Hayden chegaram ao local onde os vitoriosos normalmente se hospedavam, viram que praticamente todos os outros mentores já estavam ali, exceto por eles e os dos distritos 3, 11 e 12, que ficavam mais distantes da Capital. Alguns conversavam nos corredores e no salão de entrada do grande prédio, parecendo mais agitados, enquanto outros já haviam se recolhido para dentro dos quartos. Hayden não cumprimentou ninguém, apenas seguiu para o próprio quarto, e Meadow fez o mesmo, desejando se jogar na cama e desaparecer dali.
Ao entrar no que seria seu quarto, no entanto, Meadow se deparou com a figura de Finnick sentada sobre a cama, com os ombros curvados para baixo enquanto o rapaz encarava estático um ponto fixo no chão, parecendo abatido. Quando viu Meadow, o rapaz a encarou em silêncio, e ela percebeu que em seus olhos havia uma mistura de raiva e tristeza.
━ O que aconteceu? ━ ela indagou, unindo as sobrancelhas conforme se aproximava do rapaz na cama. ━ Finnick. O que foi?
Ele mordeu o interior das bochechas, balançando a cabeça negativamente, e ela se sentou ao seu lado, apoiando uma das mãos na bochechas do vitorioso e encarando seu rosto confusa, tentando entender o que havia acontecido.
━ Você não viu nada sobre a Colheita dos outros distritos, viu?
━ Não. Por que?
Ela começava a se assustar. Finnick parecia ter dificuldade para dizer o que quer que estivesse acontecendo, talvez por ele mesmo não querer acreditar em quão maldoso o destino podia ser. Não, não o destino. O presidente Snow.
Mil hipóteses passaram pela cabeça de Meadow. Ela imaginou tudo de ruim que poderia ter acontecido, tentando desvendar o que havia deixado Finnick daquele jeito, e já estava começando a se desesperar.
━ Quando você foi morar no 4, disse que aquela não podia ser a única vingança de Snow, se lembra? ━ ele perguntou, sem realmente esperar uma resposta, e Meadow fez que sim com a cabeça. ━ Bom, você estava certa. Aquele foi o seu castigo ━ ele continuou, pegando o controle remoto para ligar a TV do quarto, e colocou no canal notícias, que reprisava a Colheita naquele momento. ━ A minha parte da punição chegou hoje.
Meadow se virou para observar a grande tela da televisão, que terminava de evidenciar a Colheita do Distrito 3, para então dar início à coleta dos nomes dos tributos do Distrito 4. Ela franziu o cenho, ouvindo a escolta animada anunciando que iria colher primeiro o nome das garotas, e quando o nome do tributo feminino do quarto distrito foi anunciado, Meadow finalmente entendeu o que Finnick quis dizer sobre aquele ser seu castigo.
Annie Cresta havia sido sorteada.
8.5k de palavras nesse aqui, escrevi até que bem rápido!! a vida da meadow no distrito 4 tava tranquila demais e os jogos chegaram pra acabar com isso. agora a fanfic começa a ficar mais movimentada, considerando que os jogos vorazes vão começar!
espero que estejam gostando da história, do desenvolvimento lento do nosso casal falso, do começo da revolta da meadow e também dos personagens secundários, que eu amo de paixão! o que acharam do hayden?
enfim, vejo vocês no próximo capítulo!
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