02.
capítulo dois.
a visita ao oitavo distrito
MEADOW SOBREVIVEU A ARENA. Agora, sobrevivia à Capital de Panem, o que parecia mil vezes mais difícil em sua cabeça. Ela às vezes desejava estar morta. Desejava que algum tributo carreirista tivesse dado um fim a sua vida de sofrimento ao som do primeiro disparo de canhão que ouviram na arena dos jogos. Nada jamais poderia prepará-la para a vida pós-jogos, se é que aquilo poderia ser chamado de vida.
Seu nome havia sido colocado no sorteio algumas vezes a mais do que o comum, assim como Aspen havia feito. Acometido por uma doença, o pai não trabalhava como antes. A mãe não era vista há alguns anos. Havia ainda um irmão caçula para cuidar e, por isso, os jovens Selcouth necessitavam do máximo de tésseras que podiam conseguir. Mas mesmo com o nome estando escrito em mais tiras de papel do que a maioria das garotas de sua idade, Meadow nunca havia pensado que um dia seria selecionada para os jogos. E, mesmo que fosse sorteada, ela nunca considerou que sairia viva. Ela costumava achar que aquilo seria sonhar demais.
Até descobrir que era tudo um grande pesadelo. Meadow deu o azar de sobreviver. Deu o azar de ser uma garota considerada atraente para os padrões da Capital. Ela nunca se sentiu bonita, mas devia ter uma aparência no mínimo aceitável quando tomava banho. Tudo o que ela conseguia pensar era o quão azarada era por estar viva. E que a sorte de Aspen era estar morto, ou seria ele em seu lugar.
━ Quem fez isso com você? ━ perguntou Cedar, seu irmão caçula, apontando para uma marca roxa em sua perna esquerda. ━ Foi um deles? Os pacificadores?
Cedar sempre teve medo dos pacificadores. Ele nunca se esqueceu de uma ocasião em que um de seus colegas de escola havia sido duramente agredido por um dos homens da Capital após acidentalmente tropeçar sobre seus pés. Ou da vez em que a mãe de seu melhor amigo foi chicoteada em praça pública. Os pacificadores estavam distantes agora – eles não atuavam na Aldeia dos Vitoriosos –, mas o medo ainda estava presente.
━ Não, Cedar ━ ela negou, mas se arrependeu instantaneamente. Era melhor deixá-lo acreditar que havia sido um daqueles homens que revelar a verdade. ━ Eu devo ter esbarrado em alguma coisa. Nós nunca tivemos tantos móveis, ainda não me acostumei.
O garoto não tinha certeza se acreditava na resposta, mas estava contente por ter, ao menos, obtido uma resposta. Meadow passava tanto tempo quieta que ele às vezes se esquecia do som de sua voz. Quando não estava na Capital, ela costumava se trancar no próprio quarto por dias e ele a ouvia gritar enquanto quebrava algumas coisas. Cedar sempre batia na porta. Ele nunca foi atendido.
Meadow não se orgulhava do que havia se tornado. Ela se odiava cada dia mais pela forma que agia e tratava as pessoas ao seu redor, mas não conseguia fazer diferente. Se fechar para o mundo era o único jeito que ela conhecia para tentar lidar com a nova vida que levava. Ela se afundava em solidão durante os dias, e à noite, era entregue a desconhecidos que estivessem dispostos a pagar por seu preço.
Mas eles nunca voltavam. Meadow não tinha o carisma de Finnick ou Cashmere. Sua beleza não era o suficiente para manter os clientes interessados em retornar quando ela não demonstrava qualquer reação – fosse de prazer ou desgosto – ao estar com eles.
Finnick. Ela ainda não sabia o que pensar sobre ele. Os dois às vezes passavam os fins de noites juntos, escondidos para que ninguém soubesse que estavam livres. Meadow só queria ficar quieta e chorar naqueles momentos, enquanto o rapaz costumava fazer comentários ácidos que provavelmente eram engraçados em sua cabeça. Com o passar dos meses, ela entendeu que aquela era apenas a forma do campeão do Distrito 4 lidar com a situação. Ele pareceu mais humano na única vez em que ela o viu chorar, após uma noite particularmente difícil.
Eles não tocavam no assunto.
━ Você comeu hoje? ━ indagou Cedar, sentado ao lado de Meadow no sofá da sala e passando os dedos por seus fios de cabelo emaranhados. ━ Indigo nos deu uma torta hoje. É de maçã. Posso pegar um pedaço pra você.
━ Eu estou sem fome.
━ Você está tão magra que eu sinto que se um vento mais forte te soprar, seus ossos vão se quebrar um por um ━ o mais novo retrucou. ━ Você parecia mais saudável quando nós realmente não tínhamos nada pra comer.
Meadow encarou um ponto fixo no teto, respirando fundo. Com uma das mãos, afastou as gotículas que se acumulavam em seus olhos. Ela devia cuidar de Cedar e não o contrário; aquilo era vergonhoso. Meadow é quem deveria ser o pilar do irmão mais novo. Não deveria ser cuidada e repreendida por ele. Precisava se fortalecer, se reencontrar, inverter aqueles papéis.
━ Eu vou levar um pedaço pro papai ━ o garoto avisou, por fim, e Meadow apenas concordou com a cabeça. ━ Você devia sair um pouco de casa, pegar um sol. Conhecer algumas pessoas. Aposto que não conhece o homem da casa do fim da rua.
Não havia muitos campeões no Distrito 8, então a Aldeia dos Vitoriosos não era muito movimentada. Os campeões que moravam ali eram, em sua maioria, velhos que haviam vencido muitos anos antes mesmo do nascimento de Meadow. Eles a cumprimentavam às vezes. Indigo Weaver morava a apenas duas casas de distância da sua, e era a pessoa mais barulhenta que Meadow já havia visto. No fim da rua, morava Hayden Sage, o homem ao qual Cedar se referia; ela não sabia qual edição dos Jogos ele havia vencido e nem qual tática utilizou. Ela nunca havia o visto, mas o irmão caçula parecia gostar dele.
Quando Cedar desapareceu em direção ao quarto do pai, Meadow se arrastou para o próprio quarto como uma assombração, fechando a porta atrás de si antes de se sentar sobre a cama, ao lado da janela. Ela gostava de olhar pelo vidro e encontrar algumas poucas pessoas nas ruas tocando suas vidas como podiam. Passou horas ali, observando os vizinhos, sem realmente se importar com o que faziam. Quando Indigo passou pela rua, ela acenou fracamente em sua direção quando ele olhou para cima.
Ela às vezes imaginava Aspen vivendo naquela vila. Se ela não tivesse estado nos jogos para atrapalhar toda sua jornada e ele vencesse. Ele poderia gostar da vida ali, longe do trabalho nas fábricas e dos garotos encrenqueiros da escola. Talvez cultivasse uma horta no pequeno jardim em frente à casa, ou aprendesse a cozinhar. Mas aqueles doces pensamentos iam embora rapidamente quando Meadow se dava conta de que, caso Aspen saísse vivo da arena, ele estaria em seu lugar, passando por tudo o que ela passava, e dessa forma se tornava mais fácil aceitar a morte do irmão.
A Capital era maligna. Eles sugavam dela tudo o que podiam. Eles a fizeram sentir felicidade pelo irmão estar morto.
Batidas na porta interromperam seus pensamentos.
━ Entra ━ ela murmurou, esperando encontrar a figura de Cedar ali, mais uma vez, fazendo o possível para cuidar dela.
Quando a porta se abriu, não era o irmão mais novo.
Era Finnick. Com um prato nas mãos contendo uma fatia generosa de torta de maçã. Meadow imaginou estar franzindo o cenho, mas não havia como dizer com certeza; ela já não tinha mais controle sobre suas ações e não se atentava a elas como deveria fazer.
━ Eu senti sua falta na última festa ━ foi a primeira coisa que ele disse.
━ Eu mandei uma carta a Pearl dizendo que estava doente alguns dias antes. Eles me liberaram depois de mandarem alguns pacificadores virem conferir se era verdade mesmo ━ ela explico, sem entrar em muitos detalhes, e ele assentiu. ━ Por que você está aqui? O Distrito 4 fica bem longe do 8.
━ Ora, Meadow. Eu sou o queridinho da Capital, eu faço o que quiser ━ ele retrucou, em tom de deboche, e ela esboçou um pequeno sorriso de escárnio. ━ Nós ainda viajamos às vezes, para nos exibir por aí. Fazer propaganda dos jogos. Você sabe, nós somos produtos. Resolvi aproveitar pra fazer uma visita.
Finnick era a coisa mais próxima de um amigo que Meadow possuía. Não porque se gostavam ou se conectaram um com o outro ou coisas do tipo, mas porque se entendiam bem. Porque os dois eram jovens demais para aquilo tudo e estavam ali, enfrentando as mesmas situações cruéis, para manter as pessoas que amavam vivas.
━ Seu irmão me disse que não vê você comer nada há dias.
━ Cedar está se preocupando atoa. Eu ainda nem mesmo me acostumei a ter algo pra comer todos os dias.
O campeão do Distrito 4 assentiu levemente, sentando-se na outra extremidade da cama de Meadow e colocando o prato com o pedaço de torta entre os dois, olhando para a garota sugestivamente. Ela ignorou.
━ Você quer conversar?
━ Sobre o quê?
━ Qualquer coisa. Indigo me disse que você não está falando muito.
━ Você entrevistou quantas pessoas a meu respeito no caminho até meu quarto, Finnick?
Ele poderia ter ficado ofendido. Era a intenção de Meadow o ofender. Mas Finnick preferia ver a garota o atacando com palavras do que saber que ela estava definhando em silêncio no quarto. Eles eram obrigados a reprimir as emoções o tempo todo; saber que, depois dos meses de tortura na Capital, Meadow se sentia segura o suficiente para se expressar ao lado dele era uma coisa boa.
━ Só duas. As outras pessoas que parei na rua me disseram não saber nada sobre você ━ ele respondeu, empurrando levemente o prato em direção a Meadow, que encolheu as pernas. ━ Coma sua torta.
━ Não enche ━ a garota murmurou, virando o rosto para o outro lado e descansando a testa contra a janela.
Finnick não gostava da forma com que ela sempre tentava se punir por coisas que não eram sua culpa. Ele notava quando a garota mordia a língua até sangrar, ou apertava as próprias mãos tão forte que as unhas furavam a pele. Agora, não queria comer, como se não merecesse ou fosse digna de se alimentar. Como se quisesse definhar.
Com um suspiro, o rapaz se levantou e se sentou, agora mais próximo à campeã, e deu uma garfada na torta, antes de elevar o talher a altura dos lábios de Meadow, que uniu as sobrancelhas o encarando. Ele levantou as próprias sobrancelhas, aproximando o garfo ainda mais dos lábios da garota, que tombou a cabeça para trás levemente.
━ Três garfadas, Meadow. Três garfadas e eu vou embora ━ ele garantiu. ━ Eu não vou sair até você comer alguma coisa.
━ Você quer passar a noite no meu quarto tanto assim?
━ Você quer tanto que eu passe a noite com você que não vai comer três garfadas do seu pedaço de torta?
Contra sua vontade, Meadow tomou o garfo da mão de Finnick e levou o talher até a boca, mastigando lentamente o pequeno pedaço de torta de maçã e sentindo o estômago revirar. Ela se sentia suja o tempo inteiro, inclusive ao comer, e odiava a sensação de ânsia que a acometia quando se alimentava. Sem que ela percebesse, sua respiração se tornou mais pesada e seus olhos se umedeceram, enquanto ela fincou o garfo na torta mais uma vez, com dificuldade devido a mão trêmula.
Finnick colocou uma mão sobre a sua, tentando a estabilizar, e afastou com cuidado. Ele pegou mais um pedaço de torta e levou aos lábios de Meadow com cuidado, vendo-a aceitar relutantemente enquanto ele tentava acalmá-la ao menos um pouco.
━ Só mais um pouco, Meadow. Você precisa comer ━ ele insistiu, com a voz baixa, e a viu esfregar uma das mãos na área dos olhos, evitando que as lágrimas escapassem. ━ Você consegue.
Uma sensação de pânico a acometia em momentos aleatórios e imprevisíveis. Ela não sabia como se preparar para aqueles momentos, quando uma vontade repentina de chorar e gritar a atingia e respirar se tornava difícil. Acontecia o tempo todo; quando ela estava comendo, dormindo, tomando banho. Meadow associava tudo ao seu redor a um sentimento de culpa e medo.
━ Indigo cozinha bem, não é? ━ Finnick perguntou, tentando iniciar um assunto leve que a distraísse da sensação ruim. ━ Seu irmão me ofereceu um pedaço de torta. Eu gostei do sabor. As maçãs não chegam tão boas no meu distrito.
━ As maçãs boas vão todas pra Capital. Tudo que é bom fica pra eles ━ retrucou Meadow, com a voz baixa, e Finnick concordou. ━ Nós ficamos com a sobra.
━ Mas nós não vamos falar deles agora ━ decidiu Finnick, calmamente, dando a Meadow mais um pequeno pedaço de torta. ━ Nós vamos falar de qualquer coisa que não os envolva. Como foi o seu dia?
Meadow se sentia como uma criança impotente. Precisava de Cedar, um garoto de dez anos, para cuidar dela. Precisava de Indigo, seu mentor nos jogos e vizinho, para cozinhar para ela. Precisava de Finnick, que veio de outro distrito, para fazê-la comer. Precisou de Aspen para escapar com vida da arena. Ela não era capaz de nada sozinha. Ela não era ninguém.
━ Foi menos pior do que todos os outros ━ ela respondeu. ━ Eu não posso tocar no assunto, mas você sabe o motivo. É melhor estar aqui do que lá.
Ele trincou a mandíbula, assentindo em silêncio com a cabeça enquanto oferecia mais torta a Meadow. Finnick sabia do que ela estava falando, é claro; eles dois passavam pelo mesmo sofrimento há alguns meses, sendo vendidos por Snow a quem quisesse pagar o preço de passar uma noite com qualquer um dos dois. A clientela de Finnick diminuiu quando Meadow chegou; ele sabia o motivo, é claro. Ela era novidade; a garota jovem, atraente, com olhos inocentes e que venceu os Jogos Vorazes sem matar ninguém. Quem não a adoraria?
Nenhum deles se importou de roubar da vitoriosa a inocência que tanto veneravam. Aquilo não surpreendia Finnick; todos sempre foram hipócritas na Capital. Ele se lembrava de quando Snow prendeu Meadow no mesmo quarto que ele, oferecendo-o como um presente por uma noite; eles não fizeram nada, mas no dia seguinte, rumores sobre a suposta noite quente dos dois campeões infestaram Panem e as pessoas da Capital disseram apoiar o casal. As mesmas pessoas continuaram pagando por noites com os dois.
━ Você trabalhava nas fábricas de tecido antes de tudo, não é? ━ ele perguntou, com uma curiosidade genuína, e ela assentiu com a cabeça.
━ Eu e Aspen saíamos da escola e íamos pras fábricas, até que saímos da escola também. Minhas mãos são pequenas, eram boas pra operar as máquinas ━ ela contou, lembrando-se da vida que levava antes de tudo. ━ Eu me acostumei a respirar o ar poluído das fábricas e meus dedos estão calejados até hoje. Quando fui pra Capital pra me preparar pros Jogos, minha equipe demorou bastante pra tirar toda a sujeira de debaixo das minhas unhas ━ continuou, abrindo um sorriso mínimo. ━ Eram dias melhores, por incrível que pareça. Você pescava?
━ Se eu pescava? Ah, bem pouco. Eles deixavam isso pras pessoas experientes e eu só tinha catorze anos. Eu limpava os peixes que meu pai pescava, junto com a minha mãe ━ contou o rapaz, sob os olhos atentos de Meadow. Ele não costumava falar muito sobre aquela época; as pessoas não queriam saber sobre seu passado. ━ Ele foi a primeira pessoa que eu perdi depois dos jogos. Foi a primeira pessoa que tomaram de mim quando me recusei a obedecer.
Enquanto compartilhavam histórias, Finnick conseguia levar o garfo aos lábios de Meadow mais algumas vezes, enquanto o pedaço de torta desaparecia aos poucos. As memórias não eram felizes, mas a mantinham distraída o suficiente para aceitar se alimentar.
━ Eu tinha dezesseis anos e não aceitei me prostituir da primeira vez ━ ele explicou. ━ Em retaliação, Snow tirou meu pai de mim. E eu não quis perder mais ninguém, não para ele. Minha mãe ainda fala sozinha como se ele estivesse por perto.
Meadow uniu as sobrancelhas levemente. Ela não era boa em consolar ninguém, mas desejou ter algo para dizer a ele naquele momento. Ela vasculhou sua mente em busca de palavras, mas não havia nada relacionado a conforto por ali.
━ Pronto! ━ exclamou o rapaz, de repente, assustando a garota. ━ Você comeu tudo. Não foi tão difícil, foi?
Ela olhou para o prato, agora vazio, e uniu as sobrancelhas. Meadow se sentiu ainda mais suja, e o estômago revirou mais uma vez quando ela se levantou da cama, dando as costas a Finnick.
━ Vou tomar um banho. Fique onde quiser.
𓅨
Finnick encarou a sala de jantar silenciosa com cuidado. A estrutura da casa não era diferente da sua; as aldeias dos vitoriosos deviam ser todas iguais, provavelmente. Os móveis eram de cores neutras e não havia nada por ali para alegrar o ambiente, a não ser por uma foto antiga sobre o armário, um pouco destruída pelo tempo.
Havia duas crianças na imagem, muito parecidas; eram Meadow e Aspen, ele concluiu, e dois adultos. Uma mulher claramente jovem, mas com marcas de preocupação, e um homem forte ao seu lado. Em seus braços, um bebê. Cedar. Não havia se passado tanto tempo assim desde que a foto foi tirada, mas duas pessoas da imagem já não estavam presentes ali.
Aspen morreu nos Jogos Vorazes. Finnick não sabia o motivo da mãe de Meadow não estar ali com eles naquela noite e imaginou ser melhor não fazer perguntas como aquela. Meadow havia crescido desde que a foto foi tirada e Cedar também. River, o pai dos dois, estava bem diferente; mais fraco e magro, com um dos braços faltando e uma grande ferida na perna esquerda, da qual ele se queixava de não sarar nunca. Cedar disse ao campeão, quando os dois estavam sozinhos, que foi um acidente de trabalho do qual o pai nunca se recuperou por completo.
━ Vocês gostam de carne assada? ━ indagou Indigo, quebrando o silêncio.
Finnick Odair, Indigo Weaver, Cedar e River Selcouth aguardavam por Meadow para o jantar, enquanto a garota tomava banho. Cedar também disse que ela demorava horas no banheiro. Aquele garoto falava demais, mas alguém ali precisava falar.
━ Sim ━ respondeu Finnick.
━ Ótimo ━ retrucou Indigo.
Aparentemente, o mentor de Meadow nos Jogos Vorazes passava muito tempo ali. Ele não tinha uma família, Finnick sabia daquilo, e parecia ter adotado a de Meadow. Alguém precisava manter a casa nos eixos, uma vez que as duas pessoas que o faziam – Meadow e Aspen – já não podiam mais. Era uma boa ação da parte de Indigo; era como o que Mags fazia por ele e por sua mãe.
Quando os passos da garota foram ouvidos descendo as escadas, todos se viraram para a encarar. Ela os encarou de volta, franzindo o cenho, e se sentou ao lado de Cedar, em uma das pontas da mesa, com os cabelos molhados e mais limpa do que nunca.
━ Que jantar agradável ━ ela disse, apoiando os cotovelos na mesa, e Indigo revirou os olhos. ━ Adoro chegar na cozinha da minha casa e encontrar uma pessoa que não mora aqui cozinhando no meu fogão.
━ Que bom que adora. Você não faz nada aqui, mas seu irmão de dez anos ainda precisa ser alimentado ━ retrucou o mentor, vendo-a fechar a cara.
Indigo acreditava que Meadow precisava de um choque de realidade. Ele sabia que as coisas não estavam sendo fáceis para ela, mas Cedar ainda poderia ir parar em um abrigo caso continuasse daquela forma. Indigo era bruto e poderia ser desagradável, mas tudo o que fazia, fazia por Meadow.
━ Você quer suco? ━ o menino ofereceu a irmã, após o silêncio que se instalou após a resposta do vizinho. Ela negou com a cabeça.
━ Você vai beber ━ disse River, levantando-se com dificuldade e utilizando o único braço para servir suco no copo à frente de Meadow, que permaneceu em silêncio. ━ Você comeu a torta. Agora beba o suco e vai ver que não é tão difícil.
Meadow obedeceu o pai, dando um pequeno gole no suco de laranja apenas para que o mais velho não se queixasse mais. Ela cresceu em uma casa dominada por homens, então não se incomodou com a ocupação de sua cozinha por aquele motivo; o que a incomodava era o fato de que todos ali pareciam ter a tarefa de cuidar dela de alguma forma e ela já não aguentava mais aquilo. Aquilo a sobrecarregava. Eram pessoas demais para decepcionar.
Com a proximidade da próxima edição dos Jogos, ela se sentia ainda pior. Não seria fácil ter a obrigação de mentorear uma criança na arena e guiá-la à morte. Era raridade que jovens dos distritos mais pobres vencessem; ela havia sido a primeira em quase vinte anos. A única certeza que Meadow tinha era de que não era minimamente capaz de criar um vitorioso, ainda mais quando nem ela mesma deveria ser uma.
Haveria festas na Capital para celebrar a chegada dos jogos. Ela teria que participar. Teria que assistir diariamente a morte de crianças na arena. Não havia nada de bom sobre aquela época do ano, especialmente para ela, que iria ser mentora pela primeira vez e seria responsável pela morte de mais um jovem na competição.
━ Quando o trem sai? ━ Meadow perguntou a Finnick, curiosa. Ela nunca havia viajado entre distritos além de sua turnê da vitória; gostaria de entender como aquilo funcionava.
━ O trem passa aqui todos os dias pra buscar tecido e só para na Capital ━ Indigo foi quem a explicou. ━ Finnick vai com eles hoje. E você também.
Ela uniu as sobrancelhas.
━ Eu?
━ Os pacificadores vem em alguns minutos verificar se você ainda está doente ━ Finnick contou, de uma maneira menos ríspida do que Indigo para não perturbar Meadow ainda mais. ━ Vamos ter uma festa em comemoração a proximidade dos jogos e os mentores desse ano precisam ir.
Não fazia um ano completo desde a vitória de Meadow, mas os Jogos Vorazes daquele ano aconteceriam mais cedo devido às vontades dos organizadores. Meadow imaginava que deveria ser algo relacionado à temperatura de Panem; sua edição foi durante o verão, em uma arena que imitava um deserto. A nova, provavelmente, seria o extremo oposto. Ou talvez, Snow apenas quisesse adiantar seu sofrimento. Talvez as pessoas da Capital não fossem capazes de esperar mais alguns meses para ver tributos sendo mortos.
━ Eu não fiz minhas malas.
━ Não é como se precisasse de alguma coisa que não vá encontrar lá.
Cedar encarou os três vitoriosos.
━ Meadow, eu posso ir com você?
━ De jeito nenhum ━ ela respondeu, rápida como uma flecha, assustando o irmão com a rispidez. ━ Não peça isso de novo. Você não quer ir pra lá.
Aquilo, sim, era desconfortável. Verbalizar sua infelicidade com o local que aqueles que não conheciam acreditavam ser uma maravilha. Falar de forma velada sobre o que mais a machucava. Ter que proteger o irmão caçula dos perigos que se escondiam atrás das roupas vibrantes e penteados exagerados que a faziam sentir medo.
Finnick entendia aquele sentimento, de não poder tocar em um assunto sensível e que era tratado como um segredo ainda que, no fundo, todos soubessem do que se tratava, mas não tinham coragem de dizer em voz alta.
Os pacificadores chegaram no meio do jantar, exigindo ver Meadow. Cedar se escondeu atrás de Indigo ao ver os homens de branco enquanto o campeão do Distrito 8 explicava que ela estava no quarto. Finnick os guiou até lá apenas para os soldados verem que a vitoriosa já estava organizando as malas, sem qualquer resquício da doença que a acometia na última semana, quando estiveram ali pela última vez.
A despedida foi rápida. Meadow sabia que o pai e o irmão ficariam bem em sua ausência; ela não planejava irritar o presidente Snow. Indigo estaria ali para manter as coisas em ordem, e ela até mesmo o agradeceu por aquilo em um murmúrio que ele mal escutou. Não demorou para que Meadow e Finnick estivessem no trem, assim como outros vitoriosos que seriam mentores naquele ano.
Ela reconhecia alguns. Cashmere e Gloss, os irmãos do Distrito 1 que haviam vencido os Jogos em anos consecutivos; Enobaria, uma mulher que sempre a assustava com seus dentes afiados e cobertos por ouro, e mais alguns que ela costumava ver em festas. Hayden Sage, o homem que morava no fim da rua, estava ali, sentado sozinho em um canto enquanto bebericava um whisky. Seu olhar cruzou com o de Meadow por um breve segundo, mas os dois não se cumprimentaram. Fazia sentido. Seus tributos seriam inimigos.
━ Aquela é Mags ━ apontou Finnick, para uma senhora de idade, que descansava ao lado da janela do trem, observando as árvores passando. ━ Ela foi minha mentora. Acho que você gostaria dela.
Meadow não respondeu. Ela não gostava de muitas pessoas; a única pessoa, naquele momento, que ela tinha absoluta certeza de que gostava era Cedar. Os outros não a importavam tanto assim.
━ O que fazemos na festa?
━ Procuramos por patrocinadores pros nossos tributos ━ ele respondeu, tombando a cabeça levemente para o lado para que apenas ela o escutasse. ━ Você vai precisar ser simpática hoje, Meadow.
Gostar era uma palavra forte demais, mas Meadow sentia certa simpatia por Finnick. Ele era a única pessoa que tentava, sempre, a animar, e seus conselhos eram sinceros. Ele não escondia nada, como Indigo fazia – talvez não intencionalmente; talvez Indigo e ela não tivessem passado pelas mesmas coisas –, e por terem idades tão próximas, Meadow se via um pouco nele. Mas não eram nada parecidos, apesar disso; Finnick era mais forte, e havia merecido a vitória. Parecia saber o que estava fazendo, diferente dela.
━ Indigo mandou você dizer isso? Parece algo que ele diria.
━ Você acha que ele implica com você, mas na verdade, os conselhos de Indigo são muito bons. Ele faz o que pode fazer ━ retrucou o rapaz. ━ Eu estou ficando com sono. Viajei o dia inteiro.
━ Você deveria dormir ━ disse Meadow.
Ele a encarou por alguns segundos.
━ Você vai ficar bem?
━ Vou. Acho que ninguém aqui quer agir como se estivéssemos de volta a arena ━ ela respondeu, e Finnick riu pelo nariz, cruzando os braços em frente ao tronco ao se acomodar na poltrona. ━ Mas se Enobaria chegar muito perto, eu te acordo. Os dentes dela me assustam.
Finnick era, também, a única pessoa com quem Meadow conseguia manter uma conversa razoável. Era mais fácil conversar normalmente com pessoas que conheciam seu pior segredo do que com aquelas que não sabiam. Não havia nada que ela precisasse esconder dele, e quando ela se fechava ou o pânico a atingia, ele entendia bem.
━ Morda ela de volta, Meadow ━ ele aconselhou.
O corpo da garota gelou por um segundo quando Finnick deitou a cabeça em seu ombro, na busca por conforto para seu cochilo. A rigidez de seus músculos se desfez após alguns segundos – ela havia ficado parada como se uma bomba pudesse explodir a qualquer mero movimento –, quando ela respirou fundo e os olhos de Mags encontraram os seus, do outro lado do vagão. Ela fez o mais próximo que conseguiu de relaxar, cruzando os próprios braços para se aquecer, e ignorou os olhares que recebeu de outros vitoriosos.
Ela às vezes achava que eles queriam seu sangue. Que eles não a consideravam uma deles. Ela também não achava que era parte do grupo. No fim das contas, Finnick também era uma das únicas pessoas que ela confiava que não queriam matá-la o tempo todo. Se quisesse, ele já teria feito; não faltaram oportunidades em que os dois ficaram sozinhos nos fins de noites.
Um suspiro cansado escapou dos lábios de Meadow, que apoiou a testa contra a janela do trem. Seria uma longa viagem até a Capital.
𓅨
Quando o trem chegou à Capital, Meadow sentiu o coração palpitar mais forte ao ver pela janela a multidão de pessoas que os aguardavam aos gritos, animados para poderem ver os vitoriosos que desceriam do veículo em poucos minutos. Ela fez menção de fechar a cortina de sua janela, para escapar dos olhares, mas antes que pudesse puxar o tecido, Finnick a impediu, aproximando-se da janela e acenando para o público.
Com um sorriso que ela reconheceu ser falso, ele olhou para ela brevemente, dizendo:
━ Sorria, Meadow. Dê a eles o que eles querem e só assim te deixarão em paz.
Com a respiração pesada, ela se levantou, apoiando as duas mãos na janela para manter o equilíbrio, e ofereceu um sorriso nervoso aos cidadãos da Capital, que gritaram mais alto ao vê-la ao lado de Finnick. Os dois queridinhos da Capital. Os brinquedos mais novos e interessantes.
Uma tontura atingiu Meadow, enquanto o ar fugia de seus pulmões, e ela se afastou da janela, agarrando uma das poltronas para tentar se estabilizar novamente. Ela não voltou para a vista do público; permaneceu ali, observando os outros vitoriosos fazendo o possível para parecerem agradáveis e chamarem atenção, já pensando em futuros patrocinadores para seus tributos. Ela não conseguiu fazer o mesmo.
Hayden Sage era o único que não parecia interessado na atenção. Mais uma vez, seus olhos e os de Meadow se encontraram; finalmente o homem a cumprimentou, levantando o copo de whisky em sua direção silenciosamente. E não a olhou mais.
O sentimento de sobrecarga que Meadow sentia não passou. Quando desceram do trem, ela tentou acenar, temendo que, se não os desse atenção o suficiente, o público que a aguardava a atacasse de alguma forma. Eles pareciam sempre querer um pedaço dos campeões. Ela se sentia uma raposa sob os olhos de diversos caçadores.
━ Respire fundo, Meadow ━ Finnick aconselhou, descendo do trem ao seu lado. ━ Abra um sorriso. Vamos dar a eles o que eles querem.
Meadow o olhou por um segundo, e milhões de pensamentos cruzaram sua mente. Eles estavam em busca de patrocinadores, todos eles, e precisavam se destacar entre os outros. Precisavam fugir dos olhares maliciosos que os observavam a todo tempo. Precisavam de um motivo.
Sem mais uma palavra, entrelaçaram seus dedos. A pele de Finnick era quente e ele se assustou com o toque gélido de Meadow.
A multidão foi a loucura.
esse capítulo foi completamente mudado na reescrita, socorro! acabei de escrever agora e eu sempre termino exausta, porque escrever só depressão tristeza angústia acaba sugando muito da gente. enfim, espero que tenham gostado do capítulo e vejo vocês no próximo!
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