00.
a entrevista da vitória
MEADOW SE SENTIA incomodada pelo reflexo do espelho. Era difícil reconhecer a si mesma naquele momento, perdida entre os metros extensos de tecido que formavam o vestido mais caro, bem-costurado, chamativo e feio que já havia visto ao longo de sua não muito longa vida. Ela sempre odiou roxo; ainda assim, aquela era a cor da maior parte de suas vestes cuidadosamente desenhadas por Zinnia Cliff, sua estilista designada algumas semanas antes.
As mangas eram estruturadas como arcos e iam até a altura de seu queixo. O vestido descia colado até certa parte – o meio de seus joelhos –, onde se dava o início da longa cauda que se arrastava pelo chão conforme a garota andava com dificuldade. Era impossível para ela descrever os sapatos que calçava. Ou a maquiagem que enfeitava seu rosto magro e com olheiras fundas. Ela nunca havia se sentido tão ridícula ou desprezível quanto naquele momento.
━ Meadow, eu preciso que você fique com a postura ereta enquanto ajeito seu vestido nas costas ━ a voz aguda de Zinnia adentrou seus ouvidos, e ela obedeceu em silêncio, sem tirar os olhos do espelho. ━ Apertei demais, ou consegue respirar?
Respirar. Aquilo era mesmo difícil, mas não graças ao vestido. As últimas semanas num todo haviam sido como um soco no estômago. Meadow não respondeu, levantando os braços fracos e maquiados para cobrir os hematomas, passando uma das mãos ossudas pelos cabelos estilizados de forma estranha, trançados para formar um arco ao redor de sua cabeça.
━ Não. Ficou ótimo ━ ela murmurou em resposta, ainda observando seu reflexo. ━ Está perfeito, Zinnia.
Meadow não se reconhecia. Não reconhecia as roupas que usava, o cabelo limpo e sem um fio fora do lugar, ou mesmo as unhas bem feitas pela primeira vez em sua vida. Não reconhecia os olhos fundos e as bochechas marcadas no rosto magro, e nem os lábios pálidos e tingidos para disfarçar. Mais importante, Meadow não reconhecia os próprios olhos.
Eles costumavam brilhar. Agora, pareciam apenas vazios e Meadow não via qualquer sinal de familiaridade neles. Sem qualquer brilho ou emoção, arregalados continuamente. A jovem garota não sabia o que dizer, e nem sabia o que sentia. Estava tão vazia como seus olhos. Meadow não sabia quem era a pessoa no espelho que olhava para ela há longos minutos, mas não acreditava que era si mesma.
Zinnia sorriu ao observar o produto final de seu trabalho, encarando Meadow da cabeça aos pés. A mais jovem pensou que fosse ficar permanentemente cega ao olhar diretamente para os dentes excessivamente brancos da estilista, mas nada aconteceu. E, quando Zinnia piscou algumas vezes, ela temeu que seus cílios gigantescos pudessem se embaraçar e ela nunca mais conseguisse abrir os olhos.
━ Você grita Distrito 8 ━ Zinnia comentou, ainda orgulhosa de seu trabalho. ━ Indústria têxtil… Todo esse pano, sem flores ou arranjos para tomar a atenção. É a Vitoriosa mais elegante que já vesti, é verdade!
━ Eu odeio roxo.
━ Bom, comece a gostar. Você agora frequenta a Capital, e eu estou tentando contar uma história.
Meadow se lembrava da infância, quando ela e Aspen, seu irmão mais velho, ainda frequentavam a escola antes de serem submetidos a algumas horas de trabalho nas fábricas de tecido. A história dizia que, milhares de anos antes da criação de Panem, apenas a alta sociedade vestia roxo; não haviam muitas opções de corantes naturais para pintar tecido, e o pigmento chamado púrpura tíria só podia ser comprado por altos valores.
Ela era alta sociedade agora. Era quase parte da Capital. Ela podia vestir aquela cor. Mas não queria. Preferia que ninguém nunca a visse vestindo aquele tom. Preferia que ninguém nunca mais a visse de um modo geral. Meadow queria sumir, se esconder de todos, até de si mesma.
━ Você entra em alguns minutos. Se prepare, Meadow.
E, com esse breve aviso, Zinnia a abandonou sozinha no camarim, fazendo com que o barulho de seus saltos se chocando contra o chão ecoasse num volume alto. A última coisa que Meadow viu foram os cabelos azuis serpenteando pelo ar quando Zinnia passou pela porta, e sentiu medo. Medo de se parecer com ela e todos os outros da Capital.
Era tarde demais. Ela já era um deles e aquilo era visível. Quando levou os dedos aos lábios tingidos de lilás, Meadow não pode evitar pensar que se parecia com um enorme bolo de casamento; não um bolo de casamento do Distrito 8, porque nas celebrações de lá, eles tinham sorte quando podiam se dar ao luxo de dividir um pão doce entre os convidados. Mas sim um bolo de casamento da Capital, onde as pessoas viviam em uma fartura invejável.
Quando Meadow percebeu, uma mão já descansava em suas costas e a empurrava suavemente em direção ao palco do tão famoso programa apresentado por Caesar Flickerman, o mestre de cerimônias mais amado da Capital. A plateia aplaudiu alto ao ver a mais nova vitoriosa se juntar ao apresentador, e Meadow se esforçou para abrir um sorriso simpático; ela não tinha certeza se conseguiu, e acreditava que parecia mais assustada do que qualquer coisa.
Ela sabia que a plateia estava cheia, mas não conseguia enxergar os rostos das pessoas que a assistiam com a luz dos holofotes indo diretamente em seus olhos. Meadow piscou uma, duas, três vezes para tentar se acostumar com a iluminação, e percebeu que Caesar a observava em expectativa, com o sorriso branco se destacando em contraste com a pele artificialmente bronzeada e o terno de cetim azul.
━ Mil desculpas ━ ela pediu, tentando soar simpática e agradável. ━ Eu… Me distrai.
Os espectadores riram, por algum motivo que ela não compreendeu. Meadow tentou fazer o mesmo, e a risada que deixou sua garganta era tão incômoda quanto o som de unhas arranhando um quadro. O sorriso em seus lábios nunca alcançaram os olhos.
━ Ah, Meadow… Nós sabemos como é! ━ ele a tranquilizou, tocando-a no ombro como se fossem velhos amigos e direcionando-a para se sentar em uma das poltronas rosa-choque dispostas no palco. ━ Ainda está em êxtase por ter se tornado uma vitoriosa, não é? Uma salva de palmas para a campeã da sexagésima nona edição dos Jogos Vorazes, pessoal!
Quando aplaudiram, as pessoas pareceram genuinamente felizes por ela, e não demonstravam o menor remorso pelas vinte e três vidas que haviam sido perdidas na arena nas últimas semanas. Foi quando Meadow se deu conta que, de fato, eles não davam a mínima. Ela deveria saber, mas carregava em seu coração certa esperança de que havia alguma humanidade naquelas pessoas. Mas para eles, suas mortes brutais e vidas sofridas eram apenas entretenimento e nada mais que isso.
━ E então, Meadow? Como se sente?
Ela abriu a boca algumas vezes, tentando pensar em uma resposta.
━ Horrível ━ disse, por fim, sem conseguir evitar, e o sorriso de Caesar vacilou por um breve segundo.
━ Horrível?! ━ ele indagou, levantando-se mais uma vez e estendendo uma mão para que a garota fizesse o mesmo. ━ Vocês acham que Meadow está horrível, pessoal?! Não, não, eu acho que Zinnia Cliff, sua estilista, fez um maravilhoso trabalho.
Ele não podia estar falando sério. Não era possível que ele estivesse mesmo pensando que ela se referia a sua aparência; ela se sentia, sim, mas Meadow nunca pôde se dar o privilégio de ser vaidosa e não começaria agora. O incômodo que sentia em seu exterior causado pelas roupas jamais poderia ser comparado a tudo que sentia em seu âmago e a falta de ar que a assolava toda vez que se lembrava dos dias na arena.
Mas é claro que ninguém ali jamais entenderia aquilo, afinal, as crianças da Capital nunca foram e nem seriam elegíveis aos Jogos Vorazes. As pessoas da Capital jamais entenderiam a dor de ver pessoas das quais se importavam indo para a arena e jamais sentiriam a angústia esmagadora causada pelo dia da Colheita. Eles nunca precisaram se preocupar em reivindicar por tésseras, colocando seu nome mais de uma vez no sorteio, em troca de uma pequena quantia de grãos e óleo.
A Capital vivia de um jeito que Meadow nunca sonhou em conhecer. Agora que estava ali, ela via que era tudo muito pior do que ela poderia imaginar.
Conforme a entrevista seguiu, com perguntas supérfluas e interessantes para a audiência, Meadow percebeu que aquele era apenas o primeiro dia do resto de sua vida. Ela era uma vitoriosa, uma campeã, o novo brinquedo da Capital. Respondia às perguntas de forma breve e com um sorriso amarelo, e a audiência se expressava da forma que podia: riam alto e, às vezes, choravam lágrimas de crocodilo quando tópicos sensíveis eram trazidos à tona.
━ Devo dizer a você, Meadow, que sua vitória impressionou a todos nós ━ Caesar disse, quando a entrevista começava a se aproximar do final. A garota já sabia o que viria a seguir, e engoliu em seco. ━ Acho que todos pensamos que seu irmão deixaria a arena como um vitorioso.
Ela mordeu as bochechas fortemente por dentro, rasgando a pele sensível e sentindo gosto metálico do sangue em sua língua. Seus dedos, perdidos pelo tecido do vestido, apertaram o pano com força enquanto a garota tentava não desmoronar. Caesar pareceu perceber sua angústia, e seus olhos mudaram por um breve segundo; Meadow sabia que não era preocupação com ela, e sim o medo da audiência de seu talk-show ser afetada por seu comportamento. O apresentador, mais do que todos os outros, amava o sofrimento dos jovens: todo seu trabalho girava em torno daquilo, no fim das contas.
Para ele, quanto mais triste melhor.
━ Ele amava muito você. Poucas pessoas fariam por alguém o que Aspen fez ━ o apresentador falou, ouvindo a plateia murmurar coisas em concordância. A visão de Meadow começou a embaçar. ━ Mesmo sabendo que apenas um poderia sair vivo da competição, ele se ofereceu como tributo quando o seu nome foi sorteado e…
━ Você faria isso? ━ ela o cortou, sem vontade de ouvir a mesma história mais uma vez, como se não fosse suficientemente doloroso ter vivido aquilo. ━ Você disse que poucas pessoas fariam isso por alguém. Você é uma delas?
Caesar limpou a garganta, pego de surpresa pela pergunta de Meadow.
━ Não seja boba, Meadow ━ ele riu, disfarçando o desconforto e incentivando os espectadores a fazerem o mesmo. ━ Apenas os Distritos podem participar dos Jogos Vorazes.
Podem. Caesar fazia parecer que participar dos jogos era um privilégio. Como se as crianças dos distritos tivessem o desejo de serem enviadas para uma arena para lutarem até a morte.
━ Ah, sim. Eu me esqueço de como somos privilegiados, nós dos distritos ━ ela respondeu, ouvindo as gargalhadas da platéia. ━ Aposto que estão com saudade da arena, não é?
Dois dias desde que ela havia saído da arena. Meadow precisava se policiar para não perder a calma. O gosto metálico ainda descansava em sua língua e ela tinha certeza de que as pontas de seus dedos já estavam brancas de tanto apertar o vestido.
━ Ah, sim, essa foi uma edição e tanto. Foi tão bonito poder acompanhar o amor de dois irmãos; devo dizer que Aspen e você prenderam nossa atenção desde o início! ━ Caesar exclamou, com um sorriso, antes de olhar para Meadow piedosamente. ━ Imagino o quão doloroso deve estar sendo para você, perder um irmão. Mas Aspen fez tudo o que fez para te salvar, lembre-se disso com carinho ━ ele tinha aquela mania grosseira de tentar mascarar tudo com um lado positivo que não existia. ━ Aspen se sacrificou para que você deixasse a Arena como campeã! Ele não hesitou, Meadow… Quando cravou aquela faca no peito…
Ela já não ouvia mais nada. Sua visão estava embaçada e tudo o que enxergava eram vultos coloridos, enquanto Caesar Flickerman continuava a narrar os eventos dos minutos que consagraram Meadow como campeã dos Jogos Vorazes. Seus olhos ardiam conforme as lágrimas se acumulavam ali, ameaçando escorrerem um um choro raivoso. Com os lábios trêmulos, Meadow só foi capaz de murmurar:
━ Dezoito anos ━ ela disse, com a voz baixa e embargada enquanto encarava Caesar. ━ Aspen tinha dezoito anos quando foi obrigado a matar para que nós dois pudéssemos sobreviver. Dezoito anos quando morreu.
O apresentador perdeu sua compostura e seu sorriso vacilou. Ele gaguejou algumas vezes antes de se recompôr. Então, meramente limpou a garganta e se levantou de sua poltrona de anfitrião, apontando para Meadow com um olhar quase orgulhoso, se não fosse colérico. Caesar Flickerman, além de tudo, sentiu medo naquele momento.
Medo de que Meadow Selcouth pudesse falar demais e criar problemas. Criar problemas para ele.
Precisava finalizar a entrevista rápido.
━ E você, Meadow, tem apenas dezessete anos ━ falou ele, falsamente eufórico. ━ E já entrou para a história dos jogos! Pela primeira vez na história da competição, alguém ganhou os jogos sem derramar uma gota de sangue! ━ anunciou, elevando o tom de voz e aumentando o sorriso.
Vinte e três mortes pavimentaram o caminho de Meadow para o estúdio do programa de Caesar Flickerman. Vinte e três pessoas, incluindo Aspen, haviam morrido para que ela pudesse estar ali naquele momento. Ela não entendia como ele ousava dizer que nenhuma gota de sangue havia sido derramada, quando suas mãos estavam cobertas de vermelho.
Meadow quis gritar. Quis xingar, amaldiçoar. Quis chorar. Quis quebrar coisas. Quis quebrar coisas na cabeça de Flickerman. Mas não fez nada do que queria; no lugar, se levantou ao lado do homem e sorriu, ainda que aquilo fosse a última coisa que queria fazer. Acenou para a audiência, posou ao lado do apresentador.
━ Meadow Selcouth, senhoras e senhores!
Era aquela sua vida agora. Meadow tinha de se lembrar do que era: um produto da Capital, e sua única função era entreter a população, propagar a ideia da falsa utopia em que passava a viver naquele momento. Era o que precisava fazer para manter o que havia sobrado de sua família a salvo. Aspen havia morrido para que eles pudessem viver aquela vida, para que a irmã se tornasse uma vitoriosa.
Mas Meadow Selcouth não se sentia uma vencedora.
olá! a reescrita do prólogo não mudou muita coisa, apenas ficou um pouco mais completa do que a primeira versão. caso seja novo aqui, espero que tenha gostado do capítulo! e caso seja um leitor da primeira versão, bem-vindo de volta, e paciência! a partir do próximo capítulo, algumas coisas serão diferentes da primeira versão.
espero que tenham gostado, e vejo vocês no próximo capítulo!
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